sábado, 31 de outubro de 2020

o ator e a rosa


O romance de estreia de Umberto Eco, O nome da rosa, 1980, é um livro proposital e inteligentemente cheio de referências e reverências. Ambientado na Itália medieval de 1327, a trama se desenrola em um mosteiro beneditino onde durante sete dias acorrem insólitas mortes de sete monges. O frade franciscano inglês William de Baskerville é convocado para investigar os crimes. Leva como auxiliar o noviço Adso de Melk. Baskerville configura-se nos moldes da intelectualidade renascentista, confrontando-se com a mentalidade teocêntrica medieval.

Filósofo, linguista e um dos maiores professores de Semiótica, Umberto Eco, falecido em 2016, aos 84 anos, criou os personagens em um enredo que nos prende em quase 500 páginas, e reveste-se em uma condução de suspense e mistério, como se fosse uma novela de serial killer nos corredores de uma construção da Idade Média. Essa é a forma. No conteúdo a intextualidade precisa tanto expõe a formação do autor, nas menções, quanto provoca nas alusões o debate sobre o pensamento iluminista e o cetismo, a Igreja e a existência de Deus, a racionalidade e as considerações do niilismo.
Como uma escaleta em que se delineiam os perfis, o escritor italiano assim elaborou suas orientações e parâmetros:
- o mosteiro localiza-se no norte da Itália, na mesma região onde nasceu o autor, Alexandria, célebre comuna que na construção lutou contra as forças do Imperador Frederico Barbarossa do Sacro Império Romano-Germânico, quando se chamava Cidade Nova. O denominação que se conhece deve-se ao papa Alexandre III, inimigo do imperador;
- o nome do personagem-detetive é uma citação ao frade franciscano, filósofo e teólogo escolástico inglês William de Ockham, o mais importante pensador no desenvolvimento de ideias constitucionais do Ocidente em plena Idade Média. O escritor criador de Sherlock Holmes, o escocês Artur Conan Doyle, é também reverenciado nesse batismo, através do título de seu livro de 1902, Os cães de Baskerville;
- o jovem assistente Adso é uma consideração ao fiel escudeiro de Holmes, Watson, com quem trabalhou por dezessete anos desvendando crimes nas histórias de Conan Doyle;
- o guardião cego do biblioteca, Jorge de Burgos, é um declarado tributo a Jorge Luis Borges, de quem Umberto Eco era devoto. As várias situações em ambientes com espelhos e labirintos remetem ao conto A Biblioteca de Babel, que o escritor argentino publicou no livro Ficciones, de 1944;
- a descrição da biblioteca no livro, com suas portas, janelas e escadas numa estrutura arquitetônica labiríntica e ousada, alude ao famoso quadro Relatividade, do holandês M.C. Escher, uma litografia de 1953;
- nas investigações o frade descobre que a sucessão de mortes no mosteiro está relacionada ao segundo livro da Poética de Aristóteles, considerado perdido, onde o filósofo grego defende a teoria do efeito do riso, demonstração natural de alegria do ser humano, o seu elo com os deuses, que firma o conceito de felicidade. Para Igreja medieval era um perigo, abalaria a fé, o temor a Deus, e, sobretudo, um desrespeito à instituição aqui na terra que representava os fundamentos dos céus. Nessa concepção, rir era um ato de escárnio e sacrilégio. Lembremos que na Inquisição, se uma mulher enlouquecesse nas torturas e no delírio da dor começasse a rir, era porque o diabo estava no seu corpo zombando dos inquisidores;
- no desfecho do livro, um grande incêndio destrói o mosteiro, iniciando-se justamente na biblioteca, numa designação direta da proibição dos livros como fonte de conhecimento e liberdade, um potencial revolucionário. Assim como a obra citada de Aristóteles, o saber que até nós chegou no decorrer dos séculos, é limitado, perdeu-se por ação criminosa do poder.
E nesse mosaico de referências, a adaptação para cinema, com o título homônimo, dirigida por Jean-Jacques Annaud em 1986, além de reforçar a essência da obra de Umberto Eco, ilustrando com originalidade os conflitos dos movimentos heréticos do século XIV, a luta contra o mistificação e o esvaziamento dos valores pela demagogia, tem em si uma curiosa analogia na simetria do tempo: o ator Sean Connery.
Consagrado no papel como o primeiro e mais carismático James Bond no cinema, em 007 contra o Satânico Dr. No, 1962, (antes dele, Barry Nelson viveu o personagem no telefilme Cassino Royale, em 1954), o ator escocês construiu uma sólida carreira quando deixou definitivamente de interpretar o agente secreto em 007 - Nunca mais outra vez, em 1983. Um título ironicamente determinante como despedida.
Sua atuação perfeita como o frade Baskerville em O nome da rosa é possivelmente o grande destaque em mais de sessenta anos no cinema. Sean Connery, num amálgama de Bond com Holmes, chamado para mais uma investigação, lapida seu personagem da Idade Média como viesse do futuro exterminar um mal do passado. Assim como lembramos na sua pele o agente britânico 007, criado por Ian Fleming, não esqueceremos o detetive franciscano William de Baskerville moldado dramaticamente em sua alma de sotaque shakespeariano.
Sean Connery faleceu enquanto dormia, na madrugada deste sábado, 31, em sua residência nas Bahamas, aos 90 anos. Um mês antes das tramas narradas em O nome da rosa, que acontece na última semana de novembro de 1327.

