sábado, 29 de fevereiro de 2020

passeando com Belchior

“Vamos andar / pelas ruas de São Paulo / por entre os carros de São Paulo / meu amor, vamos andar e passear”
- versos de Passeio, Belchior, gravado em seu primeiro disco, 1974.
O fotógrafo e graphic designer paulista Pedro Banlian é um admirador do cantor cearense. Seu trabalho com imagens, fazendo ensaios, captando o interior das pessoas através de suas lentes, se estende pelos vieses das ruas, num diálogo necessário do artista com a metrópole, colocando o afeto de seu coração urbano na “eletricidade dessa cidade”, como diz Belchior noutro trecho da canção.
Pedro tem o projeto Colo Uns Belchior Pelas Ruas, com intervenções de suas colagens pelos muros, pelos postes, pelas galerias de metrô... onde o olhar alcançar e dizer que “me dá vontade de gritar / que apaixonado eu sou”.
Sua página no Instagram é um passeio de corações dados pelas ruas São Paulo: @alecrinpe.
Desde o dia 30 de abril de 2017 que Belchior continua pelas ruas de todos nós. Hoje, dois anos e dez meses de uma saudade bissexta.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

o energúmeno

Os presidentes do período da ditadura militar, ao sair do executivo, não costumavam dar depoimentos, registrar suas impressões ao longo da vida pública. O general Ernesto Geisel, que governou de 1974 a 1979, justamente o que mais evitava a imprensa e historiadores, concedeu entrevista aos pesquisadores Maria Celina D’Araújo, doutora em ciências políticas, e Celso Castro, doutor em antropologia social, ambos da Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, da Fundação Getúlio Vargas.
O encontro foi em 1993, três anos antes do falecimento de Geisel. O Brasil era presidido por Itamar Franco, clima de plebiscito para a escolha e a forma de governo, instituição da Unidade Real de Valor (URV), que deu início ao programa do Plano Real.
Geisel conversou horas e horas com os pesquisadores. Falou sobre a infância no Rio Grande do Sul, a formação profissional e intelectual, as funções na administração pública e experiência no Exército, sua participação nas ações na Revolução de 1930 e combate a Revolução Constitucionalista de 1932, e, obviamente, sua atuação no regime militar antes, durante e depois da presidência da República.
O resultado da longa entrevista resultou no livro Ernesto Geisel, publicado pela Editora Fundação Getúlio Vargas, 1997.
Na página 113, o general fala sobre a presença de militares no Congresso Nacional. O abjeto, o inepto, a alma sebosa que atualmente ocupa a cadeira de presidente no Palácio do Planalto, e à época era deputado federal pelo Rio de Janeiro, é citado e devidamente classificado.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

cinzas e nada mais

À parte um ou outro conceito religioso, todas as crenças convergem a uma só direção. As cinzas simbolizam a reflexão, a conversão, a mudança, a passageira, transitória, efêmera fragilidade da vida humana, sujeita à morte.
"Quarta-feira de cinzas", belíssimo quadro do pintor alemão Carl Spitzweg, século 19.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

cardápio dos prazeres

No começo de 1963, dona Euzébia Silva do Nascimento e seu marido Angenor de Oliveira moravam num sobrado na Rua dos Andradas, no centro do Rio de Janeiro. Ele era zelador do prédio e ela vendia marmitas para os motoristas e os cobradores de ônibus da Praça Mauá.
Ali funcionava a Associação das Escolas de Samba, e o casal, sambistas da Mangueira, organizava rodas de samba nos fins de semana. Cozinheira de mão cheia de temperos, dona Euzébia fazia uns pratinhos saborosos para os frequentadores animados. O samba e a comida foram se espalhando em comentários, o público aumentou, e um pequeno empresário amigo do casal propôs uma sociedade: criar um restaurante. E deu certo.
Como o prédio da Associação seria demolido em breve, o casal, agora sambistas-empresários, mudou-se para um endereço próximo, na Rua da Carioca. Em setembro daquele ano foi inaugurado o restaurante com a razão social Refeição Caseira Ltda, mais conhecido como Zicartola, acrônico dos apelidos Zica (dona Euzébia) e Cartola (seu Angenor).
O livro Zicartola: Política e Samba na Casa de Cartola e Dona Zica, do historiador Maurício Barros de Castro, lançado em 2004, é uma preciosidade em informações sobre esse local importante na música brasileira. O autor faz a biografia de uma época e espaço gastronômico, onde passaram os maiores compositores de samba e nomes de resistência cultural ao golpe de 1964.
As pessoas se apertavam no pequeno salão para se deliciar com os pratos de Dona Zica e ouvir os sambas de Carlos Cachaça, Elton Medeiros, Nelson Cavaquinho, Nelson Sargento, Ismael Silva, Zé Keti, e, entre tantos, o próprio Cartola, e a turma da Bossa Nova, como Carlos Lira e Nara Leão.
O poeta Ferreira Gullar, o compositor e produtor musical Hermínio Bello de Carvalho, o dramaturgo e ator Oduvaldo Viana Júnior, a atriz Leila Diniz, o cineasta Luiz Carlos Lacerda, o carnavalesco e cenógrafo Fernando Pamplona, eram alguns que marcavam presença no restaurante.
O jornalista e pesquisador Sérgio Cabral deu o nome artístico a um rapaz franzino, bancário, que mostrava umas composições que atraiam a atenção de todos: Paulo César Batista de Farias não era nome de sambista, disse Cabral, seria a partir daquele dia Paulinho da Viola. E foi lá que ele recebeu o primeiro cachê como cantor, das mãos do mestre Cartola.
O sócio do restaurante não conseguiu continuar e deixou aos cuidados de Dona Zica e Cartola, que sem jeito para administração, passaram o ponto para Jackson do Pandeiro, que também não deu conta de segurar o comércio com forró e comida nordestina. Em maio de 1965 fechou de vez.
No restaurante Zicartola tudo era talento e prazer: a comida, os fregueses, a música... até o ilustrador do cardápio foi o compositor e pintor Heitor dos Prazeres.

