quinta-feira, 20 de abril de 2023

o desfalecimento de Fausto

Foto: Renato Parada, 2015

“Estou só em São Paulo no primeiro mês após o falecimento de Cynira. Basta escrever ‘falecimento de Cynira’ e um frio me atravessa. Mas é melhor escrever ‘falecimento’ do que ‘morte’. A morte é definitiva, o nunca mais, o ‘never more’. Falecimento lembra desfalecimento, saída de cena temporária, o que combina melhor com essa passagem, pois Cynira é figura vital e não se compatibiliza com a ideia de extinção.”
- Trecho inicial da primeira página do diário do historiador Boris Fausto, em 17 de julho de 2010, publicado no livro O brilho do bronze [um diário], Editora Cosac Naify, 2014.
Boris decidiu escrever como uma forma de suportar a ausência da esposa, com quem viveu por quase 50 anos. Extremamente sincero na saudade e um admirável humor no texto, o autor mais do que narra os sentimentos e reflexões sobre a viuvez, faz uma crônica da cidade de São Paulo e considerações sobre o momento social e político do país, observações inevitáveis por ser um dos maiores historiadores brasileiros.
A Revolução de 1930 – historiografia e história (1970) é uma leitura imprescindível para compreendermos aquele período que deu fim à República Velha e inaugurou a chamada Era Vargas, que durou até 1945. História geral da civilização do Brasil, que ele escreveu com Sérgio Buarque de Holanda nos anos 90, uma coleção de 11 volumes, é outra obra essencial para conhecermos nossa história desde a colônia até o Golpe de 1964. Aliás, a bibliografia de Boris Fausto é uma leitura indispensável, com mais de 30 títulos.
O brilho do bronze, mesmo com seu viés íntimo pela dor de uma ausência, é um livro que se mescla com o olhar amplo, de tudo e de todos. De suas idas sistemáticas, ritualísticas, ao túmulo de Cynira, levando as flores que ela tanto gostava (“Fico na dúvida se estou protegendo meus mortos ou dificultando sua respiração”), a uma conversa com o motorista de táxi que o leva ao cemitério (“Você vai se encontrar com ela, quando o dia chegar. E vai ser um encontro muito bonito”, diz um inconveniente taxista para o passageiro incomodado, “maldita racionalidade”, reage Fausto ao sair), o livro é uma abordagem tocante sobre saudade, sociologia e filosofia política.
Boris Fausto sofreu um AVC em 2021, um ano depois que faleceu seu irmão, o filósofo e professor Ruy Fausto, o que o impulsionou a escrever “Vida, morte e outras histórias”, também de memórias, para atravessar mais uma saudade e o isolamento da pandemia. Recuperou-se do derrame cerebral, mas faleceu ontem aos 92 anos.
Não pretendo deixar este mundo, a não ser forçado”, escreveu em uma das páginas do diário. “A noite com seus sortilégios”, como disse Manuel Bandeira sobre “A Indesejada das gentes”, é “iniludível”, “dura ou coroável”.
Um frio nos atravessou ontem, Fausto, com a notícia do seu desfalecimento. Sim, desfalecimento. Sua figura vital não se compatibiliza com a ideia de extinção. 

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