quarta-feira, 28 de junho de 2023

somewhere over the rainbow

Foto: Maurício Valladares

No começo da madrugada de 28 de junho de 1969, oito policiais, alguns deles à paisana, entraram no bar The Stonewall Inn, em Nova Iorque, e aos gritos anunciaram que estavam tomando o lugar, ocupando o território, com a violência característica da arbitrariedade e preconceito. Predominante gay, o local era constantemente alvo de batidas policiais.
O ataque daquela noite, porém, teve repercussão inesperada e histórica. Motins reverberaram seguidamente entre os frequentadores, como reação às represálias, à discriminação e cerceamento da liberdade.
Os protestos desencadeados culminaram com a marcha ocorrida no dia 1º de julho de 1970. O evento tornou-se precursor das atuais Paradas do Orgulho LGBTQI+
Renato Russo lançou em 1994 o seu primeiro disco solo, intitulado The Stonewall Celebration Concert, LP e CD, em comemoração aos 25 anos dos motins. Com 21 belíssimas canções em inglês, de clássicos de Irvin Berlin e Leonard Berstein ao pop-folk da alemã-britânica Tanita Tikaram, passando por Bob Dylan, Madonna e Billy Joe, o disco é precioso pelo repertório e pontuação ao histórico acontecimento.
A bela capa do álbum, uma referência ao sexto e último disco de John Lennon, Rock n' Roll, de 1975, foi feita em frente ao prédio onde Renato Russo morava, Edifício Colonial, de 1938, na rua Nascimento e Silva, em Ipanema.
O cantor doou parte dos rendimentos dos direitos autorais do disco para a campanha Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, criada por Herbert de Souza, o Betinho, falecido em 1997, um ano depois de Renato.
No arremate de sua homenagem, Renato cita no encarte um provérbio árabe: "A ignorância é vizinha da maldade".

 

terça-feira, 27 de junho de 2023

o sopro da margem do rio


Foto ©Arquivo Folhapress

No começo da década de 60, o escritor Guimarães Rosa trabalhava no Itamaraty, como diretor do Serviço de Demarcação de Fronteiras.

Entre protocolos bilaterais de países, sinos dos cilindros de máquinas de escrever descendo os papeis e conversas sobre inspeção de marcos, Rosa sentiu aproximar-se um sopro pela sala, uma aragem cordisburguense banhando-lhe os sentidos, um fluido tirando-lhe daquele ambiente e levando-o para outras margens. Não teve dúvida, era uma inspiração, vinha-lhe um conto! Vestiu o paletó, saiu às pressas, desceu e pegou o bonde para casa, nas imediações do Posto Seis, em Copacabana.
Otto Lara Resende em seu livro de crônicas O príncipe e o sabiá (publicado postumamente em 1994, Companhia das Letras, organizado pela escritora Ana Miranda), diz que “durante a viagem, o conto delineou-se e surgiu inteiro, irretocável. Rosa o conduzia com o maior cuidado, para que não fugisse, nem se evaporasse. Levava-o – a imagem é dele – com a cautela de uma criança que leva um balão colorido que pode arrebentar.”
E assim surgiu o belíssimo A terceira margem do rio, incluído em Primeiras estórias, publicado em 1962, seis anos depois de Grande Sertão: Veredas, ambos pela José Olympio Editora. A imagem que Guimarães Rosa deu ao momento de inspiração - a força que tem quando vem para ficar e a fragilidade que tem para ir embora - é de uma beleza impressionante.
Hoje 115 anos de seu nascimento. Rosa é grandioso nas margens, veredas e sertões da literatura brasileira. 

segunda-feira, 26 de junho de 2023

o último take


No vídeo acima, início da entrevista com o compositor e cantor Chico Pio que realizei em 2021, guardada para o documentário a ser produzido, Massafeira – Lado A Lado B, segundo da trilogia sobre a música cearense, iniciada com Pessoal do Ceará – Lado A Lado B, que será lançado no final do segundo semestre.
Locação: Theatro José de Alencar, Fortaleza. “O inoxidável", como carinhosamente era chamado, participou do Massafeira Livre em 1979, e gravou no álbum duplo coletivo Massafeira, de 1980, O que foi que você viu?, parceria sua com Stelio Valle e Nertan Moreno.
Durante uma hora de conversa, Chico Pio foi às mesas do Bar do Anísio, que frequentou no começo dos anos 70, "eu tinha uns 19 anos, pra disfarçar a timidez eu fingia que estava bêbado”, lembra, como aproveitando para revelar um segredo. E foi lá que, entre goles de cachaça e tira-gosto com biquaras assadas, que ele compôs com Alano Freitas e Stelio Valle, Sorvete, gravada por este em seu disco Brilho, de 1980.
Perguntei sobre o que foi o Massafeira Livre, como evento e disco naquela virada de década. “Não gosto dessa coisa de que foi um movimento, movimento é das ondas do mar, dos astros”, poetizou de revés, bem típico dele às gargalhadas em rodas de conversa. E antes que eu insistisse o que foi, afinal, adiantou que “Ali foi o encontro de uma geração. Existe, sim, uma geração Massafeira. E faço parte dela, com muito orgulho.”
Se o disco não teve a distribuição e divulgação merecidas e aqueles talentosos cantores e compositores não despontaram nacionalmente, veremos no documentário sua explicação de uma sinceridade surpreendentemente inoxidável.
Chico Pio partiu hoje para outras feiras, aos 70 anos.
“Só tenho boas lembranças do Massafeira, pois foi lá que tive oportunidade de mostrar minha música, meu trabalho de melodista”, disse em um momento da entrevista, depois de uns segundos em silêncio, abraçando o violão, olhando para mim como mirando do telão a plateia no cinema - só com boas lembranças suas.
Making of: Rubens Venancio

meu caminho pelo mundo


No dia 26 de junho de 1968 mais de 100 mil pessoas marcharam na Avenida Presidente Vargas, no centro do Rio de Janeiro, em protesto contra a ditadura militar, sob o comando do general Costa e Silva.

