O poeta Fernando Pessoa levantava-se diariamente da cadeira à mesa de trabalho na Editora Olisipo, pegava o chapéu, ajeitava os óculos e seguia em passos cadenciados até o Abel, tradicional casa comercial produtora e distribuidora das melhores bebidas à margem do Tejo, "o mais belo o rio que corre" em sua aldeia.
Em uma dessas tardes, em 1929, o poeta pediu que lhe fizesse uma foto saboreando a bebida. Dias depois pegou uma cópia, escreveu atrás a dedicatória:
"Fernando Pessoa em flagrante 'delitro'"
e enviou para sua amada Ophelia Queiroz, com quem reatara depois de nove anos de rompimento e muitos poemas e muitas cartas ridículas - ou não seriam cartas de amor, “afinal, / só as criaturas que nunca escreveram / cartas de amor / é que são / ridículas”, preconizava. Mas o namoro com o ainda donzelo, ortônimo e múltiplo poeta terminou novamente em 1931. As caminhadas ao Abel continuaram.
A moça, 20 anos, professora de Instrução (algo como o Primário), ficou na história como o grande amor do reservado Fernando Pessoa, ou de seus heterônimos - ela já não sabia mais quem namorava.
O poeta não fingia amor por ela. Seu coração, “esse comboio de corda”, girava “nas calhas de roda”, mas não entretinha sua razão: nunca frequentou a casa de Ophelia, resistia a conhecer a família. Como bem observou o ensaísta moçambicano José Gil, Pessoa revelou incapacidade de amar Ophelia à maneira de Ophelia, de aceitar a máscara correspondente a um homem “comum”. Pois é, lembremos que em “Lisbon Revisited”, poema de 1925, o poeta já questionava, na pele de Álvaro de Campos, também sem fingimentos, o que deveras sentia: “Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?”. Nem a Ofélia de Shakespeare, em Hamlet, aguentaria essas esquisitices de poeta.
Em 29 de novembro de 1935 Fernando Pessoa é internado, diagnosticado com cólica hepática e falece no dia seguinte. Afinal, “A vida é um hospital / Onde quase tudo falta. / Por isso ninguém se cura / E morrer é que é ter alta”, como discorria em versos-prontuário publicados em Quadras ao gosto popular.
Um ano antes publicara Mensagem, o derradeiro livro onde no poema “Mar português” leem-se os conhecidos versos-espólio: “Quantas noivas ficaram por casar / para que fosses nosso, ó mar! / Valeu a pena? / Tudo vale a pena / se a alma não é pequena.”.
135 anos hoje de nascimento de uma alma imensa que vale a pena na literatura, que tinha em si “todos os sonhos do mundo.”.
A foto é de autor desconhecido, extraída de Fernando Pessoa – Obra Poética Vol I, 1986, Círculo de Leitores, Porto Editora, Portugal.
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