outra paisagem

O fotógrafo Alexey Menschikov estende sua percepção pelas ruas de Penza, uma bucólica cidade às margens do rio Suna, na Rússia.
Aproveita rachaduras nas paredes e asfalto, tubulações, galhos de árvores nas calçadas, e o que achar que possa interferir desenhando sua arte de rua.
O aparentemente inerte se insere na paisagem urbana, minimalista e pulsante.

as cartas de Fernando

foto: Fernando Gomes / Agência O Globo, 1995
"E tem o seguinte, meus senhores: não vamos enlouquecer, nem nos matar, nem desistir. Pelo contrário: vamos ficar ótimos e incomodar bastante ainda."
- Trecho de uma carta de Caio Fernando Abreu a sua amiga Jacqueline Cantore, em 1° de novembro de 1981.
O escritor gaúcho foi um missivista compulsivo. De sua Olivetti Lettera 44, datilografou uma infinidade de cartas, com forte essência poética, dos mais variados e cotidianos assuntos, de fatos comezinhos a reflexões existenciais e filosóficas. Escritores, atores, cantores, amigos, eram os destinatários.
O poeta, curador literário e professor da UFRJ Ítalo Morriconi, numa pesquisa minuciosa, reuniu dezenas dessas cartas, juntamente com escritos de cartões postais, bilhetes, e publicou em 2002 o livro Caio Fernando Abreu: Cartas, com mais de 500 páginas, o que nos dá com a narrativa fragmentada uma espécie de um romance de vida, de fôlego combativo e resistente.
24 anos hoje que ele faleceu, aos 47. Caio Fernando Abreu viveu em período brabo de ditadura militar, foi um dos primeiros a escrever abertamente sobre sexo numa visão dramática, e assumiu sem rodeios sua homossexualidade.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

através da palavra

A Poesia de Nirton Venancio de provisoriedade não tem nada. É definitiva e eterna, como é - por definição - a verdadeira e boa Poesia.

Marcada pela pós-Modernidade, como os de 22, com sua forma bem humorada de reler o cotidiano e de seus signos, mas "manchando de humano o lago" (Mário de Sá-Carneiro) dessa paisagem sobre a qual aponta seu observatório poético ("Dói / este cotidiano gesto / de ser poeta / e explorar as tardes / com seus terrenos / suas nuvens, / suas esquinas (...)".

Tanto a atemporalidade quanto o redimensionamento da linguagem regional diagnosticam uma claustrofóbica insatisfação e desejo de universalidade ("dentro de mim/cabe o universo/ e mais o vilarejo onde nasci."). Evocação dos versos de Drummond ("Tenho duas mãos/ E o sentimento do mundo"). Poeta, aliás, que surge frequentemente como sua maior influência. ("Não sei nadar / nem andar de bicicleta. // Mas sei / abraçar / caminhar ao teu lado / e escrever poemas para atravessar os dias. / Para alguma coisa servem as minhas inutilidades."). Com uma pitada de Manoel de Barros nesse verso final. Quase como um ex-libris da pretendida transitoriedade de sua Poesia.


Neste seu mundo habitado por questionamentos filosóficos e existenciais é através dela, de sua Poesia, que já deixou sua marca - a cada um o sítio arqueológico que lhe cabe - através da Palavra. Iluminada palavra que abre seus caminhos próprios.