A manifestação, inicialmente estudantil, foi incorporada por vários segmentos da sociedade civil. Políticos, intelectuais, artistas, aderiram à passeata tornando uma das mais significativas expressões populares do Brasil.
Muitos fotógrafos cobriram o acontecimento, muitas imagens ficaram marcadas, como as de Evandro Teixeira, à época do Jornal do Brasil. Entre tantos nomes famosos na multidão, o cantor e compositor Gilberto Gil, que hoje completa 81 anos, naquele dia comemorava na avenida seu aniversário de 26.
De toda Bahia que já lhe deu régua e compasso, de todo Brasil lindo e trigueiro que Ary aquarelou, de todos nós mulatos inzoneiros e a moça da favela com seu vestido rendado, todo mundo da Portela e do Salgueiro, alargamos nossos corações naquele abraço ao Buda Nagô Gilberto Gil!
Na foto, ao lado do aniversariante, a cantora Nana Caymmi, com quem era casado, na ponta esquerda, Torquato Neto.

 

domingo, 25 de junho de 2023

autobiografia poética

luz da lanterna mágica por trás de todos
mostrando na parede de cal
o mundo colorido em preto e branco
:
a
cachoeira
que
humberto
mauro
me
banhou
quando
cresci
:
24 quadrinhos por segundo
movimentavam em minhas retinas
loone ranger
e eu cavaleiro solitário
igualmente tonto
tim holt
meu primeiro caubói
do tempo das diligências
tarzan
que eu não sabia pronunciar
nem nadar como ‘jonivesmule’
carlitos
eu garoto em sua ribalta
órfão em minha estrada.
Eles se recolhiam na escuridão da cabine
quando as luzes acendiam e o vento apagava.
O olhar oblíquo do menino imaginava-os
quietos
cansados
sagrados
nos rolos dentro das latas dentro de mim:
35mm de extensão em meu coração.
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Trem da memória, de Nirton Venancio (Editora Radiadora, 2022), é uma poética transida de lembranças, como num caleidoscópio, ou melhor, num cinematógrafo, ou lanterna mágica, emendando na coladeira do tempo imagens esparsas que vão costurando uma narrativa testemunhada pelo poeta.
Ele opta pela simplicidade – a mesma encontrada nos pequenos vilarejos do Brasil - que nos remete aos poemas inaugurais dos primeiros dos nossos modernistas. Sem os artifícios gongóricos da Geração de 45, que reabriu as portas do Parnaso para suas Medusas e Apolos invadirem novamente a nossa literatura.
Esse trem poético de Nirton Venancio não para em nenhuma estação. Vai recolhendo da poesia brasileira e do cinema as referências que o seu inconsciente erudito e sensível sopra no seu ouvido. E retira de seu baú as joias de sua coroa particular e as expõe e vai declinando sua história – como um filme, uma autobiografia em forma de relato.
- Luiz Carlos Lacerda, cineasta e poeta (Rio de Janeiro)
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O livro concorre ao 65º Prêmio Jabuti, Oceanos – Prêmio de Literatura em Língua Portuguesa 2023 e ao IX Prémio Nacional de Poesia António Ramos Rosa, Faro, Portugal.
À venda com o autor e pelo site www.radiadora.com.br 

sábado, 24 de junho de 2023

aqui, agora e sempre

foto Eduardo Longoni, 2007

"Não há outra forma de se alcançar a eternidade senão afundando no instante, nem outra forma de chegar à universalidade senão através da própria circunstância: o aqui e agora. A tarefa do escritor seria a de entrever os valores eternos que estão implícitos no drama social e político de seu tempo e lugar."
A citação está no livro O escritor e seus fantasmas, página 51 (edição de 1982 da Francisco Alves Editora), item O compromisso, do argentino Ernesto Sábato.
Lançado originalmente em 1963, é um excelente ensaio sobre o que literalmente diz o título, sobre o que provoca o escritor, sobre a razão dos seus livros, sobre a concepção geral da literatura e da existência. Imprescindível para quem escreve e para quem lê. De quase vinte títulos que compõem a obra de Sábato, o livro tem a importância de um biblicismo literário.
Romancista, ensaísta, artista plástico e físico, Sábato faleceu em 2011, dois meses antes de completar um século por aqui. Hoje, agora, seu aniversário de nascimento.
Ler espanta os fantasmas, sempre. 