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

o poeta que ouvia livros


Em 1977 Jorge Luis Borges deu sete palestras no famoso Teatro Coliseo de Buenos Aires. A cada noite abordava um tema. Falou sobre clássicos da literatura, a natureza da poesia, budismo, cabala... A semana de conferência foi publicada em livro em 1980, um volume de 61 páginas intitulado Siete noches, pela Editorial Meló, do México.

No último dia Borges falaria sobre professores religiosos gnósticos em Alexandria. Desistiu ali mesmo na mesa e preferiu conversar sobre sua cegueira, decorrida de problemas hereditários. A avó e o pai morreram cegos, “sorridentes e corajosos”, lembra. O poeta começou a perder a visão em 1955. Tinha 46 anos, 19 livros publicados, entre poesia, contos e ensaios, e dirigia a Biblioteca Nacional da Argentina.
Borges considerava a publicação uma das mais importantes de sua vida literária. "Não é ruim; eu penso sobre temas que tanto me obcecaram, este livro é meu testamento”, disse ao editor quando lhe perguntou o que achava do título sugerido.
E do livro o que mais me toca é o capítulo, La ceguera, a última noite no Coliseo. Em seis páginas “ouvimos” a fala de Borges sobre sua angústia, aceitação e descobertas com o glaucoma. A escuridão o estimulou a escrever mais do que antes. Ou melhor, não era escuridão. O poeta recusava o substantivo das trevas. Até questiona, logo no início da palestra, o verso do Soneto 27 de Shakespeare, “Looking on darkness, wich the blind to do see” / “Olhando na escuridão, o que os cegos veem”. Para Borges os cegos não estão em um mundo escuro, pois se há uma cor que não existe do lado de dentro, para ele, é o preto. Nem quando enxergava e fechava os olhos para dormir.
Borges ficou cego aos poucos. O “lento crepúsculo começou quando comecei a ver”, diz, estendeu-se a partir de 1899, quando nasceu, sem momentos dramáticos, “um crepúsculo lento que durou mais de meio século”, arremata num parágrafo. Mesmo vivendo num mundo incômodo e indefinido, o poeta processou e guardou várias cores, o amarelo, o azul, o verde, o branco que se confunde com cinza, “já o vermelho desapareceu completamente, mas espero que algum dia (estou em tratamento) melhorar e poder ver aquela cor ótima, aquela cor que brilha na poesia e que tem nomes em vários idiomas.”
Borges não aprendeu braile. Quando estava em uma livraria, ou na Biblioteca onde trabalhava, dizia que “ouvia os livros e os ambientes”. A luz do que as páginas narravam brilhava cores em sua audição, em sua percepção. Aquele é o universo do poeta. E assim Borges imaginava a quantidade de livros ao seu redor e o que eles contavam. Há muito tempo circula nas redes sociais uma frase em que o poeta imagina o Paraíso como uma biblioteca. O que virou um apressado e deslocado aforismo, sem identificar a procedência e contextualização, foi dito nos minutos iniciais de sua palestra sobre a cegueira, transcrito na página 53:
“Aos poucos, comecei a entender a estranha ironia dos acontecimentos. Sempre imaginei o Paraíso sob uma espécie de biblioteca. Outras pessoas pensam em um jardim, outras podem pensar em um palácio. Lá estava eu. Era, de alguma forma, o centro de novecentos mil volumes em vários idiomas.”
Borges, na verdade, cita a si mesmo. Logo quando o crepúsculo começou em sua vida, escreveu o longo Poema dos dons, publicado no livro El hacedor, 1960. Composto de dez quartetos, o poeta relata o desenvolvimento gradativo de um mundo que sumia e outro que chegava: “Lento nas sombras, a penumbra e o nada / Exploro com o báculo indeciso, / Eu, que me figurava o Paraíso / Como uma biblioteca refinada”, em tradução de Augusto de Campos.
O Dia Internacional do Livro é comemorado em 23 de abril, referência da UNESCO às datas de falecimento de Miguel de Cervantes e William Shakespeare, em 1616. No Brasil, o Dia Nacional do Livro é celebrado hoje, 29 de outubro, em homenagem à fundação da Biblioteca Nacional, em 1810, com a transferência da Real Biblioteca portuguesa para cá.
Nas duas datas, e todos os dias, imaginemos o Paraíso como uma grande biblioteca.
..................................................................................................................
Do meu livro em preparação Crônicas do Olhar, com adaptações para esta postagem.
foto: Daniel Mordzinski, cena do documentário Borges para milhões, de Ricardo Wullincher, 1978.