a rosa vermelha é do bem querer

Em 1967 o cantor Ronnie Von pediu a Caetano Veloso uma música para o seu terceiro LP, algo que “seja ao mesmo tempo samba, bossa-nova, iê-iê-iê”, disse à época em entrevista ao Jornal dos Sports.
Ronnie vinha de sucessos estrondosos, como Meu bem (versão de “Girl”, de Lennon-McCartney, disco Rubber Soul, 1965) e A praça, de Carlos Imperial, gravados respectivamente nos LPs Ronnie Von, 1965, e O novo ídolo, 1967, e não pertenceu ao reinado da Jovem Guarda, apesar do título de Príncipe imposto pelas gravadoras, das canções de letras ingênuas e da linguagem musical do rock dos anos 50 e dos Beatles. O cantor flertava mesmo era com o psicodelismo, o que se confirmou com o disco A Misteriosa Luta do Reino de Parassempre Contra o Império de Nuncamais, 1969, uma preciosidade pós-AI5 e efervescência tropicalista. Foi Ronnie Von quem batizou um grupo de dois irmãos e uma loirinha de voz linda, que se chamava-se Os Bruxos, de Os Mutantes, inspirado no título o livro do escritor francês de ficção científica Stevan Wul, O Império dos Mutantes.
Quando o cantor fez o convite a Caetano, queria mesmo algo diferente para romper com qualquer rótulo, alguma coisa que misturasse tudo e chateasse todos. Elis Regina quando soube que o baiano tinha topado a encomenda, ficou estarrecida e disse em uma entrevista que "Não é possível! Caetano Veloso está se corrompendo tomando uma iniciativa dessa! O cabelo encaracolado está se deteriorando fazendo fusão de duas frentes musicais completamente distintas e nunca se viram com bons olhos. Isso é incoerência.”
A “Pimentinha” estaria se referindo à turma do iê-iê-iê das jovens tarde de domingo de Roberto Carlos e aos vanguardistas da Tropicália. Nem meio bossa-nova nem meio rock'n'roll, muito menos um pierrot retrocesso, Caetano Veloso compôs “Pra chatear” e ainda fez duo na gravação. O disco, Ronnie Von n° 3, saiu no final do mesmo ano em que o cantor lançou o segundo. Quantidade à altura de qualidade.
A composição parte do refrão de A ciranda da rosa vermelha, motivo folclórico pernambucano, ”A rosa vermelha / é do bem querer / a rosa vermelha e branca / hei de amar até morrer”. Caetano desenvolve uma narrativa de enredo urbano com elementos bucólicos, “A minha casa é guardada / no oitavo andar do edifício / de onde eu vejo o jardim, / cresce guardado e difícil. / No jardim cresce outra rosa, rosa de rosa e jardim / que nasceu vermelha e branca, como se fosse pra mim", e lamenta a contradição de saber que na sala de sua casa tem um jarro sobre a mesa e “Não sei se a rosa é de rosa / matéria plástica ou pano”.
Assim como o compositor trouxe para um canto atual o folclore, a ciranda - dança popular de origem portuguesa que se espalhou em Pernambuco, mais precisamente na Ilha de Itamaracá, através das mulheres de pescadores que cantavam e dançavam esperando-os chegarem do mar – Caetano colocou na cidade o conflito da natureza de um jardim lá embaixo aos pés de um edifício onde as rosas são artificiais lá em cima sobre a mesa de um apartamento.
E juntou ele mesmo, Caetano, com ele mesmo, Ronnie Von. A musicalidade inventiva debaixo dos caracóis de seus cabelos com a cabeleira lisa daquele rapaz bonito que rejeitava título nobre da juventude e avançava a um trabalho de inovações sonoras, experimentais.
Em 1997, Alceu Valença adaptou a mesma Ciranda da rosa vermelha e estendeu a letra numa outra bela canção, com a gravação de Elba Ramalho no disco Baioque, 1997.
Como diz a versão de Caetano para Ronnie Von, a música brasileira sabe “fazer qualquer coisa / bonita pra chatear.”

sábado, 22 de fevereiro de 2020

ah, tela de luz puríssima

“Ah, Giulietta Masina / Ah, vídeo de uma outra luz / Pálpebras de neblina, pele d'alma / Giulietta Masina”
- versos da canção Giulietta Masina, de Caetano Veloso, gravada no disco, Omaggio a Federico e Giulietta, 1999.
Giulietta Masina interpreta uma prostituta nas ruas de Roma nos anos 50, no clássico Noites de Cabíria, dirigido pelo marido Federico Fellini. O filme é de 1957, e impossível não se comover com essa mulher ingênua, que sonha com o amor perfeito, que acredita na bondade de todos, o que a faz sofrer com as constantes decepções.
Caetano Veloso, ao compor a canção, traduziu bem a beleza de interpretação da atriz, que se entrega e se integra à pureza de um dos seus personagens mais marcantes.
Fellini e Giulietta comemoraram cinco décadas de casamento em 30 de outubro de 1993. No dia seguinte aos festejos, o cineasta dormiu para sempre. Cinco meses depois Giulietta o segue, torna-se “vídeo de uma outra luz”.
Hoje ela faria 99 anos de luz puríssima.

o que acontecia com miss Simone

Foto: Daily Mirror
"Quando ela se apresentava, era brilhante, era amada. Ela também era uma revolucionária. Ela achou um propósito no palco, um lugar no qual poderia usar a voz para defender seu povo. Porém, ao fim do espetáculo todos iam para casa. Ela ficava sozinha e continuava combatendo seus próprios demônios, tomados de raiva e fúria. Ela não se aguentava e tudo vinha abaixo."
- Lisa Simone Kelly, filha de Nina Simone, em entrevista no documentário, What happened, miss Simone?, de Liz Garbus, 2015.

Eunice Kathleen Waymon adotou o nome artístico aos 20 anos, para cantar blues escondida dos pais. "Nina" veio do espanhol, "Simone" em homenagem à atriz francesa Simone Signoret.
A cantora teria completado ontem 87 anos de nascimento. Em 2003, faleceu enquanto dormia, abatida por câncer de mama. Não aguentou e veio tudo abaixo no sono, 70 anos de Eunice, 57 de Nina Simone.
Acima, Lisa aos seis anos com a mãe, após um show em Londres, 1968. 

