quinta-feira, 22 de junho de 2023

autografia de um poeta


Mário Cesariny, poeta e pintor português, falecido em 2004, aos 83 anos, é o maior representante do surrealismo lusitano, com 19 livros publicados. No final da década de 40, depois de estudar na escola de arte Académie de la Grande Chaumière, e de uma convivência com o escritor e teórico André Breton, Cesariny funda o Grupo Surrealista de Lisboa, reunindo os grandes pensadores do movimento.
Da década de 50 ao final dos anos 60, durante o regime fascista de Antonio Salazar, e de 1968 à 1974, no governo de Marcello Caetano, uma continuação dos moldes salazaristas, o poeta foi perseguido, humilhado em interrogatórios por suas posições políticas e por sua assumida homossexualidade.
Nos anos 2000 Mário Cesariny, adoentado, passa a viver na casa da irmã, em um amplo quarto com as paredes repletas de pinturas e livros por todos os lados. Nesse período, o poeta recebia amigos, jornalistas, cineastas, pesquisadores, estudantes, sempre sentado na cama, de chapéu, fumando e desenhando fumaça no ar. O fotógrafo Duarte Belo por vários meses registrou imagens desse universo íntimo, como a foto acima, de 2003, que fez parte da exposição Cesariny – em casas como aquela, referência ao endereço número 6 da Basílio Teles, conhecida rua em Lisboa.
Em 2004, o cineasta Miguel Gonçalves Mendes (diretor de José e Pilar, 2011), realizou o documentário Autografia, título de um dos mais conhecidos e belos poemas de Cesariny, e da língua portuguesa, publicado no livro Pena capital, 1957. Desenhando-se em versos de litografia existencial, o poeta avisa que "posso ser visto à noite na companhia de gente altamente suspeita / e nunca de dia a teus pés florindo a tua boca porque tu és o dia porque tu és / a terra onde eu há milhares de anos vivo a parábola / do rei morto, do vento e da primavera".
O poema serve de mote para a narrativa das entrevistas, das conversas com esse ser encantador, que inicialmente resistiu à ideia do filme. O resultado é um saudável percurso guiado pelo próprio personagem aos espaços da sua vida, aos labirintos de sua individualidade e à cumplicidade de seu pensamento.
No início do documentário, Mário Cesariny, como definindo-se num aforisma, diz que "Só há três maneiras de viver neste mundo: ou bêbado, ou apaixonado, ou poeta.". Trocando a conjunção alternativa pela de ligação, digo que ele viveu as três opções, num só fôlego entre o vento e a primavera: foi um bêbado de poesia apaixonado pela vida.

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