quinta-feira, 29 de outubro de 2020

o poeta que ouvia livros


Em 1977 Jorge Luis Borges deu sete palestras no famoso Teatro Coliseo de Buenos Aires. A cada noite abordava um tema. Falou sobre clássicos da literatura, a natureza da poesia, budismo, cabala... A semana de conferência foi publicada em livro em 1980, um volume de 61 páginas intitulado Siete noches, pela Editorial Meló, do México.

No último dia Borges falaria sobre professores religiosos gnósticos em Alexandria. Desistiu ali mesmo na mesa e preferiu conversar sobre sua cegueira, decorrida de problemas hereditários. A avó e o pai morreram cegos, “sorridentes e corajosos”, lembra. O poeta começou a perder a visão em 1955. Tinha 46 anos, 19 livros publicados, entre poesia, contos e ensaios, e dirigia a Biblioteca Nacional da Argentina.
Borges considerava a publicação uma das mais importantes de sua vida literária. "Não é ruim; eu penso sobre temas que tanto me obcecaram, este livro é meu testamento”, disse ao editor quando lhe perguntou o que achava do título sugerido.
E do livro o que mais me toca é o capítulo, La ceguera, a última noite no Coliseo. Em seis páginas “ouvimos” a fala de Borges sobre sua angústia, aceitação e descobertas com o glaucoma. A escuridão o estimulou a escrever mais do que antes. Ou melhor, não era escuridão. O poeta recusava o substantivo das trevas. Até questiona, logo no início da palestra, o verso do Soneto 27 de Shakespeare, “Looking on darkness, wich the blind to do see” / “Olhando na escuridão, o que os cegos veem”. Para Borges os cegos não estão em um mundo escuro, pois se há uma cor que não existe do lado de dentro, para ele, é o preto. Nem quando enxergava e fechava os olhos para dormir.
Borges ficou cego aos poucos. O “lento crepúsculo começou quando comecei a ver”, diz, estendeu-se a partir de 1899, quando nasceu, sem momentos dramáticos, “um crepúsculo lento que durou mais de meio século”, arremata num parágrafo. Mesmo vivendo num mundo incômodo e indefinido, o poeta processou e guardou várias cores, o amarelo, o azul, o verde, o branco que se confunde com cinza, “já o vermelho desapareceu completamente, mas espero que algum dia (estou em tratamento) melhorar e poder ver aquela cor ótima, aquela cor que brilha na poesia e que tem nomes em vários idiomas.”
Borges não aprendeu braile. Quando estava em uma livraria, ou na Biblioteca onde trabalhava, dizia que “ouvia os livros e os ambientes”. A luz do que as páginas narravam brilhava cores em sua audição, em sua percepção. Aquele é o universo do poeta. E assim Borges imaginava a quantidade de livros ao seu redor e o que eles contavam. Há muito tempo circula nas redes sociais uma frase em que o poeta imagina o Paraíso como uma biblioteca. O que virou um apressado e deslocado aforismo, sem identificar a procedência e contextualização, foi dito nos minutos iniciais de sua palestra sobre a cegueira, transcrito na página 53:
“Aos poucos, comecei a entender a estranha ironia dos acontecimentos. Sempre imaginei o Paraíso sob uma espécie de biblioteca. Outras pessoas pensam em um jardim, outras podem pensar em um palácio. Lá estava eu. Era, de alguma forma, o centro de novecentos mil volumes em vários idiomas.”
Borges, na verdade, cita a si mesmo. Logo quando o crepúsculo começou em sua vida, escreveu o longo Poema dos dons, publicado no livro El hacedor, 1960. Composto de dez quartetos, o poeta relata o desenvolvimento gradativo de um mundo que sumia e outro que chegava: “Lento nas sombras, a penumbra e o nada / Exploro com o báculo indeciso, / Eu, que me figurava o Paraíso / Como uma biblioteca refinada”, em tradução de Augusto de Campos.
O Dia Internacional do Livro é comemorado em 23 de abril, referência da UNESCO às datas de falecimento de Miguel de Cervantes e William Shakespeare, em 1616. No Brasil, o Dia Nacional do Livro é celebrado hoje, 29 de outubro, em homenagem à fundação da Biblioteca Nacional, em 1810, com a transferência da Real Biblioteca portuguesa para cá.
Nas duas datas, e todos os dias, imaginemos o Paraíso como uma grande biblioteca.
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Do meu livro em preparação Crônicas do Olhar, com adaptações para esta postagem.
foto: Daniel Mordzinski, cena do documentário Borges para milhões, de Ricardo Wullincher, 1978.

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