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

duas obras

Foto: Coleção José Medeiros/Acervo Instituto Moreira Salles
A mais de 500 metros acima do nível do mar, mais alto que o Pão de Açúcar, mais baixo que o Corcovado, o Morro Dois Irmãos sobe o bairro do Vidigal, na cidade do Rio de Janeiro, e lá de cima o olhar se estende pelo Leblon, Ipanema, Copacabana, Gávea, São Conrado, e vê-se o Cristo Redentor e a comunidade da Rocinha.
Do alto, as retinas que miram a beleza, filtram o murmúrio da cidade, as ruas em convulsão, os homens e seus muitos irmãos, seus tantos desafetos, entre trânsito e transe, entre mares e margens, entre rios e janeiros.
Debaixo, “aprendi a respeitar tua prumada / e desconfiar do teu silêncio”, como cantou Chico Buarque em Morro Dois Irmãos, 1989. Orquídeas, bromélias, antúrio, velózia, esquilos, gambás, gavião, pica-pau, a natureza que as retinas sabem e ouvem "a pulsação atravessada / do que foi e o que será noutra existência / é assim como se a rocha dilatada / fosse uma concentração de tempos”, ainda Chico em louvação.
A montanha aponta o mar sem medo dos homens. As luzes brilham no Vidigal / e não precisam de você. / Os Dois Irmãos também não precisam", como salientou o poeta Antônio Cícero nos versos de Virgem, que Marina Lima gravou no disco de 1987. Os dois irmãos em referência e reverência aos Dois Irmãos.
Em 1952, o fotógrafo José Medeiros, um poeta da luz, do Arpoador fez a belíssima imagem do Morro, com a Pedra da Gávea, as praias de Ipanema e Leblon, e a moldura de dois carros para os irmãos ao fundo.
Nas canções e na fotografia, e na mesma linha, a cabeça, o olho e o coração, como dizia Cartier-Bresson.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

o santo guerreiro e o dragão da maldade

Na foto, José Mojica Marins, o nosso arquétipo tupiniquim Zé do Caixão, de frente para o Drácula de Christopher Lee, personagem vulpino das trevas transilvânicas.
A imagem é curiosamente simbólica. O cinema do chamado Terceiro Mundo, com sua tática de produção de guerrilha, de dificuldades de realização, a feitura trash que cria uma narrativa inventiva, diante de um cinema de Primeiro Mundo, com mais condições de provocar medo e um mercado de distribuição assustador para nosso cinema.

Mas Zé do Caixão colocava suas unhas grandes sobre eles.
O encontro dos atores aconteceu durante um domingo “sinistro” na 3ª Convenção do Cinema Fantástico, em Paris, 1974.
Adoentado desde 2014, quando sofreu um infarto, problemas de saúde crescentes, um rim comprometido, infecções no cateter, e um pouco de degeneração mental pela senilidade, Mojica Marins faleceu hoje aos 83 anos.

pra você, Marielle

"Vou deixar a rua me levar
ver a cidade se acender
a lua vai banhar esse lugar
eu vou lembrar você",

- versos de Pra rua me levar, de Ana Carolina e Antonio Villeroy, disco Estampado, 2003.

como vovó já dizia

“Quem desistir, encurta a fita. Quem continua, deixa para morrer depois”
- Trecho de Minha avó e seus mistérios - Memórias inspirativas, de Frei Betto, lançado ano passado.
O frade dominicano, jornalista e escritor, autor de mais de 60 livros, evoca as lições de vida de sua avó Maria Zina, e com uma escrita de um lirismo cativante, traz as memórias dele e parece de todos nós, nos relatos de suas perguntas sobre questões da vida, as respostas com clareza e bom humor, a filosofia nutrida na simplicidade de bolo de milho com café num final de tarde, sobre uma mesa com toalha xadrez.
A personagem da simpática senhora, lá das montanhas de Minas Gerais, parece tirada de uma narrativa de realismo fantástico, tão encantadora a construção de seus ensinamentos, exemplos e aforismos.
Um manual de bem-viver, de deixar para morrer depois.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

o século do cinema

O italiano Renato Casaro, 84 anos, é um dos maiores artistas gráficos criadores de cartazes de filmes. Clássicos do western spaghetti, como Meu nome é ninguém, de Tonino Valeri, todos de Sergio Leone, muitos da série 007, vários de Rambo, Conan, além de filmes de Claude Lelouch, Francis Ford Coppola, Bernardo Bertolucci, Luc Besson, Franco Zeffirelli e Rainer Werner Fassbinder.
Em Era uma vez em Hollywood, de Quentin Tarantino, 2019, o personagem fictício Rick Dalton, uma mistura de astros da década de 60, interpretado por Leonardo DiCaprio, tem vários de seus filmes que aparecem ao longo da história. Renato Casaro foi convidado por Tarantino para criar os cartazes.
Em 1995 o cinema completou um século de existência. Casaro criou o pôster acima, 100 Years of Film, para celebrar a data.
Nossa memória afetiva em cartaz, dirigida por Fellini.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

verbo educar


se todos fossem iguais a você

"Nada possuir, nada carregar, nada pedir, nada calar e, sobretudo, nada matar", um dos lemas de Dom Pedro Casaldáliga, apostólico da prelazia de São Félix do Araguaia.
Sua total dedicação a atividade pastoral o tornou alvo de inúmeras ameaças de morte. Durante a ditadura militar, foi por cinco vezes ameaçado com processos de expulsão do Brasil.
Dom Pedro completou ontem 92 anos. Está com a saúde física bastante debilitada pelo mal de Packinson, mas o coração cheio de vida!