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

da cor do sonho


Em 1980 a cantora, compositora e jornalista Mona Gadelha lançou o livro Contagem Depressiva, feito artesanalmente, na raça, ilustrações de Mino, com impressão gráfica rústica, rascante feito um rock, e uma tiragem limitada como uma estrela que risca o céu e temos que fazer um pedido. Na capa, uma foto sua, a menininha Simone Mary Alexandre Gadelha.

Inspirado num verso do poeta niteroiense Ricardo dos Anjos, o trocadilho do título provoca reflexões, ou inflexões, existenciais. Bem característico de uma certa época de inquietações em nossas vidas. Os desassossegos aos poucos entram no prumo ou sucumbimos de vez. Os oito contos confessionais na contagem dessa moça bonita, narrados em primeira pessoa como um blues pulsante, dissecam amores, desamores, esperanças... “afinal que situação existe entre a solidão e o desespero?”, pergunta a uma certa altura e queda.
Eu que já via Mona (en)cantar nos shows, eu que ouvia Mona cantar no disco Massafeira, eu que reouvia Mona como uma Patti Smith no calor de Fortaleza, depois do livro estampei e admirei Monamusa na cena musical.
A história do rock, do blues e das canções cearenses não passa por ela: está nela. Nos anos 70, 80, as emoções perigosas de quem fazia música na contramão dos bons costumes do lugar, tinham em Mona a postura e o comportamento femininos de quem pinta com talento e ousadia a cor do sonho que a música traz. Do compacto simples de 1985 que falava de um tédio ancestral e perguntava se o céu era azul, aos seis discos CDs que mapeiam com canções os sentimentos mais ternos, é muito mais que uma discografia ao longo desse tempo, é uma geografia afetiva na música brasileira.
E na contagem crescente do tempo nos tornamos amigos, um ali colado no coração do outro, um ali confidenciando suas dores nos momentos mais precisos, um ali somando esperanças no futuro mais urgente. E o meu encanto com o livro de 1980 tem simetricamente o enlevo três décadas depois, quando gravou meu poema Ventania, musicado por Ricardo Augusto, no disco Cidade blues rock nas ruas, em 2013. A interpretação deu uma outra dimensão aos versos. A gravação tatuou sonoramente a afeição, a estima, o apreço que nos une. O vento forte da vida nos mantém nessa praia lírica da amizade.
Hoje é seu aniversário, minha querida amiga. Parabéns pelo seu dia todos os dias!

