Na manhã fria do Dia de Finados de 1975, um domingo, em uma tranquila praia italiana em Ostia, a 30 quilômetros de Roma, uma senhora se chocou com o aparecimento de um corpo desfigurado. Por um instante, antes do espanto e grito, pensou tratar-se de um amontoado de lixo, tamanho o entulho em volta. Era o cineasta e poeta Pier Paolo Pasolini.
Tão controversa quanto sua vida, sua morte tem até hoje mistérios difíceis de decifrar. Com base em conversas de amigos e admiradores, como o cineasta Bernardo Bertolucci e o escritor e jornalista Alberto Moravia, o pouco conhecido documentário Quem fala a verdade deve morrer (Wie de waarheid zegt moet dood), de Philo Bregstein, produção holandesa de 1981, tenta descobrir a verdade por trás do intrigante assassinato. Em uma explanação investigativa, o filme analisa as teorias em torno do fato.
Segundo a versão oficial, o cineasta, comunista declarado e homossexual assumido, foi assassinado pelo garoto de programa Giuseppe “Pino” Pelosi, de 17 anos. Pasolini o encontrou no começo da noite do dia 1º na praça em frente a estação ferroviária Roma Termini e o convidou para jantar. Vão ao histórico restaurante Al Biondo Tevere, comem espaguete, conversam e bebem cerveja. Pouco antes da meia-noite saem no Alfa Romeo prata em direção à praia. Param no meio do caminho para abastecer num posto self-service e seguem por uma estrada de terra.
(E aqui, uma elipse como na narrativa de um roteiro cinematográfico).
Por volta de 1h30 da manhã do dia 2, o rapaz é parado por uma patrulha dos carabinieri dirigindo em alta velocidade o automóvel do cineasta. É preso por roubo de carro e as evidências o levam a confessar o crime. “Matei Pasolini”, disse a um companheiro de cela na prisão juvenil de Casal del Marmo.
No depoimento “Pino” Pelosi relata que discutiram dentro veículo, saem e começam a brigar violentamente. Pega uma placa de madeira para se defender de Pasolini, bate em sua cabeça e o deixa gravemente ferido no chão. Diz que a morte foi acidental ao sair em disparada no carro, esmagando o peito do cineasta, partindo-lhe o coração.
Preso, incriminado, julgado e condenado a nove anos e sete meses de prisão, inicialmente nega a participação de outras pessoas. A imprensa italiana associou o caso a motivações políticas. Desde os anos 60 o país vivia tempos de chumbo, caracterizado por crises econômicas, conflitos sociais, massacres terroristas realizados por grupos extremistas com o envolvimento da Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos. Após a morte de Pasolini, esse período teve momento mais conturbado com o assassinato do líder democrata-cristão Aldo Moro, em 1978.
Pasolini era uma figura incômoda na cena cultural e política do país. Acabara de realizar o perturbador Salò, ou os 120 dias de Sodoma, baseado no livro 120 dias de Sodoma, ou Escola de Libertinismo, do nobre francês Donatien Alphonse François de Sade, o Marquês de Sade, escrito em 1785. O cineasta ambientou a história entre 1944 e 1945, durante a ocupação nazifascista, num castelo no norte da Itália. Governo, igreja, nobreza e magistratura são poderes representados por personagens doentios da estrutura fascista. Pasolini, com sua criatividade de adaptações de fatos históricos, relaciona esse período a uma conjunção de fatores com o surgimento nos anos 70 da juventude neofascista e governos totalitários. O filme foi exibido vinte dias depois de sua morte, no Festival de Cinema de Paris, causando desconforto na plateia. Em janeiro do ano seguinte, lançado na Itália.
Ao sair da prisão em julho de 1983, em liberdade condicional, depois de oito anos, “Pino” Pelosi continuou assumindo sozinho o assassinato. Mas em maio de 2005, em um programa de televisão da RAI, disse que outras três pessoas participaram do crime. Em 2011 lança Autobiografia, onde afirma, entre várias revelações surpreendentes, que já se encontrava com Pasolini antes do dia 1º e o define como “um cavalheiro”. Relata que na prisão foi torturado para que se responsabilizasse sozinho pelo crime. À época os jornais apelidaram o rapaz de "la rana" (o sapo), por causa de seus olhos inchados e esbugalhados, o que levou a suspeita de surra no interrogatório. Os pais dos três rapazes que estariam com ele e que teriam espancado Pasolini, o ameaçaram de morte com ajuda de policiais. Os tais senhores eram envolvidos em tráfico de drogas e militantes do Movimento Social Italiano-Direita Nacional, partido político fundado em 1946 por veteranos da República Social Italiana e ex-membros do regime fascista de Mussolini, como Arturo Michelini, famoso por ter participado da Guerra Civil Espanhola, apoiando as tropas nacionalistas de Franco.
(Desfaz-se a elipse acima)
Mesmo assim, no emaranhado de acusações e falta de provas concretas, sem credibilidade, dificuldade de mostrar que seu teorema de defesa está correto, “Pino” Pelosi voltou à prisão por outros delitos, como roubo, e nunca contribuiu efetivamente para a reconstituição da verdade sobre a morte de Pasolini. Nos últimos anos era sócio proprietário de um bar no bairro Testaccio, um dos mais tradicionais na capital italiana. Faleceu em julho de 2017 no quarto de uma policlínica, corroído por um avançado câncer no pulmão. Tinha 59 anos e muitos segredos daquela noite de finados em Ostia.
Em 2015 uma série de pinturas em homenagem ao cineasta apareceu em áreas ao redor do centro turístico de Roma e Ostia. O autor é o artista plástico francês Ernest Pignon-Ernest, e essa acima simboliza um duplo retrato de Pasolini carregando a si próprio, vivo e morto, modelado à maneira de Pietà, de Michelangelo.
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Texto para o meu livro em preparação, Crônicas do Olhar, com adaptações para esta postagem.
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