domingo, 30 de abril de 2023

apontamentos para um domingo


Belchior tinha 27 anos quando compôs em 1973 Passeio, faixa 2 do lado B de seu primeiro disco, lançado em abril de 1974, pela Chantecler, que tem seu nome como título e ficou mais conhecido como Mote e glosa, música que abre o lado A.
Ao som de uma flauta e a cadência de uma percussão que sugerem passos por calçadas, Belchior convida quem o ouve a andar pelas ruas de São Paulo. Ele, que sempre era parado por um guarda em cada esquina e pedia seus documentos, como disse no disco seguinte, Alucinação, 1976, na música Fotografia 3x4, revela a estupefação e admiração do jovem que, com seu talento em peso, desceu do norte pra cidade grande.
“Meu amor, meu amor, meu amor / vamos andar / e passear”, replica o verbo de movimento transitivo direto que lembra mãos dadas, com ele, que se dizia “apenas o cantor”, e sua história, que “é talvez igual a sua”, “por entre carros”, saindo "pela rua da Consolação" onde chegaria a um pedaço de verde na metrópole, pudesse se deitar na grama, olhar para o céu sem prédios “dormir no parque em plena quarta-feira / e sonhar com o domingo em nosso coração.”.
Belchior, o cearense de Sobral, nessa música dialoga em cumplicidade de sentimentos com outro nordestino, o baiano de Irará, Tom Zé, que um ano antes lançou Todos os olhos, pela Continental, e disse que entre a vaidade da rua Augusta e a maldade da rua Angélica, graças a Deus encontrou a rua da Consolação “que veio olhar por mim / e me deu a mão.”.
Na letra de Augusta, Angélica e Consolação, segunda do lado B, Tom Zé sintetiza a cinesia de vários domingos nas expressões de alinhamento de três ruas importantes da capital paulista, e paralela e poeticamente configuram nomes de mulheres fortes, de amores e dores, convergindo naquela que o acolhe, a que etimologicamente consola. A rua Consolação é conhecida pelo fluxo de automóveis – os mesmos carros da canção Passeio - e na ponta final passa pelo Largo dos Aflitos, chegando à Estação da Luz. Belchior com seu vasto bigode no sol do parque, no barulho metálico de uma quarta-feira, sonhando com a luminosidade do fim de semana <> Tom Zé com seus cabelos tropicalistas “na estação da luz, / porque estava tudo escuro / dentro do meu coração.”.
Não dá para largar a mão de Belchior nesse passeio, e sentir a perplexidade paroxítona da “eletricidade / desta cidade” que lhe "dá vontade“ de "gritar que apaixonado eu sou”. Espanto e paixão tão bem colocados na simetria que pronunciam os versos seguintes: “neste cimento” que pulsa o abstrato do “meu pensamento”, que demonstra o contrafluxo do “meu sentimento”, que “só tem um momento”, o agora para “fugir no disco voador”.
Não, se não ficasse naquela cidade, não voltaria pro sertão. O novo sempre vem. Como veio também, naquele mesmo sintomático ano de 1973, na figura de outro baiano, que diante "as cercas embandeiradas que separam quintais" na cidade grande, fugiria “no cume calmo do meu olho que vê / assenta a sombra sonora dum disco voador”. Raul Seixas e Belchior igualmente se encontrando e com uma “porção de coisas grandes pra conquistar”, desafiando todas as dimensões, criando sociedades alternativas latino-americanas na música brasileira.
30 de abril de 2017, um domingo em nosso coração: Belchior ficou encantado com uma nova invenção e partiu, depois de “há tempo muito tempo longe de casa”, a léguas tiranas das margens do rio Acaraú que corta sua aldeia, nessas ilhas cheias de distância em Santa Cruz do Sul nos pampas gaúchos.
30 de abril de 2023, outro domingo como se fosse sempre dia 30 em nosso coração, porque seis anos são longos e a saudade muito maior. Porque amanhã será dia 1º, como foi naquele feriado trabalhador, quando, ao contrário do que prescreveu nos versos de Como nossos pais, voltou pro sertão, não como queríamos, não como o aguardávamos no palco do Anfiteatro Dragão do Mar, em Fortaleza, onde fomos ouvir seu último silêncio.
Assim como passeamos por suas canções, pelas ruas de São Paulo, de Fortaleza, do Rio Grande do Sul, e tantos brasis, caminhamos em despedida naquela segunda-feira em direção a sua nova e última estação.
“O anjo do Senhor / de quem nos fala o Livro Santo / desceu do céu pra uma cerveja, junto dele, no seu canto.”
Foto: Mário Luiz Thompson, capa do disco Belchior.


 

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