terça-feira, 27 de outubro de 2020

a palavra precisa


Em um trecho da entrevista ao jornalista Joel Silveira, na Livraria José Olympio, no Rio de Janeiro, em 1948, Graciliano Ramos disse, sobre o ofício de escrever, que "a palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso, a palavra foi feita para dizer".

Essa e muitas outras entrevistas, com enquetes e depoimentos, estão reunidas no livro Conversas: Graciliano Ramos, organizado por Thiago Mio Salla e Ieda Lebensztayn, publicado pela Editora Record, em 2014. Os autores compilaram um riquíssimo material de 1910 a 1952, dando um painel da vida pessoal, intelectual e política do escritor alagoano.
A precisão da palavra na obra de Graciliano Ramos é definição desse pensamento pontuado na entrevista.
Graciliano está para a prosa assim como João Cabral de Melo Neto para a poesia. A síntese da palavra, a palavra certa na síntese, é o ouro verdadeiro que brilha em seus livros. A secura de sua literatura não é aridez, é concisão, é métrica em diálogos, é a dissecação dos sentimentos dos personagens e desenho definido dos conflitos, sem rodeios, a fundo. Graciliano é um minimalista do sertão, se destitui de excessos para fixar no âmago. Por isso sua palavra diz.
Vidas secas, publicado em 1938, por exemplo, é uma espécie de romance-haicai, pelo texto e os diálogos sincopados. E essa objetividade e determinismo do escritor, faz o leitor partícipe do destino daquela família de retirantes.
Assim como o romance citado, todos os livros de Graciliano têm essa beleza e esse olhar determinado da escrita. São Bernardo, Angústia, Caetés, Insônia, os memorialistas Infância e Memórias do cárcere, tudo, até mesmo a bela obra de correspondências, Cartas de amor à Heloísa, é de um esplendor poético impressionante pelo rigor das palavras.
128 anos hoje de seu nascimento. Graciliano, a escrita precisa na literatura brasileira.

canto buliçoso


Por volta de 1969, Belchior iniciou a composição Aguapé. A inspiração foi o poema A cruz na estrada, de Castro Alves, escrito por sua passagem em Recife, em 1865, e publicado em seu terceiro livro, Os escravos, 1883.

O cantor cearense colocou um trecho da obra do poeta baiano, como epígrafe:
“Companheiro que passas pela estrada / seguindo pelo rumo do sertão / quando vires a ‘casa’ abandonada / deixe-a em paz dormir / na solidão. / Que vale o ramo do alecrim cheiroso / que lhe atiras no ‘seio’ ao passar / vai espantar o bando, o bando buliçoso / das ‘mariposas’ que lá vão pousar”.
Na transposição, Belchior, com compreensível licença poética, trocou do original “a cruz” por “a casa”, “nos braços” por “no seio” e “borboletas” por “mariposas”.
A música foi gravada inicialmente em 1979, no LP Soro, projeto de Raimundo Fagner, que participou da faixa com Belchior, cantando e tocando viola e violão.
No ano seguinte, em seu sexto álbum de estúdio, Objeto direto, Belchior grava novamente Aguapé, repetindo o duo com Fagner, e acrescentando, logo na abertura, trechos do conto A madrasta, do escritor e pesquisador sergipano Silvio Romero, publicado no livro Contos populares do Brasil, de 1885:
“Capineiro de meu pai / não me corte os meus cabelos / minha mãe me penteou / minha madrasta me enterrou / pelo figo da figueira que o passarim beliscou”.
O canto é belíssimo, num lamento sertanejo entoado por Belchior, Fagner e uma discretíssima participação de
Fausto Nilo
. E em alguns momentos do arranjo do maestro P. C. Wilcox, alinhavando-se com viola, triângulo e acordeom, trecho do Canto Gregoriano Salmo dos Exilados.
Ao contrário do poeta abolicionista Castro Alves, o trecho de Silvio Romero não está creditado no encarte.
Aguapé é uma das mais belas composições de Belchior, que hoje faria 74 anos de sonho, de sangue e de América do Sul.
fotos da capa e encarte do LP: Maurício Albano

