sábado, 31 de outubro de 2020

o ator e a rosa


O romance de estreia de Umberto Eco, O nome da rosa, 1980, é um livro proposital e inteligentemente cheio de referências e reverências. Ambientado na Itália medieval de 1327, a trama se desenrola em um mosteiro beneditino onde durante sete dias acorrem insólitas mortes de sete monges. O frade franciscano inglês William de Baskerville é convocado para investigar os crimes. Leva como auxiliar o noviço Adso de Melk. Baskerville configura-se nos moldes da intelectualidade renascentista, confrontando-se com a mentalidade teocêntrica medieval.

Filósofo, linguista e um dos maiores professores de Semiótica, Umberto Eco, falecido em 2016, aos 84 anos, criou os personagens em um enredo que nos prende em quase 500 páginas, e reveste-se em uma condução de suspense e mistério, como se fosse uma novela de serial killer nos corredores de uma construção da Idade Média. Essa é a forma. No conteúdo a intextualidade precisa tanto expõe a formação do autor, nas menções, quanto provoca nas alusões o debate sobre o pensamento iluminista e o cetismo, a Igreja e a existência de Deus, a racionalidade e as considerações do niilismo.
Como uma escaleta em que se delineiam os perfis, o escritor italiano assim elaborou suas orientações e parâmetros:
- o mosteiro localiza-se no norte da Itália, na mesma região onde nasceu o autor, Alexandria, célebre comuna que na construção lutou contra as forças do Imperador Frederico Barbarossa do Sacro Império Romano-Germânico, quando se chamava Cidade Nova. O denominação que se conhece deve-se ao papa Alexandre III, inimigo do imperador;
- o nome do personagem-detetive é uma citação ao frade franciscano, filósofo e teólogo escolástico inglês William de Ockham, o mais importante pensador no desenvolvimento de ideias constitucionais do Ocidente em plena Idade Média. O escritor criador de Sherlock Holmes, o escocês Artur Conan Doyle, é também reverenciado nesse batismo, através do título de seu livro de 1902, Os cães de Baskerville;
- o jovem assistente Adso é uma consideração ao fiel escudeiro de Holmes, Watson, com quem trabalhou por dezessete anos desvendando crimes nas histórias de Conan Doyle;
- o guardião cego do biblioteca, Jorge de Burgos, é um declarado tributo a Jorge Luis Borges, de quem Umberto Eco era devoto. As várias situações em ambientes com espelhos e labirintos remetem ao conto A Biblioteca de Babel, que o escritor argentino publicou no livro Ficciones, de 1944;
- a descrição da biblioteca no livro, com suas portas, janelas e escadas numa estrutura arquitetônica labiríntica e ousada, alude ao famoso quadro Relatividade, do holandês M.C. Escher, uma litografia de 1953;
- nas investigações o frade descobre que a sucessão de mortes no mosteiro está relacionada ao segundo livro da Poética de Aristóteles, considerado perdido, onde o filósofo grego defende a teoria do efeito do riso, demonstração natural de alegria do ser humano, o seu elo com os deuses, que firma o conceito de felicidade. Para Igreja medieval era um perigo, abalaria a fé, o temor a Deus, e, sobretudo, um desrespeito à instituição aqui na terra que representava os fundamentos dos céus. Nessa concepção, rir era um ato de escárnio e sacrilégio. Lembremos que na Inquisição, se uma mulher enlouquecesse nas torturas e no delírio da dor começasse a rir, era porque o diabo estava no seu corpo zombando dos inquisidores;
- no desfecho do livro, um grande incêndio destrói o mosteiro, iniciando-se justamente na biblioteca, numa designação direta da proibição dos livros como fonte de conhecimento e liberdade, um potencial revolucionário. Assim como a obra citada de Aristóteles, o saber que até nós chegou no decorrer dos séculos, é limitado, perdeu-se por ação criminosa do poder.
E nesse mosaico de referências, a adaptação para cinema, com o título homônimo, dirigida por Jean-Jacques Annaud em 1986, além de reforçar a essência da obra de Umberto Eco, ilustrando com originalidade os conflitos dos movimentos heréticos do século XIV, a luta contra o mistificação e o esvaziamento dos valores pela demagogia, tem em si uma curiosa analogia na simetria do tempo: o ator Sean Connery.
Consagrado no papel como o primeiro e mais carismático James Bond no cinema, em 007 contra o Satânico Dr. No, 1962, (antes dele, Barry Nelson viveu o personagem no telefilme Cassino Royale, em 1954), o ator escocês construiu uma sólida carreira quando deixou definitivamente de interpretar o agente secreto em 007 - Nunca mais outra vez, em 1983. Um título ironicamente determinante como despedida.
Sua atuação perfeita como o frade Baskerville em O nome da rosa é possivelmente o grande destaque em mais de sessenta anos no cinema. Sean Connery, num amálgama de Bond com Holmes, chamado para mais uma investigação, lapida seu personagem da Idade Média como viesse do futuro exterminar um mal do passado. Assim como lembramos na sua pele o agente britânico 007, criado por Ian Fleming, não esqueceremos o detetive franciscano William de Baskerville moldado dramaticamente em sua alma de sotaque shakespeariano.
Sean Connery faleceu enquanto dormia, na madrugada deste sábado, 31, em sua residência nas Bahamas, aos 90 anos. Um mês antes das tramas narradas em O nome da rosa, que acontece na última semana de novembro de 1327.

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