São João, Xangô Menino


Na fé cristã hoje celebra-se o nascimento de João Batista, aquele que não somente previu o advento do Messias na pessoa de Jesus, como teve a prerrogativa de batizá-Lo. Antes ninguém havia submergido outra pessoa na água em nome de Deus, como ritual de purificação. Juntamente com Antonio e Pedro, João compõe a tríade dos Santos Populares.

O título desta postagem é da música de Gilberto Gil e Caetano Veloso, gravada no disco Doces Bárbaros – ao Vivo (Philips,1976). Os autores, de maneira livre, alegre e criativa, incorporam na letra o imaginário religioso, em combinação sincrética do local à transcendência da religiosidade cristã e o mito africano. Uma saudável manifestação de panteísmo múltiplo, com suas simbologias e expressões culturais.
Acima, reprodução do belíssimo quadro Nascimento de São João Batista, do pintor italiano Tintoretto, 1578. A obra renascentista encontra-se no Museu Hermitage, em São Petersburgo.

 

sexta-feira, 23 de junho de 2023

crônica de flores anunciadas

Foto publicada no semanário Fon-Fon, 1909

Na crônica Os urubus, de João do Rio, publicada no livro A alma encantadora das ruas, de 1910, o autor narra situações rotineiras e bem específicas de vendedores que ofereciam serviços funerários para enlutados que passavam a caminho do necrotério. O título da crônica, originalmente publicada no jornal Gazeta de Notícias, denomina de forma conotativa a natureza mórbida desses trabalhadores.
Nos parágrafos finais (páginas 83 e 84 da edição de 1997, Companhia das Letras), João do Rio disserta sobre o perfil daqueles fâmulos de rua, que mesmo com a frieza de anotar “os nomes e residências das pessoas mortas” na secretaria do necrotério Santa Casa e "só copiarem os que renderiam mais de 100$", que disputavam entre eles vendedores “quem faz o luto em vinte e quatro horas mais em conta”, o autor via que aqueles pobres rapazes “impingindo com um sorriso à tristeza coroas e crepes, só para ganhar honestamente a vida, eram dignos de respeito”. “Por que urubus?”, perguntava-se, complacente.
O escritor, um dândi pelas ruas cariocas, refletia sobre esses personagens quando uma vez, depois de saltar do bonde no centro da cidade, teve a visão na mesma perspectiva da localização geográfica: a vizinhança do que seria o céu no desenho ondulante da então Praia de Santa Luzia, e o que se suponha como inferno na paisagem soturna do necrotério ao lado.
Depois de um tempo conversando com um dos vendedores, satisfeito em sua curiosidade de historiógrafo da vida urbana, decide ir embora. Já estava até incomodado. Um dos “urubus” pergunta-lhe se o colega teria “contado coisas a nosso respeito”. João do Rio diz que “não, absolutamente.”.
O vendedor o segue oferecendo seus serviços, “Quando quiser uma coroa...”
- Deus queira que não! – diz, assustado.
E corre para o bonde que passava, livrando-se do agouro.
Onze anos depois da publicação, no dia 23 de junho, o cronista sentiu-se mal dentro de um táxi. Pediu ao motorista que parasse e fosse buscar um copo de água em algum local. Ao voltar encontrou o cronista morto, um infarto fulminante o deixou estirado no banco.
O cortejo de seu funeral foi um dos mais lotados na história do Rio de Janeiro, depois de Getúlio Vargas e Carmen Miranda. Estima-se que 100 mil acompanharam João do Rio até o seu enterro no São João Batista.
O jornalista e professor cearense Ronaldo Salgado, em seu ótimo livro A crônica reporteira de João do Rio (Edições LEO, 2006), diz que “Há uma justificativa de caráter mais específico: as crônicas de João do Rio, para além de uma tessitura feita nas fendas entreabertas das narrativas curtas e das reportagens, estabelecem pontes entre a Literatura e o Jornalismo.”. Uma escrita tão fascinante como Os urubus, apenas para apontar uma de sua vasta obra, exemplifica a análise de Salgado sobre aquele considerado o pioneiro da crônica-reportagem.
Falecido precocemente aos 39 anos, João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto, seu nome de batismo, assumiu sua homossexualidade com firmeza e discrição. Foi o primeiro imortal a tomar posse vestido com o característico fardão da Academia.
Naquele dia 23, muitas coroas foram vendidas pelas aves catartiformes que o escritor eternizou em sua crônica.

