Em meados de 1846 o escritor Edgar Allan Poe afastou-se dos meios literários e dedicou-se a cuidar de sua esposa Virginia, que padecia há cinco anos de tuberculose. Isolaram-se num chalé rodeado de verde e ar puro no Bronx, perto de Manhattan. Poe ainda vivia a repercussão do poema O corvo, publicado um ano antes, a crítica o acolhera com maior atenção, mas continuava enfrentando dificuldades financeiras.
Em janeiro de 1847, a esposa falece e Poe fica atordoado, sem direção. Entrega-se à melancolia, à bebida, e, segundo alguns pesquisadores, ao ópio. Procura antigas musas da juventude, e em vão as tentativas de um relacionamento estável e aquietar a alma. Poemas, contos e ensaios que publicou nesse período não obtiveram o destaque que O corvo causou com sua musicalidade, linguagem estilizada e atmosfera sobrenatural.
Durante todo o primeiro semestre de 1849 Edgar Allan Poe fica recluso em casa, em Nova York, com a sogra e uma tia. Consolam-se. Em julho, parte, repentina e inexplicavelmente, para Richmond, capital do estado de Virginia. Escreve cartas atormentadas para a sogra ("Cheguei aqui com dois dólares, dos quais te mando um. Oh, Deus, minha mãe! Nos veremos outra vez? Oh, vem se podes!”), à tia (“Agora já de nada serve argumentar comigo; não posso mais, tenho que morrer.”), e surpreendentemente uma missiva esperançosa ("Os jornais têm me elogiado; em todas as partes me recebem com entusiasmo.").
Biógrafos relatam que o escritor teria se empolgado com o reconhecimento de seus últimos trabalhos, principalmente Eureka: Um poema em prosa, dissertação cosmológica que previu a teoria do Big Bang 80 anos antes do seu surgimento. Sabe-se que ele logo embarcou em uma balsa de Richmond para Baltimore e depois seguiria até Nova York, com a intenção de trabalhar em casa e arrecadar recursos para a criação de uma revista literária. Mas não completou a viagem.
No dia 3 de outubro daquele angustiante 1849, Edgar Allan Poe foi encontrado por um tipógrafo delirando numa sarjeta, em frente a uma taverna, em Baltimore, em estado deplorável, cabelos despenteados, olhos vazios e sem brilho, usando roupas estranhas, largas e sujas, que não eram suas. Era marca de Poe o impecável terno preto de lã. Levado ao hospital, o escritor agonizou durante quatro dias. Faleceu pontualmente às 22h do dia 7, chamando por um certo “Reynolds”, e clamando “Deus, ajude a minha pobre alma!”.
Ao longo de quase dois séculos são várias as especulações sobre a causa da misteriosa morte de Edgar Allan Poe: espancamento, envenenamento, infarto, raiva, epilepsia, alcoolismo, tumor cerebral, sífilis, cólera, hipoglicemia, assassinato... O atestado de óbito nunca foi encontrado. Nem nos enredos ficcionais de seus livros houve tanta impenetrabilidade.
O escritor argentino Julio Cortázar, um estudioso da vida e obra de Poe, tradutor de muitos de seus livros em prosa, teoriza que o “Reynolds” a que se referia no delírio, entre outras possibilidades, seria Jeremiah Reynolds, um editor de jornal e explorador que poderia ter inspirado o personagem de O Relato de Arthur Gordon Pym, o único do gênero romance.
Hoje, nesta lembrança dos 171 anos da morte de Poe, na minha modesta observação de leitor e admirador de sua literatura, ouso um paralelo do estado febril no seu leito derradeiro com a narrativa do seu sombrio O corvo, um dos mais belos poemas anglófonos já escritos:
- aquele black bird, assum preto, como sendo a figura da morte que o visitava em descompasso anunciador naquela alta hora (“Em certo dia, à hora, à hora / Da meia-noite que apavora,/ Eu, caindo de sono e exausto de fadiga”);
- e entra em sua sala e pousa sobre um busto da Palas Atena, não à toa a deusa da civilização e da sabedoria, aquela que detém a verdade (“friamente posta (...) acima dos portais”);
- e diante questionamentos e lamentos de sua vida em desalinho ("Perdi outrora / Tantos amigos tão leais!”);
- diante o medo torturante, o cruel mistério que nas asas do estranho pássaro se estende (“Profeta, ou o que quer que sejas!/ Ave ou demônio que negrejas! (...) Pelo Deus que ambos adoramos, fala”);
- tem às repetidas e martirizantes perguntas de quem és, o que queres, qual o seu nome, a firme, intrigante e enigmática resposta “nunca mais", "nunca mais", nunca mais”.
Reynolds, arrisco, é o nome do corvo que visitou o poeta louco americano em seu leito terminal no hospital em Baltimore. E trouxe a ele a unção, o último suspiro que “No chão espraia a triste sombra; e, fora / Daquelas linhas funerais / Que flutuam no chão, a minha alma que chora.”
Ou: “Deus, ajude a minha pobre alma!”, sem ter chegado à Nova York.
O passado nunca mais.
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Do meu livro em preparação Crônicas do Olhar, com adaptações para esta postagem.
Obs.: a tradução de O corvo, de onde retirei os versos, é a de Machado de Assis. Há outras duas conhecidas, de Fernando Pessoa e do escritor Milton Amado, essa considerada a que melhor traduz a essência do poema.
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