o último carnaval

ilustração Elifas Andreato
No dia 17 de fevereiro de 1973, Alfredo da Rocha Viana Filho, o nosso Pixinguinha, veste o seu melhor e mais engomado terno de linho branco, e de sua casa, em Ramos, zona norte do Rio de Janeiro, segue para o batizado do filho de um grande amigo, na Igreja Nossa Senhora da Paz, em Ipanema.
Era pleno sábado de carnaval. Estivera adoentado naqueles últimos dias, mas o mestre atravessa a cidade entre alguns foliões, sereno e contente com o seu compromisso.
Já se aproximando o final da cerimônia, logo após a criança receber a água benta, Pixinguinha afrouxa a gravata, passa o lenço na testa... começa a passar mal. Em segundos cai, fulminado por um infarto.
A notícia se espalha rápido pelas ruas do bairro. Naquele momento, cai um temporal na capital carioca. Mesmo assim, componentes da Banda Ipanema, que estavam próximos da igreja, continuam o desfile e tocam "Carinhoso" entre lágrimas, chuva e confetes, em um enredo improvisado de reverência.
O coração de todos batendo triste, os olhos chorando e seguindo o mestre pelas ruas de um outro carnaval.


o homem que amou o Brasil

foto Acervo Fundação Darcy Ribeiro
"Doutora, estou com uma vontade de dar uma aula, a senhora me traz uma criança pra eu dar a aula?“.
O antropólogo Darcy Ribeiro fez esse pedido no hospital, pouco antes de morrer, em 17 de fevereiro de 1997.
Ali no leito, deu aula a uma criança de 9 anos. Falou sobre o Brasil, sobre a importância de respeitar todas as culturas. Falou sobre escolas e sambódromos. Era o testamento que ele queria deixar.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

um coração afinado

"Naquele dia, não sei porque, fui dormir e não esperei ele chegar. Soube que ele chegou, tirou o paletó, sentou ao piano e tocou ‘Noturno’. Quando terminou, virou o pescoço para trás, como se fosse descansar, e não acordou mais".
Assim relata o pianista e professor Renato Mendonça sobre a morte do seu pai, o compositor Newton Mendonça, aos 33 anos, em 1960. O filho não dormia enquanto ele não chegasse trazendo uma barra de chocolate. Mas naquela noite o sono do menino não deixou ver o sono definitivo do pai, abatido por uma nota só de um enfarto no silêncio noturno de sua casa.
Newton Mendonça, que hoje faria 93 anos, foi um dos principais criadores da Bossa Nova, quando João Gilberto gravou Desafinado, parceria com Tom Jobim, no seu primeiro disco, Chega de saudade, 1959.
Assim como a faixa-título, a composição tornou-se icônica naquele jeito novo de cantar, quase sussurrando no ouvido o que dizia o peito de um desafinado.
Mendonça deixou poucas canções, mas todas com sucesso e reconhecimento por quem gravou. Revelou-se na história da música brasileira a nossa enorme gratidão.
Acima, na granulação de uma foto de álbum de família, os corações afinados dos Mendonças: o grão do pai, o pão do filho.

você tem fome de quê?

Em novembro de 2014 foi apresentada no Teatro Universitário Paschoal Carlos Magno, em Fortaleza, a peça Tudo ao mesmo tempo agora, texto e direção de Maria Vitória, montagem do Grupo Terceiro Corpo. As personagens preparam um jantar e convidam a plateia à mesa. Impossível não aceitar a oferta de comida, diversão e arte propostas pelo trabalho das atrizes Sara Síntique, Jéssica Teixeira, Maria Vitória e Nádia Fabrici, todas ao mesmo tempo Úrsula Laura, dona de casa e bailarina.
Tudo ao mesmo tempo agora é denso, tenso, largo, profundo, inquietante, não se sai dessa ceia impunemente. Reflete-se enquanto se saboreia o alimento da arte.
O belíssimo trabalho no palco tem a química perfeita de atuação do elenco, aliás, mais do que química, é alquimia de quem prepara a refeição, a beleza de quem conversa com a comida.
A peça voltou a cartaz ontem e segue até amanhã, no Porto Dragão. Aceite o convite para jantar teatro do mais alto sabor.

Casa-Grande & Senzala

Lá pelo final dos anos 60 e começo dos 70, quando o "rei" Roberto Carlos, vindo do pequeno Cachoeiro, com seu ar de moço bom, dizia pras namoradas mil que "te darei o céu, meu bem, e o meu amor também", o goiano de Morrinhos Odair José se apaixonava perdidamente por uma empregada doméstica.
Odair genuinamente ia na contramão dos bons costumes desse bailinho, em plena ditadura militar, que implacavelmente censurou suas letras, vistas como um acinte à tradição, família e propriedade.