quinta-feira, 22 de junho de 2023

autografia de um poeta


Mário Cesariny, poeta e pintor português, falecido em 2004, aos 83 anos, é o maior representante do surrealismo lusitano, com 19 livros publicados. No final da década de 40, depois de estudar na escola de arte Académie de la Grande Chaumière, e de uma convivência com o escritor e teórico André Breton, Cesariny funda o Grupo Surrealista de Lisboa, reunindo os grandes pensadores do movimento.
Da década de 50 ao final dos anos 60, durante o regime fascista de Antonio Salazar, e de 1968 à 1974, no governo de Marcello Caetano, uma continuação dos moldes salazaristas, o poeta foi perseguido, humilhado em interrogatórios por suas posições políticas e por sua assumida homossexualidade.
Nos anos 2000 Mário Cesariny, adoentado, passa a viver na casa da irmã, em um amplo quarto com as paredes repletas de pinturas e livros por todos os lados. Nesse período, o poeta recebia amigos, jornalistas, cineastas, pesquisadores, estudantes, sempre sentado na cama, de chapéu, fumando e desenhando fumaça no ar. O fotógrafo Duarte Belo por vários meses registrou imagens desse universo íntimo, como a foto acima, de 2003, que fez parte da exposição Cesariny – em casas como aquela, referência ao endereço número 6 da Basílio Teles, conhecida rua em Lisboa.
Em 2004, o cineasta Miguel Gonçalves Mendes (diretor de José e Pilar, 2011), realizou o documentário Autografia, título de um dos mais conhecidos e belos poemas de Cesariny, e da língua portuguesa, publicado no livro Pena capital, 1957. Desenhando-se em versos de litografia existencial, o poeta avisa que "posso ser visto à noite na companhia de gente altamente suspeita / e nunca de dia a teus pés florindo a tua boca porque tu és o dia porque tu és / a terra onde eu há milhares de anos vivo a parábola / do rei morto, do vento e da primavera".
O poema serve de mote para a narrativa das entrevistas, das conversas com esse ser encantador, que inicialmente resistiu à ideia do filme. O resultado é um saudável percurso guiado pelo próprio personagem aos espaços da sua vida, aos labirintos de sua individualidade e à cumplicidade de seu pensamento.
No início do documentário, Mário Cesariny, como definindo-se num aforisma, diz que "Só há três maneiras de viver neste mundo: ou bêbado, ou apaixonado, ou poeta.". Trocando a conjunção alternativa pela de ligação, digo que ele viveu as três opções, num só fôlego entre o vento e a primavera: foi um bêbado de poesia apaixonado pela vida.

quarta-feira, 21 de junho de 2023

a um bruxo, com amor


“Convicções novas rondavam-lhe o espírito, impondo-lhe o dever de penitenciar-se de um pecado tão grave quanto fora grande a delícia que nele sentira – o pecado de haver mergulhado os sentidos e o pensamento nos perigosos filtros que o bruxo do Cosme Velho sabia propinar com arte sorrateira e amável.”

- Trecho do livro Letras da província, página 46, do ensaísta e crítico gaúcho Moysés Vellinho (1901-1980), publicado pela Editora Livraria do Globo, 1944.
A obra divide-se em capítulos, cada um dedicado a um escritor de sua terra, entre eles Érico Veríssimo, Dionélio Machado, Vianna Moog. O texto que destaco é sobre o jornalista, ensaísta, poeta, memorialista e folclorista Augusto Meyer (1902-1970), um dos pioneiros do Modernismo no Rio Grande do Sul. Meyer era um estudioso da obra de Machado de Assis, e escreveu um dos livros mais importantes sobre o escritor, Machado de Assis, de 1935. E justamente por ser um machadiano compulsivo, que Moysés Vellinho discorre o ensaio comparando - de certa forma elogiando - a escrita de Meyer com a “arte sorrateira e amável” do “bruxo de Cosme Velho”, referindo-se ao ilustre morador da casa número 18 da rua que tem o mesmo nome no bairro carioca.
Portanto, a primeira vez que Machado de Assis foi assim referenciado, tornando Moysés Vellinho o autor do epíteto, e não Carlos Drummond de Andrade, a quem é atribuído o crédito, numa leitura apressada que fizeram do seu poema A um bruxo, com amor, publicado no jornal Correio da Manhã, em 1958, e no ano seguinte no livro Poemas, pela José Olympio Editora.
O próprio Drummond, em uma crônica no mesmo periódico, na edição de 11 de setembro de 1964, esclareceu que “Devo reconhecer (...) que não me cabe a paternidade da apelação 'bruxo do Cosme Velho’, dada a Machado de Assis”. No poema não existe sequer o termo junto. O autor menciona “bruxo” no título e num verso, e o logradouro no início: “Em certa casa da Rua Cosme Velho / (que se abre no vazio) / venho visitar-te”.
Claro, Drummond não foi contemporâneo de Machado. Quando este faleceu, em 1908, o poeta era um menino de seis anos, e esperava o cometa Halley passar nos céus de Itabira em 1910 para encantar-se de poesia. Drummond visita o universo machadiano no espaço sagrado que habitava, com Marcela, “a rir com expressão cândida”; com Virgília, “cujos olhos dão a sensação singular de luz úmida”; com Capitu, que tem os olhos “abertos como a vaga do mar lá fora”, para citar algumas personagens pelos cômodos da literatura. As duas primeiras, o amor adolescente e o amor maduro de Brás Cubas, respectivamente, e a terceira, o grande amor de Bentinho em Dom Casmurro. Pois se “o diabo joga dama com o destino, / estás sempre aí, bruxo alusivo e zombeteiro, / que resolves em mim tantos enigmas”, justifica o poeta o motivo de sua visita.
Acima, provavelmente a última foto do “bruxo”, encontrada pelo pesquisador Felipe Pereira Rissato em 2018, publicada na edição da revista semanal argentina Caras y Caretas, de 25 de janeiro de 1908, encontrada na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional de España, que estampa uma breve matéria sobre Homens ilustres do Brasil.
Hoje, 184 anos de nascimento do imenso Machado de Assis. “Outros leram da vida um capítulo, tu leste o livro inteiro”, como disse Drummond no poema. Um verso-epitáfio.

