Em meados dos anos 70 Tom Zé foi à grande rodoviária da capital paulista entrevistar nordestinos que aparecessem diante seus olhos. O cantor e compositor baiano queria colher material genuíno de sentimentos para o programa que o jornalista Fernando Faro apresentava na TV Cultura, MPB Especial – criado em 1969 como Ensaio, voltou ao nome de origem a partir de 1990.
Com seus olhos miúdos, atentos e profundos, Tom Zé viu uma moça morena na janela do ônibus se despedir da mãe com uma furtiva lágrima: “bença, mãe”. Era dezembro e a filha viajava para uma cidade do Nordeste para passar o Natal com os parentes que lá ficaram. O compositor se comoveu com a cena. A imagem não saiu de seu coração. A mãe abençoando e liberando as lágrimas enquanto o ônibus dava ré para sair, a moça acenando adeusinho misturando saudade com alegria de pegar estrada e rever outros queridos.
Conhecedor da alma desse universo de migrantes, Tom Zé partiu do pedido de benção que ficou no ar barulhento da rodoviária, e pegou como mote para compor uma canção. Preparava músicas para o próximo disco, vinha do conceitual e inventivo Todos os olhos, 1973, painel também sentimental de um nordestino na metrópole, e de Estudando o samba, 1976, uma releitura experimental e extremamente criativa do gênero. Agora Tom Zé faria um disco falando sobre os sonhos do nordestino que parte para o chamado Sul Maravilha, que sonha “viver bem civilizado, pagar imposto de renda / ser eleitor registrado, ter geladeira e TV / carteira do ministério, ter CIC, ter RG”, e que um dia na cidade grande possa “botar filho no colégio, dar picolé na merenda”, e quanto ao sertão “só volto lá a passeio, no gozo do meu recreio / só volto lá quando puder comprar um óculos escuro”.
E assim, com esse mapeamento afetivo de encantamento, devaneios e ilusões dos que arribam de suas terras, Tom Zé compôs a canção que abre o disco Correio da Estação do Brás, lançado em 1978, uma obra-prima do cancioneiro brasileiro. Nele, o cantor, através das onze faixas, expressa-se nos versos emotivos como quem traz e leva notícias de saudades mil e de esperanças infindas, como um portador para "quem quiser mandar recado / remeter pacote / uma carta cativante", como diz outra letra, a da música-título do disco.
E a canção inspiradora, Tom Zé pensou inicialmente em nomeá-la com o pedido retumbante "Bença, mãe", mas mudou para Menina Jesus, uma homenagem ao rosto de espírito inteiro na moldura da janela do ônibus. O compositor, dessa forma, inverte o percurso migratório e belamente feminiza a divindade de Jesus, o transitivo direto e pronominal agora menina, a que volta a passeio ao chão sagrado de origem para a ceia natalina.
Acima no vídeo, Tom Zé no programa Sr. Brasil, da TV Cultura, em 14 de maio de 2016, cantando o encanto da canção.
O cantor celebra hoje 84 anos idade. Salve, salve, eterno menino Jesus de Irará!
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Do meu livro em preparação Crônicas do Olhar, com adaptações para esta postagem.
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