Robertão e sua corte continuavam dentro dos conformes, dava um beijo splish splash no cinema, levava as meninas para passear no calhambeque, e deixava a garota papo firme ao portão da casa-grande...
Odair, do outro lado do bairro, dizia para sua garota envergonhada, “eu já sei que essa casa onde você diz morar / onde todo dia no portão eu venho lhe esperar / não é a sua casa. / Eu já sei que o seu quarto fica lá no fundo / e se você pudesse fugir desse mundo e nunca mais voltar...”
Deixe esse essa vergonha de lado, acalentava. Vamos pra Disney!

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

toda poesia cura - está na Constituição

“é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” – Art. 5º
Samba do Artigo Quinto, composição de Fernando Maia e Newton Moreno, com a interpretação coletiva de vozes belíssimas, realização do Movimento Artigo Quinto
Socorro Lira, adorei o sotaque em “toda fala é ‘pérmitída’, toda forma de expressão”... 🌹

je ne regrette rien

O grande ator Procópio Ferreira dizia que “a minha velhice é definitiva, a sua juventude, provisória. Sorte daqueles que ficam velhos." Chegou aos 80 anos quando partiu em 1979.
A sua filha Bibi Ferreira, diva do teatro brasileiro, estendeu mais algum tempo a sorte de envelhecer: partiu para outros palcos no começo da tarde de 13 de fevereiro do ano passado, aos 96 anos.
A clássica canção Non, Je Ne Regrette Rien, de Michel Vaucaire e Charles Dumont, eternizada na voz d’alma de Édith Piaf, ficou igualmente como uma marca na interpretação de Bibi.
Piaf gravou em 1960 e dedicou à Legião Estrangeira, que à época lutava na Guerra de Independência da Argélia.

Nos anos 2000 Bibi começou a realizar musicais focados no repertório da cantora francesa. Os teatros lotados revelaram nossa enorme gratidão às canções que ela cantou para nós.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

solidário

Toda a minha solidariedade à jornalista Patrícia Campos Mello, sortidamente atacada na CPI das Fake News, por um mentiroso machista, misógino, asqueroso.

tudo de Jarreau

O cantor norte-americano Al Jarreau viria ao Brasil em março de 2017, como um dos convidados do 6º Música em Trancoso, no litoral baiano, festival que promove um seletivo e imperdível encontro do melhor da música clássica, do jazz e do popular do Brasil e de diversos países, como The Oscar Peterson Quartet, Gershwin Piano Quartet, Paulinho da Viola...
Jarreau cantaria com a nossa Orquestra Acadêmica Mozarteum Brasileiro, mas o contratempo com o destino cancelou sua apresentação, que com certeza encantaria a plateia como fez em 2015, no Rock in Rio.
O cantor se foi em silêncio na manhã do dia 12 daquele ano, um domingo, um mês antes de completar 77 anos..
O jazz, o rhythm & blues, o soul, o funk, ganhavam na voz de Al Jarreau um irresistível swing que dançava a alma, fazia sorrir os corpos que se cadenciavam pela alegria de ouvir.
Longa é a arte. Al Jarreau se eterniza no coração da música.

depois daquele conto

O escritor argentino Julio Cortázar dizia que o conto é como fotografia, o romance como cinema. O cineasta Michelangelo Antonioni o contradisse quando filmou, em 1966, "Blow-up - Depois daquele beijo", adaptado de um dos seus mais curtos textos, As babas do diabo.
Vários outros cineastas fizeram o mesmo, com vários contos de narrativas psicológicas, surrealistas, como Jean-Luc Godard, Luigi Comencini, Diego Sabanés, Guilherme de Almeida Prado, Laura Papa, Roberto Gervitz, Manuel Antin, Jana Bokova, Sergio Bianchi, Claude Chabrol, Nina Grosse... A lista é longa, dá um romance.
Cortázar, que foi muito e merecidamente festejado em 2014, por ocasião do centenário de nascimento, faleceu numa tarde de 12 de fevereiro de 1984, solitário e deprimido pela morte da esposa, a fotógrafa e escritora Carol Dunlop, dois anos antes.
A causa da morte de Cortázar foi informada como leucemia. A jornalista e escritora argentina Cristina Peri Rossi levantou a tese que o escritor morrera de AIDS. Em entrevista ao jornal O Clarín em 2014, Rossi, depois de vários anos de pesquisa, afirmou que Cortázar fora infectado em uma transfusão de sangue devido a uma hemorragia estomacal, no sul da França, em 1981. A esposa morrera contaminada por ele.