 

segunda-feira, 19 de junho de 2023

o poeta da canção brasileira

Foto Jorge Bispo

"Aceite uma ajuda do seu futuro amor
pro aluguel.
Devolva o Neruda que você me tomou
e nunca leu.”
Versos de Trocando em miúdos, de Chico Buarque, gravada no disco com o seu nome, 1978, uma enviesada rima de combinação de vogal oral com uma nasal na canção para a amada separada.
Musicada por Francis Hime, a composição por pouco não foi liberada pelos censores da ditadura, naquele último ano do governo Geisel, que viram na menção a Pablo Neruda, que pertencia ao Partido Comunista Chileno, uma grave ameaça de subversão. Chico Buarque achou um absurdo, argumentou que não havia perigo nenhum na citação. Era um livro de poesia, "apenas".
Afinal, a letra fala de uma separação amorosa, de uma partilha afetiva-cultural, resolvida ali mesmo na sala, longe do desgaste da Vara de Família. Em comum acordo que ele ficaria com o disco de Pixinguinha, o peito dilacerado estava aceitando sem maiores questionamentos a impressão que já ia tarde, nem bateria o portão fazendo alarde quando saísse, ela ficaria protegida com a medida do Bonfim, que para ele não funcionou.
Em última instância, o compositor explicou que a moça nem sequer leu o livro, até pediu para devolvê-lo. Não se sabe se de fato o exemplar foi restituído ao ex-marido, mas o guardião de plantão do Serviço de Censura, diante da argumentação de Chico Buarque, carimbou a folha e devolveu a letra liberada.
O que ficou decidido entre o casal da música não foi, por outro lado, tão amigavelmente com os censores. Contenda litigiosa mesmo. Chico Buarque precisou de advogado para intermediar o imbróglio.
Hoje 79 anos do compositor que ergueu no patamar da música brasileira quatro paredes mágicas. 

domingo, 18 de junho de 2023

a última madrugada

©Acervo Fundação José Saramago

"Cada coisa chegará no tempo próprio, não é por muito ter madrugado que se há de morrer mais cedo. (...) Vivi desde aqui até aqui."
- Fragmentos de um parágrafo de Ensaio sobre a cegueira, página 169, de José Saramago (Companhia das Letras, 1995).
Possivelmente o livro do escritor que melhor simboliza a imagem de um mundo imundo e bárbaro. A obra foi um dos principais motivos para o Nobel de Literatura, em 1998, o primeiro autor de língua portuguesa a ganhar o Prêmio.
Numa tarde de setembro de 1991 Saramago sofreu um deslocamento da retina, e aquela dolorosa experiência o acompanhou como uma luz de inspiração. Dias depois, enquanto aguardava o almoço no restaurante Varina da Madragoa, no centro de Lisboa, o escritor “como sempre, pensava em coisas vagas. De repente, surgiu-me o título ‘Ensaio sobre a cegueira’...”, disse em entrevista ao Jornal Lusitano, na edição de 27 de novembro de 1995.
O periódico registra também um trecho de seu discurso de apresentação na noite do lançamento. Saramago afirmou que “Este é um livro francamente terrível com o qual eu quero que o leitor sofra tanto como eu sofri ao escrevê-lo. Nele se descreve uma longa tortura. É um livro brutal e violento e é simultaneamente uma das experiências mais dolorosas da minha vida. São 300 páginas de constante aflição. Através da escrita, tentei dizer que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso.”
Esse desejo do autor é uma consequência inevitável que a narrativa provoca, pelo incômodo e reflexão, a abstinência moral humana, a urgência de resgatar o afeto diante do caos e escuridão.
Adaptado para o cinema em 2008 por Fernando Meirelles, o romance distópico é a imagem aterradora de tempos sombrios.
Na foto de Pedro Walter, o escritor na ilha espanhola Lanzarote, onde viveu até madrugar em 18 de junho de 2010, aos 87 anos.

sábado, 17 de junho de 2023

o sopro do pássaro


Foto Alberto Jonquiéres, 1967

No ótimo conto O perseguidor, de Julio Cortázar, publicado em 1958, na coletânea As armas secretas, o personagem Johnny é um dos maiores saxofonistas do mundo, criando um estilo de jazz que não se consegue definir com clareza, tocando o coração de todos com sua música. O outro lado do homem é um Johnny extremamente perturbado, junkie, que perde seu saxofone no metrô de Paris, e se desespera por não ter como comprar outro para o show que fora contratado na capital.

O conto foi diretamente inspirado no músico estadunidense Charles Parker. Cortázar era fã de jazz e apaixonado pela música de Bird, assim apelidado o saxofonista, título do filme biográfico dirigido por Clint Eastwood em 1988, com a atuação perfeita de Forest Whitaker.
O escritor argentino surpreendia quando improvisava com o trompete. Não à toa a narrativa da prosa de Cortázar tem elementos rítmicos de música. Ele aspirava na literatura a liberdade criativa do jazz.

sexta-feira, 16 de junho de 2023

Ariano e sua sina


Foto Arquivo VEJA

Ele toma conta do mundo pelo brilho nas palavras, pela lucidez da oratória, pela inteligência e acuidade de suas opiniões e argumentos, pela graça e humor de suas colocações, pela pureza infantil no rosto de senhor, pelo amor que tem pela arte na sua mais sagrada essência, pelas histórias narradas entre a verdade e o que poderia ter sido.