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

há dias que a vida é esperança

foto de Larissa Queiroz

Caio Ramos
, meu aluno do curso
Narrativas Cinematográficas - Porto Iracema das Artes
.
Orgulho de você, meu caro! Sinto-me gratificado pelas longas conversas que tivemos antes, durante e depois das aulas.

Entrevista na revista Piauí.

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

um cineasta apaixonado


foto Joe Gaffney, 1977

Em 25 anos ininterruptos de trabalho, François Truffaut dirigiu 26 filmes, conseguindo de maneira inteligente conciliar um grande sucesso de público e de crítica.

Em toda sua rica cinematografia, Truffaut amava a infância, o cinema, as mulheres - não necessariamente nessa ordem, mas tentando aqui sintetizar em três grandes filmes:
- transformou sua traumática infância em um dos mais belos filmes de sempre, Os incompreendidos (Les 400 coups), longa de estreia, em 1959;
- traduziu a sua paixão como cineasta no único e definitivo filme sobre os bastidores de uma produção, o metalinguagem A noite americana (La nuit américaine), em 1973;
- expressou sua paixão pela alma feminina em O homem que amava as mulheres (L'homme qui aimait les femmes), de 1977.
Em 1983 o cineasta lançou De repente, num domingo (Vivement dimanche!), um policial com ótimo enredo de suspense, com Jean-Louis Trintignant e Fanny Ardant, com quem estava casado há três anos. Truffaut comemorava a boa repercussão do filme e o nascimento de sua filha Josephine, quando numa manhã queixou-se de fortes dores de cabeça que continuaram pelos meses seguintes. Em 1984 foi diagnosticado câncer no cérebro e começou o tratamento.
Na tarde de 21 de outubro Truffaut faleceu no leito do histórico Hospital Americano de Paris, quando começava a escrever a autobiografia, com a ajuda do amigo roteirista Claude de Givray.
Jean-Luc Godard, com quem rompera em 1980, sentiu-se abalado com a notícia, e não conseguiu ir ao enterro do colega no Cimetière de Montmartre. Soube-se que o cineasta passou semanas entristecido, convivendo com as lembranças, quando os dois, garotos apaixonados pelos mesmos filmes, partilharam emoções escrevendo críticas, idealizando projetos no começo da carreira.
Godard expôs essas memórias e reconhecimento num longo artigo no número especial do Cahiers du Cinéma, em dezembro de 1984, onde diz que “existiu Diderot, Baudelaire, Elie Faure, Malraux, após François, nunca existiu outro crítico de arte."
E um surpreendente sentimento de desamparo Godard expressou numa entrevista em janeiro de 1985: "Ele conseguira o que ninguém entre nós havia conquistado ou buscado: ser respeitado. A partir dele, a Nouvelle Vague era respeitada. Éramos respeitados graças a ele. Ele desapareceu, não somos mais respeitados. Ele me protegia da sua maneira e eu deveria ter muito medo, pois essa proteção não existe mais."
Truffaut partiu na juventude da maturidade, aos 52 anos. Não teve tempo de escrever sua biografia, mas sua vida está claramente exposta e compartilhada em seus filmes.
O ator Jean-Pierre Léaud é nitidamente o alter ego do cineasta desde quando interpretou o menino Antoine Doinel em Os incompreendidos. O personagem praticamente cresceu na pele de Léaud, passando pela adolescência até a maturidade, em mais quatro filmes, O amor aos vinte anos (L'amour à vingt ans), Beijos roubados (Baisers volés), Domicílio conjugal (Domicile conjugal) e Amor em fuga (L'amour en fuite), do começo dos anos 60 ao final dos 70.
Mesmo trabalhando em vários filmes importantes de outros cineastas, Jean-Pierre Léaud traz no rosto a expressão, os traços, a história de seu amigo diretor. Até quando contracenou com o próprio Truffaut em A noite americana, parecia o personagem duplicado em espelho. Um caso raro na história do cinema.