a Esplanada é plana

Em 2017, em pleno período pós-golpe, com o vampiro do Jaburu no Planalto central do país, o cantor Serguei, escreveu em sua página no Facebook:
"‪Indicações ministeriais são sempre polêmicas. Eu mesmo já propus a criação do Ministério da Psicodelia e até agora, nada.‬"
A provocação foi por conta dos nomes dos ministros do governo golpista.
Falecido ano passado, Serguei foi poupado de ver o pior, a despsicodelia tosca da Esplanada dos Ministérios neste desgoverno, com delirante chanceler terraplanista, acéfalo na deseducação citando "livro de KafTa", titular da ciência e tecnologia vestido de astronauta, senhora vendo Jesus na goiabeira e propondo foda-zero no carnaval, ex-namoradinha do Brasil colonial noivando para a pasta da Cultura...
"Eu não volto mais / eu não quero mais / vou fazer assim / eu prefiro a morte sorrindo...", diria ele, como em seu rock Eu não volto mais, do compacto As alucinações de Serguei, de 1966.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

os deuses da luz

Pablo Picasso protege do sol Francoise Gilot, enquanto passeavam numa praia da França, em 1948. Gilot foi um dos grandes amores do pintor espanhol. Eles se conheceram cinco anos antes, em um restaurante. Picasso jantava com Dora Maar, sua esposa à época, e encantou-se com a estudante de cabelos ruivos e grandes olhos verdes, de 21 anos. Ele, 62. Francoise, pintora, crítica de arte e escritora, tornou-se sua nova modelo e amante. Com a “deusa da luz e da fecundidade”, como ele assim a chamava, tiveram dois filhos, Claude Pierre e Paloma Picasso, respectivamente, cineasta e designer de moda, ele hoje com 72 anos, ela, 70.
A foto é de Robert Capa, um dos maiores de todos os tempos. Ao lado do amigo e sócio da Magnum Photos, o igualmente grande Henri Cartier-Bresson (1908-2004), é o nome mais expressivo do fotojornalismo de guerras. Com sua mítica câmera fotográfica alemã Leica III, a história tem seu olhar. Além das trincheiras, o húngaro Robert Capa fotografou escritores, pintores, modelos e atrizes compondo um rico acervo de imagens.
Capa morreu aos 40 anos, quando fotografava a Guerra da Indochina, em 1954. Pisou em uma mina. Seu corpo foi encontrado com as pernas dilaceradas e a câmera intacta entre suas mãos.
Ao fundo da foto, o sobrinho de Picasso, Javier Vilató, também pintor, falecido em 2000, aos 78 anos.
Francoise Gilot continua deusa e iluminada, aos 98.

voos lotados


segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

a cor mais quente


página de um livro bom

foto Celso De Oliveira
Em alguma noite do passado, 1980, bar Quina Azul, bairro Benfica, Fortaleza.
A partir da esquerda:

Nirton Venancio, o poeta e professor Batista De Lima, a professora Socorro Xavier, o poeta Floriano Martins, o poeta e contista Airton Monte, o poeta e jornalista Rogaciano Leite Filho, o professor Magno Avelar e o artista gráfico Paulo Barbosa.


Airton, Rogaciano e Magno já partiram para outras quinas azuis.

domingo, 9 de fevereiro de 2020

ouvindo suas asas sobre mim

Ao contrário de uma letra, que é poesia, quando escrita diretamente para uma melodia, um poema musicado ganha uma outra dimensão quase como uma recriação. A melodia possivelmente esteja lá, na narrativa de cada verso, no fôlego de cada palavra, na rima de uma emoção colocada na estrutura do poema. O poeta não se dá conta. A escrita é uma canção embutida. Vem o músico e encontra as notas, porque só a ele cabe o sol que ilumina dó-ré-mi-fá-lá-si.
O cantor, compositor e ator Rubi, goiano criado em Brasília, residente em São Paulo, é uma das vozes mais belas da música brasileira. É da geração de Cássia Eller, Oswaldo Montenegro, Renato Russo e tantos outros que despontaram no começo dos anos 80 na capital federal, em shows no palco aconchegante do bar Bom Demais e outros palcos tão bons quanto demais.
Cria da Faculdade de Artes Dulcina de Moraes, Rubi vem de uma trupe de talentosos, como Ricardo Torres, Dora Gorovitz, Deo Garcez, Ademir Miranda, Anastácia Custódio, Fernanda Pelosi, Reinaldo Vieira, Cristina Pereira, Antonio Fabio, Áurea Liz, Emerval Krespi, Ivan Marques...
Com três discos gravados, Rubi canta e encanta as noites paulistanas em uma nova lira, incorporando em suas apresentações o cerne da poesia, a medula da voz e o desenho cênico do corpo. Como bem disse o poeta Paulo Kauim, Rubi é a compreensão abissal do significado e significante das palavras numa canção.
Por reconhecimento e afinidade, Rubi recebeu o convite de Elza Soares para integrar a turnê de shows de lançamento do disco A mulher do fim do mundo, em 2015. Ver os dois interpretando Benedita e Malandro, por exemplo, é a mais perfeita emoção que hipnotiza, imanta a plateia e nos faz ter esperança na vida.
Pois eis que sou presenteado com uma composição de Rubi, musicando o meu poema Asas, do livro Poesia provisória, lançado ano passado.
A sua interpretação, acompanhada somente de um minimalista violão, numa primeira gravação caseira, fez do poema um voo que eu não sabia que existia dentro de mim, e em cada verso o reverso de um espelho onde me reconheço, com sua voz à capela revelando o volume de uma sinfonia de sentimentos que expressei ao escrever, inspirado num momento de reflexão existencial, de inquietação e perplexidade.
Imensa gratidão, Rubi, joia rara em meu coração.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

não ao não!