Ariano Suassuna é autêntico, genuíno, legítimo. É autor de si, é personagem de si. É mítico e é real. É clássico e usual. É novo e é histórico. É rebento nascido nas dependências do Palácio da Redenção. É um senhor dos castelos erguidos nas fábulas dos sertões nordestinos. É um dom Quixote de Taperoá, cidade nos cafundós da Paraíba, que o acolheu menino sem pai nos anos 30 da Revolução. É Armorial em seus movimentos eruditos nos ritmos populares de dança, canções e picadeiros. É João Grilo pícaro invencível vindo dos contos portugueses para as páginas dos cordéis no meio das feiras. É Chicó dizendo verdades com as mentiras para o padeiro avarento na Irmandade das Almas. É Quaderna descendente de legítimos reis envolvido em luas e defesas políticas no reino encantado de Belmonte. É um sebastianista em quem acreditamos para nos salvar da miséria intelectual.
Hoje, 96 anos de nascimento desse cabra que já foi ao encontro de Caetana, mas continua em nossa Pedra do Reino. 

quinta-feira, 15 de junho de 2023

trajetória de uma dama


No começo dos anos 1920, a pequena Ella Jane, de três anos, vivia em um lar conturbado, em Newport News, Virginia. O pai sumiu com a amante e deixou a filha chorando com a mãe, que se mudou para Nova York atrás de trabalho. Na grande cidade a menina ganhou um padrasto, um imigrante português que se apaixonou pela mãe. Logo ganhou também uma irmã. Quando tudo parecia se configurar uma constelação familiar, o novo pai se revelou um cretino, humilhando e batendo na esposa.
Aos 15 anos Jane perdeu a mãe, morta por um infarto. O que já estava ruim, piorou: desempenho baixo das meninas na escola, preconceito por serem negras e agressões em casa. Ainda menor de idade, Ella Jane foi estuprada pelo padrasto. Pegou a irmã, fugiu para a casa de uma tia e denunciou o crime. Com o pai preso, as meninas ficaram sob os cuidados da tia que as tratava como empregadas. Por conta das brigas constantes, Ella foi colocada num colégio interno, de onde fugiu e se tornou moradora de rua.
Numa tarde quando pedia esmola na porta de um bar, Ella Jane conseguiu um emprego de vigia. Na verdade, o local era bordel e cassino, e seu trabalho era de informante: as atividades ilegais eram controladas pela máfia nova-iorquina, e a garota ficava de olho quando a polícia se aproximava. Não durou muito e uma batida fechou o estabelecimento, Ella foi descoberta como menor de idade e encaminhada para um reformatório, de onde fugiu e voltou a viver nas ruas.
Para ganhar uns trocados, cantava e sapateava nas calçadas. Alguns restaurantes permitiam que se apresentasse em frente, o que atraía fregueses pelo fascínio que a garota despertava. Em troca ofereciam comida e dormida nos fundos do comércio. Ella sentia-se gratificada, tinha um local para descansar à noite. Mas novamente foi flagrada pelos policiais na rua e levada a um asilo de órfãos no Bronx, onde viveu por dois anos.
Tinha 17 anos quando saiu e foi atrás de uma professora de piano que conhecera num daqueles restaurantes. Queria ser cantora e dançarina. A professora a acolheu, deu-lhe aulas e um quarto, e vendo o talento tão precoce, a inscreveu num concurso de cantoras amadoras num teatro no Harlem. Ella ganhou e começou a conseguir trabalhos em apresentações de dança e canto. Tempos depois, com a vida se organizando, pagou uns detetives e reencontrou sua irmã. Soube também que o padrasto morrera na prisão.
Em meados dos anos 30, a cantora tinha várias composições, alguns shows, e já se firmava com o nome artístico de Ella Fitzgerald. Cantando e encantando a todos com sua voz de meio-soprano, dominando o swing do jazz, do blues e soul, apresentou-se daquela década em diante com Louis Armstrong, Duke Ellington, Dizzy Gillespie, Count Basie, Joe Pass, Oscar Peterson, Ellis Larkins, e tantos outros monstros.
Paralelamente a sua consagrada carreira artística, Ella Fitzgerald viu a vida pessoal repetir o sofrimento da mãe. No seu primeiro casamento, o marido, que lhe batia, foi descoberto como traficante. Ella divorciou-se com ele na prisão. No segundo matrimônio, com o baixista Ray Brown, não conseguia engravidar e passou a criar a filhinha da irmã, que morava ainda com a tia. Quando esta morreu, a irmã, temendo se tornar tia da própria filha, pegou a criança de volta. Ella consegue engravidar, mas separa-se poucos anos depois.
No final dos anos 50, conhece um belo e misterioso norueguês. Apaixonam-se e casam-se em segredo, evitando manchetes de jornais. E fez bem! Em poucos meses, ainda em clima de lua de mel, descobriu que o rapaz aprontou na Suécia, esteve preso por ter roubado tudo de uma garota com quem se envolvera. Já com um bom patrimônio e nome na galeria do jazz, deu um tranco no esbelto viking saqueador de dotes. O dinheiro dela, não! Divorciada, dedicou-se cada vez mais a cantar, cantar, cantar e namorar. A carreira solo em todos os sentidos.
Nos anos 80, Ella Fitzgerald teve um infarto, colocou marca-passo, e a saúde ficou agravada por diabetes. Com a visão comprometida, diminuiu o número de shows, e em 1993 teve as duas pernas amputadas. Afundou na depressão e passou a ser cuidada por enfermeiras. Recebia nos fins de semana a visita da irmã e da sobrinha que a chamava de “mãezinha”. Três anos depois, na madrugada de 15 de junho, faleceu enquanto dormia, aos 79.
Uma vez, numa entrevista, perguntaram a Ella sobre sua trajetória, como foi sua vida, como chegou a ser a grande cantora que lotava teatros.
- Desculpe-me, não tenho palavras. Talvez se eu cantar, você entenda – respondeu, disfarçando uma lágrima.
Acima, a elegância da cantora fotografada por Phil Stern em um hotel em Nova York, década de 50.