terça-feira, 20 de outubro de 2020

o poeta

 

— papai o que é poeta?

os bagunceiros e arruaceiros, filho!
uns sonhadores que rasgam dinheiro
desconcertam a linguagem
na lagoa no lugar do lambari
colocam um violino nadando
no céu o pampa verdejante
na planície o mar azulante
e na lapela um girassol gigante
dizem coisas inesperadas
inventam ritmos alucinantes
às vezes até sem rima
atropelam o alexandrino
contrariam as leis dos sentidos
mais confundem que esclarecem
abusam do mistério
nas suavidades e nas asperezas
da luz sob as transparências
e do vento desenhando com nuvens
formas inexatas de bichos
tornam coisas abstratas
em ideias concretas imprevisíveis
são capazes de transfigurar
qualquer lógica ou limite
para declarar o amor a paz
imprescindível e intransferível
e ao final ainda confessam
que o poema não serve para nada
assim como as auroras as utopias
o perfume das cigarras na hortelã
e a trilha das formigas cortadeiras
no jardim depois da chuva
– papai, quando crescer
posso ser poeta?
Do livro O unicórnio do sul e outras lendas poéticas, de José Couto, publicado pela Autografia Editora, RS, 2018, com ilustrações de Luíza Maciel Nogueira.
O lirismo dos poemas e desenhos resgatam a beleza urgente e necessária das lendas, estórias, do lúdico para todas as idades, como encanto e reflexão na contramão desses tempos ditos pós-modernos, do adestramento tecnológico, do fast food dos afetos.

a mais completa tradução


foto Arquivo Prefeitura de Monteiro, PB 

"Ser poeta é tirar de onde não tem e colocar onde não cabe."

- Severino Lourenço da Silva Pinto, mais conhecido como Pinto do Monteiro, repentista paraibano (1895-1990).

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

imortal, posto que é chama


"Foi sacanagem a forma que me expulsaram do Itamaraty!", desabafou o poeta Vinicius de Moraes, lá pelos anos 70, a respeito de sua saída compulsória, definitiva e sumária dos quadros do Ministério das Relações Exteriores na época da ditadura.