O obtuso, néscio e pacóvio direitista governo do estado de Rondônia, através da Secretaria Estadual de Educação, emitiu ofício determinando que fossem recolhidos 43 livros das escolas da rede pública estadual por conterem "conteúdo inadequado às crianças e adolescentes".
Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, A vida como ela é e Beijo no asfalto, de Nelson Rodrigues, Contos de terror, de mistério e de morte, de Edgar Allan Poe, O castelode Franz Kafka, Macunaíma, de Mario de Andrade, Os Sertões, de Euclides da Cunha, além de obras de Caio Fernando Abreu, Mário de Andrade, Ferreira Gullar, Carlos Heitor Cony, Carlos Nascimento Silva, Rubem Fonseca, Ivan Rubino Fernandes, Ana Lee, Sonia Rodrigues, Rosa Amanda Strausz e Rubem Alves, fazem parte do “perigoso conteúdo” para as nossas crianças e adolescentes.
Um país de que elege um presidente mentecapto de calça de moletom e chinelo rider, e tem um impreCionante acéfalo sinistro da deseducação que cita o “livro de Kafta”, confundindo o grande escritor tcheco com espetinho árabe de carne moída, não é de surpreender a que ponto do bonde surreal chegamos. E é constrangedor dizer que nem na ditadura aconteceu tal absurdo.
Quando foi decretado o AI-5, o então vice-presidente brasileiro Pedro Aleixo, chegou para o mandatário general Costa e Silva e disse: “O problema é o guarda da esquina”, alertando que o perigo com o ato de exceção estava não exatamente, ou tão somente, com aqueles que diretamente governam o país, mas com qualquer um que detenha um pequeno poder.
Um presidente misógino, homofóbico, racista, que elogia torturadores e diz que índio está virando ser humano, faz com que qualquer um que vomite com suas ideias aja com o peito empombado de “otoridade”. O chefe legitima e pronto. É a tosqueira do obscurantismo, da distopia, da desesperança.
O “guarda da esquina” que governa o estado de Rondônia é coronel e alinhado ao tenente-fake-capitão que ocupa o Palácio do Planalto: a imbecilidade institucionalizada.
Parafraseando a dedicatória do defunto-narrador Brás Cubas em suas Memórias Póstumas: ao verme que primeiro roeu as frias carnes da nossa democracia massacrada neste governo, dedico o meu mais profundo desprezo.
E viva Machado de Assis!

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

um cineasta apaixonado

foto © Joe Gaffney, 1977
Em 25 anos ininterruptos de trabalho, François Truffaut dirigiu 26 filmes, conseguindo de maneira inteligente conciliar um grande sucesso de público e de crítica.
Em toda sua rica cinematografia, Truffaut amava a infância, o cinema, as mulheres - não necessariamente nessa ordem, mas tentando aqui sintetizar em três grandes filmes:
- transformou sua traumática infância em um dos mais belos filmes de sempre, Os incompreendidos (Les 400 coups), longa de estreia, em 1959;
- traduziu a sua paixão como cineasta no único e definitivo filme sobre os bastidores de uma produção, o metalinguagem A noite americana (La nuit américaine), em 1973;
- expressou sua paixão pela alma feminina em O homem que amava as mulheres (L'homme qui aimait les femmes), de 1977.
88 anos hoje de nascimento desse aquariano que se foi na juventude da maturidade, aos 52, quando começava a escrever a autobiografia.
Ele que dizia que "sempre preferi a reflexão da vida à própria vida", sua filmografia reflete sua vida.

be all right

Na filosofia rastafari, o corpo é um templo intocável, que não se pode alterar, modificar. Uma das características desse pensamento são as barbas crescidas e os cabelos dreadlocks.
Bob Marley sofria de câncer de pele, que se desenvolveu fortemente sob uma unha infeccionada, no final dos anos 70. Segundo os médicos à época, se amputasse o dedo do pé, as chances seriam positivas de a doença ser curada. O cantor, além de seguir fielmente a doutrina, teria se negado a perder o dedo, embora tenha muito se divulgado que ele se preocupava que a cirurgia o fizesse parar de dançar e afetasse sua carreira, no auge de popularidade e reconhecimento. Preferiu um tratamento alternativo, com um médico naturalista alemão.
Mas em 1981, a doença avançou de uma forma incontrolável. O câncer se alastrou pelo estômago, pulmões, chegando ao cérebro. Marley morreu aos 32 anos, em sua casa na Jamaica, consolando a própria mãe, dizendo-lhe "mommy, no cry. I'm going ahead to prepare a place."
A fotógrafa norte-americana Kim Gottlieb-Walker, 73 anos, notória por criar ao longo de 50 anos de carreira um rico portfólio de personalidades do mundo artístico, foi quem mais fotografou Bob Marley, em shows, bastidores, em casa.
Entre 1975 e 1976, ela e o marido Jeff Walker acompanharam e documentaram o dia a dia do cantor e de outras lendas do reggae, Bunny Wailer, Lee “Scratch” Perry e Peter Tosh.
Esse trabalho resultou nas publicações Bob Marley: Portrait inédit en fotos e Bob Marley And The Golden Age Of Reggae, lançadas em 2011, em lembrança aos 30 anos de sua morte. A foto acima faz parte do primeiro livro.
Hoje Marley faria 73 anos.
O wailer continua:
"my feet is my only carriage / so I've got to push on through... / but while I'm gone / I mean: everythings gonna be all right!"