 

quarta-feira, 14 de junho de 2023

o poeta que ouvia livros



Em 1977 Jorge Luis Borges deu sete palestras no famoso Teatro Coliseo de Buenos Aires. A cada noite abordava um tema. Falou sobre clássicos da literatura, a natureza da poesia, budismo, cabala... A semana de conferência foi publicada em livro, Sete noites, pela Editora Max Limonad, 1980, e Companhia das Letras em 2011.
No último dia Borges falaria sobre professores religiosos gnósticos em Alexandria. Desistiu ali mesmo na mesa e preferiu conversar sobre sua cegueira, decorrida de problemas hereditários. A avó e o pai morreram cegos, “sorridentes e corajosos”, lembra. O poeta perdeu a visão em 1955. Tinha 56 anos, 19 livros publicados, entre poesia, contos e ensaios, e dirigia a Biblioteca Nacional da Argentina.
Intitulado La cegueira, o capítulo final é o mais tocante. Borges ficou cego aos poucos. O “lento crepúsculo começou quando comecei a ver”, diz, referindo a quando nasceu. “Um crepúsculo lento que durou mais de meio século”, arremata num parágrafo. Mesmo vivendo num mundo incômodo e indefinido, o poeta processou e guardou várias cores, o amarelo, o azul, o verde, o branco que se confunde com cinza, “já o vermelho desapareceu completamente, mas espero que algum dia (estou em tratamento) melhorar e poder ver aquela cor ótima, aquela cor que brilha na poesia e que tem nomes em vários idiomas.”
Borges não aprendeu braile. Quando estava em uma livraria, ou na Biblioteca onde trabalhava, dizia que “ouvia os livros e os ambientes”. A luz do que as páginas narravam brilhava cores em sua audição, em sua percepção. Aquele era o universo do poeta. E assim Borges imaginava a quantidade de livros ao seu redor e o que eles contavam.
“Aos poucos, comecei a entender a estranha ironia dos acontecimentos. Sempre imaginei o Paraíso sob uma espécie de biblioteca. Outras pessoas pensam em um jardim, outras podem pensar em um palácio. Lá estava eu. Era, de alguma forma, o centro de novecentos mil volumes em vários idiomas”, disse no início da palestra.
37 anos hoje que Borges partiu para ouvir os livros no Paraíso que imaginou. Tinha 86 anos, morava em Genebra. No epitáfio, um verso de Battle of Maldon, poema heróico do século X: “Não tenhas medo de nada”.
A foto é de Daniel Mordzinski, cena do documentário Borges para milhões, de Ricardo Wullincher, 1978. 

terça-feira, 13 de junho de 2023

Pessoa sem fingimento


O poeta Fernando Pessoa levantava-se diariamente da cadeira à mesa de trabalho na Editora Olisipo, pegava o chapéu, ajeitava os óculos e seguia em passos cadenciados até o Abel, tradicional casa comercial produtora e distribuidora das melhores bebidas à margem do Tejo, "o mais belo o rio que corre" em sua aldeia.
Lá tomava lentamente um cálice de aguardente e saía pelas ruas de sua Lisboa "com suas casas / de várias cores". Esse hábito Pessoa manteve por um longo tempo em seus curtos e intensos 47 anos de vida. A vida que "é como uma sombra que / passa por sobre um rio.".
Em uma dessas tardes, em 1929, o poeta pediu que lhe fizesse uma foto saboreando a bebida. Dias depois pegou uma cópia, escreveu atrás a dedicatória:
"Fernando Pessoa em flagrante 'delitro'"
e enviou para sua amada Ophelia Queiroz, com quem reatara depois de nove anos de rompimento e muitos poemas e muitas cartas ridículas - ou não seriam cartas de amor, “afinal, / só as criaturas que nunca escreveram / cartas de amor / é que são / ridículas”, preconizava. Mas o namoro com o ainda donzelo, ortônimo e múltiplo poeta terminou novamente em 1931. As caminhadas ao Abel continuaram.
A moça, 20 anos, professora de Instrução (algo como o Primário), ficou na história como o grande amor do reservado Fernando Pessoa, ou de seus heterônimos - ela já não sabia mais quem namorava.
O poeta não fingia amor por ela. Seu coração, “esse comboio de corda”, girava “nas calhas de roda”, mas não entretinha sua razão: nunca frequentou a casa de Ophelia, resistia a conhecer a família. Como bem observou o ensaísta moçambicano José Gil, Pessoa revelou incapacidade de amar Ophelia à maneira de Ophelia, de aceitar a máscara correspondente a um homem “comum”. Pois é, lembremos que em “Lisbon Revisited”, poema de 1925, o poeta já questionava, na pele de Álvaro de Campos, também sem fingimentos, o que deveras sentia: “Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?”. Nem a Ofélia de Shakespeare, em Hamlet, aguentaria essas esquisitices de poeta.
Em 29 de novembro de 1935 Fernando Pessoa é internado, diagnosticado com cólica hepática e falece no dia seguinte. Afinal, “A vida é um hospital / Onde quase tudo falta. / Por isso ninguém se cura / E morrer é que é ter alta”, como discorria em versos-prontuário publicados em Quadras ao gosto popular.
Um ano antes publicara Mensagem, o derradeiro livro onde no poema “Mar português” leem-se os conhecidos versos-espólio: “Quantas noivas ficaram por casar / para que fosses nosso, ó mar! / Valeu a pena? / Tudo vale a pena / se a alma não é pequena.”.
135 anos hoje de nascimento de uma alma imensa que vale a pena na literatura, que tinha em si “todos os sonhos do mundo.”.
A foto é de autor desconhecido, extraída de Fernando Pessoa – Obra Poética Vol I, 1986, Círculo de Leitores, Porto Editora, Portugal.