Após 26 anos de serviços prestados ao Itamaraty, o poeta foi "aposentado" pelo regime militar em 1968, já como resultado da promulgação do AI-5. O general-presidente de plantão, Costa e Silva, exigia o desligamento do serviço público de "bêbados, boêmios e homossexuais". Brincalhão, Vinicius disse "eu sou o bêbado." O ministro da pasta, Magalhães Pinto, foi curto e grosso: "demita esse vagabundo!"
Com a exoneração, o poeta ficou muito magoado e deprimido. Extravasou seus sentimentos na poesia e na música.
Em meados de outubro de 1970, já perto do seu aniversário de 57 anos, Vinicius, Toquinho e Marília Medalha estavam em Buenos Aires fazendo um show na recém-inaugurada boate La Fusa. Hospedados no apartamento de um amigo, numa noite entre vinhos, cigarros e violões, a baiana Gesse Gessy, então esposa do poetinha, comentou que ouvira uma expressão no Mercado Modelo, em Salvador, que lhe chamou atenção: “na songa da mironga do kabuletê”, que descobriu ser uma espécie de injúria no idioma nagô. Ali mesmo nasceu a famosa canção gravada no disco Como dizia o poeta... música nova, 1971, pela RGE, faixa que fecha o lado A iniciado com Tarde em Itapoã. Por uma questão tonal, Toquinho trocou “songa” por “tonga”.
Na língua original, a expressão, segundo o Novo Dicionário Banto do Brasil, de Nei Lopes, 2003, significa 'força' (songa), 'feitiço' (mironga), 'sujeito desprezível' (cabuleté). Em São Tomé e Príncipe é literalmente usada de forma depreciativa, para onde se manda tudo que é ruim. Vinicius, como uma forma de protesto político e afronta aos militares que lhe deram um chute, usou a sequência dos vocábulos na letra da canção homônima como um xingamento, pela sonoridade, mais pelo valor sugestivo que semântico. Algo como "vão todos à merda!", disse. Curto e 'diplomático'.
Em 2010, no Escritório de Representação do MRE no Rio de Janeiro, Vinicius foi promovido pelo chanceler Celso Amorim, durante o governo Lula, à condição de Embaixador do Brasil, com a presença de parentes, amigos e passistas da Mangueira. Em algum cantinho, em bom lugar, o nosso eterno poetinha comemorou, com o tilintar de pedras de gelo no seu uisquinho, essa tardia reparação.
E neste dia 19 de outubro, quando se comemora 107 anos de seu nascimento, até o papa Francisco lembrou dele. No começo do mês, no momento em que lia o texto sobre a sua nova encíclica, "Fratelli tutti" (Todos irmãos), na qual pede o fim do dogma neoliberal e defende a fraternidade com atos e não apenas com palavras, fez referência à composição em parceria com Baden Powell, de 1967, Samba da bênção, dizendo que "a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro na vida”.
A benção do argentino Francisco ao xingamento nascido numa noite portenha. Saravá!

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

além do nacionalismo


Foto: Acervo Alberto Nepomuceno, 1908

Em julho de 2014, quando se comemorava 150 anos de nascimento do compositor, pianista, organista e regente cearense Alberto Nepomuceno, o crítico musical João Marcos Coelho, em um artigo para o jornal O Estado de São Paulo, descreveu-o como o mais consistente símbolo de virada de concepção sobre a música brasileira do século 19. Longe de ser um imitador ou divulgador da música europeia, o compositor soube com sua grandiosidade empregar a síntese de influência e ecletismo em suas criações. Maxixe, lundu, polcas, estão presentes na música de Nepomuceno, assim como habanera, tango e polcas, Wagner e Brahms.

O pianista João Vidal, em sua tese de doutorado Formação germânica de Alberto Nepomuceno: estudos sobre recepção e intertextualidade, defendida na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, 2011, desmitifica o dístico de que o compositor cearense foi apenas o “precursor” no nacionalismo musical.
Tanto o artigo de João Marcos Coelho quanto a pesquisa acadêmica de Vidal revelam e relevam a importância de inúmeras peças de cunho modernista de Nepomuceno, da dramática a orquestral, de câmara a instrumental, de vocal a sacra, sempre inspiradas nas tradições e caracteres brasileiros, mas ofuscadas pelo lema e estereótipo de caráter nacional.
As homenagens de 2014 foram poucas, considerando a dimensão de Nepomuceno na historiografia da nossa música erudita. Pelo menos, os lançamentos de livros, as palestras, os recitais, os CDs lançados com regravações, tiveram o mérito de não deixar um compositor de tamanha relevância cair no esquecimento de verbetes em enciclopédias.
Um desses discos é Luz e névoa, com a pianista Gisele Pires-Mota e o tenor André Vidal. O canção-título teve sua estreia em 1915, na Escola Nacional de Música do Rio de Janeiro, com a interpretação de Marietta Campelo e o autor Alberto Nepomuceno ao piano, que aplaudiriam a beleza de homenagem de Gisele e Vidal.
Noutro viés, e igualmente interessante, a banda cearense Banana Scrait, radicada em São Paulo, lançou o álbum Giostra, dividido entre canções próprias e adaptações de composições do maestro. Com delicadas texturas elétricas e arranjos de sopros, rearranjadas para um formato pop, folk e indie rock com pitadas de psicodelia e música clássica, o disco é um belo e solitário tributo ao grande músico conterrâneo, surpreendendo o ouvinte.
Em 1916 Alberto Nepomuceno sofreu um grande desgosto, a anulação arbitrária, por parte do governo, de um concurso na citada Escola Nacional de Música, que ele presidia há mais de dez anos. Em conflito com a instituição, subordinada ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores, o maestro demitiu-se. E afastou-se dos palcos. Estava separado de Walborg Bang, pianista norueguesa, que conheceu em viagem a Europa e casaram-se em 1893 e tiveram quatro filhos. Com dificuldades financeiras e muito adoentado, foi morar na casa do amigo Frederico Nascimento, um violoncelista português, no bairro de Santa Teresa.
Nepomuceno “embranqueceu, tinha o olhar adormecido e os seus amigos viam, aflitos, que caminhava a passos largos para a morte”, conta Luiz Heitor de Azevedo, em seu livro 150 anos de música no Brasil, página 173, edição de 1956. Os passos chegaram rápido na noite de 16 de outubro de 1920. O também amigo, professor e crítico de música Octavio Bevilacqua, sentado ao seu lado no leito final, emocionou-se ouvindo-o cantar sua última e inconclusa canção composta sobre o poema A jangada, do compatrício Juvenal Galeno. Os versos tornaram-se um imperceptível sussurro, substituídos vagarosamente por derradeiros suspiros: “minha jangada de vela / que ventos queres levar? / Tu queres vento de terra, / ou queres vento do mar?”... Tinha 56 anos.
Há 100 anos o compositor Alberto Nepomuceno embarcou em uma jangada. Foi sua última regência “no meio das ondas / nas ondas verdes do mar”.

