terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

cardápio dos prazeres

No começo de 1963, dona Euzébia Silva do Nascimento e seu marido Angenor de Oliveira moravam num sobrado na Rua dos Andradas, no centro do Rio de Janeiro. Ele era zelador do prédio e ela vendia marmitas para os motoristas e os cobradores de ônibus da Praça Mauá.
Ali funcionava a Associação das Escolas de Samba, e o casal, sambistas da Mangueira, organizava rodas de samba nos fins de semana. Cozinheira de mão cheia de temperos, dona Euzébia fazia uns pratinhos saborosos para os frequentadores animados. O samba e a comida foram se espalhando em comentários, o público aumentou, e um pequeno empresário amigo do casal propôs uma sociedade: criar um restaurante. E deu certo.
Como o prédio da Associação seria demolido em breve, o casal, agora sambistas-empresários, mudou-se para um endereço próximo, na Rua da Carioca. Em setembro daquele ano foi inaugurado o restaurante com a razão social Refeição Caseira Ltda, mais conhecido como Zicartola, acrônico dos apelidos Zica (dona Euzébia) e Cartola (seu Angenor).
O livro Zicartola: Política e Samba na Casa de Cartola e Dona Zica, do historiador Maurício Barros de Castro, lançado em 2004, é uma preciosidade em informações sobre esse local importante na música brasileira. O autor faz a biografia de uma época e espaço gastronômico, onde passaram os maiores compositores de samba e nomes de resistência cultural ao golpe de 1964.
As pessoas se apertavam no pequeno salão para se deliciar com os pratos de Dona Zica e ouvir os sambas de Carlos Cachaça, Elton Medeiros, Nelson Cavaquinho, Nelson Sargento, Ismael Silva, Zé Keti, e, entre tantos, o próprio Cartola, e a turma da Bossa Nova, como Carlos Lira e Nara Leão.
O poeta Ferreira Gullar, o compositor e produtor musical Hermínio Bello de Carvalho, o dramaturgo e ator Oduvaldo Viana Júnior, a atriz Leila Diniz, o cineasta Luiz Carlos Lacerda, o carnavalesco e cenógrafo Fernando Pamplona, eram alguns que marcavam presença no restaurante.
O jornalista e pesquisador Sérgio Cabral deu o nome artístico a um rapaz franzino, bancário, que mostrava umas composições que atraiam a atenção de todos: Paulo César Batista de Farias não era nome de sambista, disse Cabral, seria a partir daquele dia Paulinho da Viola. E foi lá que ele recebeu o primeiro cachê como cantor, das mãos do mestre Cartola.
O sócio do restaurante não conseguiu continuar e deixou aos cuidados de Dona Zica e Cartola, que sem jeito para administração, passaram o ponto para Jackson do Pandeiro, que também não deu conta de segurar o comércio com forró e comida nordestina. Em maio de 1965 fechou de vez.
No restaurante Zicartola tudo era talento e prazer: a comida, os fregueses, a música... até o ilustrador do cardápio foi o compositor e pintor Heitor dos Prazeres.

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