domingo, 11 de junho de 2023

uma tarde com o poeta e o tradutor

Foto Liloye Boubli

Em 24 de maio de 1870 o poeta Arthur Rimbaud, aos 16 anos de idade, escreve uma carta a Théodore de Banville, líder do movimento parnasiano, autor de muitas das críticas literárias do seu tempo e influência nos simbolistas. Banville tinha 31 anos, publicara oito anos antes seu terceiro livro de poemas, Les Stalactites, e o adolescente Rimbaud o tinha como mestre.

A carta acompanhava três poemas, Sensation, Ophélie e Credo in Unam, e Rimbaud esperava que Banville os publicasse na edição da série Parnasse Contemporain que preparava.
Alguns trechos de uma missiva admirável pela elegância e reverência:
“Caro Mestre, estamos no mês do amor, tenho 17 anos”.
(Abro parêntese: o poeta só completaria essa idade em 20 de outubro daquele ano, portanto, a mentira de alguns meses é uma “licença poética” que aceito de bom grado. Fecho o parêntese. Siga a carta, Rimbaud):
“A idade das esperanças e das quimeras, como se diz – e eis que me pus a cantar, criança tocada pelo dedo da Musa -, perdão se isto é banal – as minhas crenças mais puras, minhas esperanças, minhas sensações, todas essas coisas de poetas -, que eu chamo de primavera... Dentro de dois anos, de um ano talvez, estarei em Paris”.
(Rimbaud estava em sua cidade natal, Charleville, a 200 quilômetros da capital. Desculpe, poeta, continue mais um trecho):
"– Anch’io, senhores jornalistas, serei parnasiano! – Não sei o que tenho dentro de mim... que quer subir à tona... – Eu vos afianço, caro Mestre, que sempre adorarei as duas deusas, a Musa e a Liberdade.”
Essa e mais dezenas de cartas estão na íntegra no livro A correspondência de Arthur Rimbaud, lançado pela L&PM Editores Ltda em 1983, com seleção do fundador da empresa, Ivan Gomes Pinheiro Machado, e tradução do jornalista, ator e diretor de teatro Alexandre Ribondi.
Em meados de 1986, numa tarde de sábado entrando pela noite, tive um longo e inesquecível encontro em Brasília com Ribondi. Eu acabara de me mudar para a Capital e ele aqui estava desde 1968. Nossa conversa foi justamente, pelo menos de início, por curiosidade minha, sobre as cartas que ele traduzira. A partir da acima mencionada, Ribondi falou com tanta propriedade e intimidade, que passou tranquilamente a impressão que convivera com o precoce poeta francês.
O seu trabalho de tradução, mais do que a transposição de um texto-base de uma língua, é a compreensão de especificidades, estilo e voz de origens – o que, por definição, assim é a versão de uma obra para outro idioma. Mas no caso das cartas de Rimbaud, Ribondi (e que feliz aliteração essa agora!) adentrou na personalidade complexa e carismática do poeta de tal forma que os hipérbatos, as anástrofes, as sínquises, todas essas normas de retórica e estilística gramaticais, são de uma fidelidade impressionante. Eu, que não leio em francês, convicto entendi como seria o original na leitura em português. A tradução envolve sutilezas, e burilá-las requer não somente conhecimento, e sim, paixão.
Alexandre Ribondi me banhou de mais paixão por Arthur Rimbaud naquela tarde sob o céu do cerrado que nos protegia. Eu o ouvia e via o poeta francês naquele amigo de camisa bege, óculos redondos e boina clássica Beret. E como a saudade rebobinando o calendário, esse encontro veio-me completo com uma notícia triste transbordando o peito ontem pela manhã, um sábado prolongado de feriado.
Aos 70 anos, Ribondi faleceu em Brasília, cidade que esse capixaba de múltiplos talentos adotou e deixou-se eternizado no coração de quem tanto o quer bem.
Como o termo saudade não tem tradução literal em francês, direi como Rimbaud: “tu me manques”.