domingo, 11 de junho de 2023

uma tarde com o poeta e o tradutor

Foto Liloye Boubli

Em 24 de maio de 1870 o poeta Arthur Rimbaud, aos 16 anos de idade, escreve uma carta a Théodore de Banville, líder do movimento parnasiano, autor de muitas das críticas literárias do seu tempo e influência nos simbolistas. Banville tinha 31 anos, publicara oito anos antes seu terceiro livro de poemas, Les Stalactites, e o adolescente Rimbaud o tinha como mestre.

A carta acompanhava três poemas, Sensation, Ophélie e Credo in Unam, e Rimbaud esperava que Banville os publicasse na edição da série Parnasse Contemporain que preparava.
Alguns trechos de uma missiva admirável pela elegância e reverência:
“Caro Mestre, estamos no mês do amor, tenho 17 anos”.
(Abro parêntese: o poeta só completaria essa idade em 20 de outubro daquele ano, portanto, a mentira de alguns meses é uma “licença poética” que aceito de bom grado. Fecho o parêntese. Siga a carta, Rimbaud):
“A idade das esperanças e das quimeras, como se diz – e eis que me pus a cantar, criança tocada pelo dedo da Musa -, perdão se isto é banal – as minhas crenças mais puras, minhas esperanças, minhas sensações, todas essas coisas de poetas -, que eu chamo de primavera... Dentro de dois anos, de um ano talvez, estarei em Paris”.
(Rimbaud estava em sua cidade natal, Charleville, a 200 quilômetros da capital. Desculpe, poeta, continue mais um trecho):
"– Anch’io, senhores jornalistas, serei parnasiano! – Não sei o que tenho dentro de mim... que quer subir à tona... – Eu vos afianço, caro Mestre, que sempre adorarei as duas deusas, a Musa e a Liberdade.”
Essa e mais dezenas de cartas estão na íntegra no livro A correspondência de Arthur Rimbaud, lançado pela L&PM Editores Ltda em 1983, com seleção do fundador da empresa, Ivan Gomes Pinheiro Machado, e tradução do jornalista, ator e diretor de teatro Alexandre Ribondi.
Em meados de 1986, numa tarde de sábado entrando pela noite, tive um longo e inesquecível encontro em Brasília com Ribondi. Eu acabara de me mudar para a Capital e ele aqui estava desde 1968. Nossa conversa foi justamente, pelo menos de início, por curiosidade minha, sobre as cartas que ele traduzira. A partir da acima mencionada, Ribondi falou com tanta propriedade e intimidade, que passou tranquilamente a impressão que convivera com o precoce poeta francês.
O seu trabalho de tradução, mais do que a transposição de um texto-base de uma língua, é a compreensão de especificidades, estilo e voz de origens – o que, por definição, assim é a versão de uma obra para outro idioma. Mas no caso das cartas de Rimbaud, Ribondi (e que feliz aliteração essa agora!) adentrou na personalidade complexa e carismática do poeta de tal forma que os hipérbatos, as anástrofes, as sínquises, todas essas normas de retórica e estilística gramaticais, são de uma fidelidade impressionante. Eu, que não leio em francês, convicto entendi como seria o original na leitura em português. A tradução envolve sutilezas, e burilá-las requer não somente conhecimento, e sim, paixão.
Alexandre Ribondi me banhou de mais paixão por Arthur Rimbaud naquela tarde sob o céu do cerrado que nos protegia. Eu o ouvia e via o poeta francês naquele amigo de camisa bege, óculos redondos e boina clássica Beret. E como a saudade rebobinando o calendário, esse encontro veio-me completo com uma notícia triste transbordando o peito ontem pela manhã, um sábado prolongado de feriado.
Aos 70 anos, Ribondi faleceu em Brasília, cidade que esse capixaba de múltiplos talentos adotou e deixou-se eternizado no coração de quem tanto o quer bem.
Como o termo saudade não tem tradução literal em francês, direi como Rimbaud: “tu me manques”.

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