foto Iluminura Filmes
Há uma cena no filme "O grão", de Petrus Cariry, em que a filha fala para a mãe, "e esse tempo que não passa..."
As duas estão sentadas à beira de um rio, de costas para a câmera. O
tempo é o grande personagem desse grande filme, dirigido pelo cineasta
cearense, que estréia magnificamente no longa-metragem.
Ao contrário
do que a garota diz, o tempo passa, sim, nos 88 minutos em que o
diretor de forma elegante e poética narra as últimas horas da avó que
prepara o neto para o sentimento de separação, a aceitação da perda, o
incômodo da dor, contando uma história ambientada bem longe daquele
cenário áspero do interior nordestino, sobre um rei e uma rainha, muito
ricos e poderosos, que perderam seu único filho e sonham em trazê-lo de
volta à vida. Paralelamente, no realismo das paredes caiadas, os pais
trabalham com sacrifício para manter a casa, enquanto a filha mais
velha almeja o sonho de um casamento de véu e grinalda.
Petrus fez
um filme corajoso, acima de tudo. Sem atores conhecidos, sem a
narrativa de video-clip, sem malabarismos digitais. Um filme sem
concessões. A cumplicidade do diretor é com o cinema. O cinema
propriamente dito, na sua essência e dramaturgia.
Como um
Andrei Tarkovski do sertão, Petrus Cariry filma o tempo como raramente
se vê nas atuais produções brasileiras. Planos longos que adentram não
somente a alma de cada personagem, como também se embrenham no cerne e
na substância interior da paisagem agreste. O tempo passa, sim, porque
é através dessa narrativa criativa, precisa, e, repito, poética, que
vemos a pulsação dos minutos, das horas, dos dias. Tudo que envolve e
descreve a afirmativa do passado, a intimativa do presente e a
estimativa do futuro daqueles personagens. A câmera de Petrus Cariry,
num excepcional desenho de decupagem de planos e sequências, com uma
belíssima fotografia de Ivo Lopes, debulha o tempo em grãos. Nada no
filme sobra ou faz falta. Tudo se compõe no propósito de um trabalho
que utiliza a opção de uma linguagem cinematograficamente pura.
Não à toa, a velha avó se chama Perpétua, como uma eternização do ser humano, que não finaliza um ciclo com o incômodo da morte.
Não à toa, a
neta, aquela que acha que o tempo não passa, sonha com o casamento e
seu vestido branco, como uma transposição para uma outra vida melhor,
mesmo que seja na capital Fortaleza e com um marido que conserta
bicicletas.
Não à toa, o
pai se chama Damião, um dos santos gêmeos do calendário católico, que
apesar de se originarem de pais nobres cristãos, no sincretismo, na
relação com as religiões afro-brasileiras, significa "o popular", ou
ainda, segundo a mitologia grega, tinha o poder de curar doenças e dar
filhos às mulheres estéreis. O Damião do filme sustenta a família
tangendo bode a 50 centavos de real por cabeça, e com esses trocados
tenta curar a miséria diária da fome e manter a esperança naquela terra
infecunda.
Não à toa, a
mãe se chama Josefa, o que me faz lembrar a lenda da santa negra, que
depois de morrer resistindo à violência do patrão que a assediava, do
seu túmulo brotava sangue. Josefa no filme resiste à opressão cotidiana
da miséria e mantém o equilíbrio da casa com o que circula e emana do
seu coração de mãe.
Claro, essas
referências até podem não ser deliberadas do diretor e dos roteiristas
Rosemberg Cariry e Firmino Holanda. Mas um bom filme sempre está aberto
a várias leituras que convergem para uma mesma definição.
Se há
Tarkovski na contemplação crítica do tempo, há também Mário Peixoto de
"Limite" no barco parcialmente afundado na beira do rio. Assim como há
Nelson Pereira dos Santos na célula familiar que faz o percurso
inverso, retirantes que são e estão no mesmo espaço, no mesmo chão
sagrado. Mais Graciliano Ramos há ainda no cachorrinho, que não é a
Baleia, mas tem nome de boi: Mu.
"O grão",
produzido em 2008, tem pré-estréia hoje, em Fortaleza, e somente agora
entra no circuito comercial. Percorreu festivais e mostras nacionais e
internacionais, ganhando merecidamente prêmios.