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

o educador


Nos muros do país um trecho de Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa, página 61, última obra do patrono da Educação brasileira, lançada pela Editora Paz e Terra, 1996.

outros tempos, outro nível


foto Selmir Yassuda, 1992

O Brasil já teve um ministro da Cultura que foi filólogo, escritor, crítico literário, ensaísta, tradutor, diplomata, lexicógrafo, enciclopedista: Antônio Houaiss. Sua gestão, de 1992 a 1993, durante o governo Itamar Franco, teve apoio de artistas e intelectuais de todo o país.

Em seu discurso de posse, Houaiss definiu como prioridades de sua administração a recuperação e a preservação do patrimônio histórico e cultural, a retomada da atividade cinematográfica e um projeto de sustentação da língua portuguesa, por meio do estreitamento dos vínculos com Portugal e com as ex-colônias portuguesas na África.
Imortal, foi escolhido presidente da Academia Brasileira de Letras em 1995, em substituição a Josué Montello. Até o poeta Ledo Ivo, seu adversário na disputa, abriu mão da candidatura na véspera da eleição.
Além dos dezenove livros publicados, foi tradutor do clássico Ulysses, de James Joyce; autor do mais ambicioso e louvável projeto Dicionário da Língua Portuguesa, que tem seu nome; organizou as duas mais importantes enciclopédias feitas no Brasil, Delta-Larousse e Mirador; e assinou a primeira edição do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP), em 1981.
Outra de suas maiores realizações, e da qual se orgulhava, foi o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, 1990. Com o feito, uniu com precisão as duas carreiras, de diplomata, como membro do serviço exterior brasileiro, e a de linguista.
Falecido em 1999, aos 83 anos, Antônio Houaiss é um extenso verbete de uma página feliz de nossa história. 105 anos hoje de seu nascimento.

terça-feira, 13 de outubro de 2020

Bandeira do Brasil


Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
Talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
- Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta
Com cada coisa em seu lugar.
- Manuel Bandeira e seu poema-apóstrofe Consoada, publicado em Opus 10, 1952.
A iniludível desceu com seus sortilégios dezesseis anos depois no começo da tarde de 13 outubro. Veio-lhe dura, com uma hemorragia gástrica, aos 82 anos. Mesmo assim, não teve medo, o poeta sorria uma carinhosa e consoante evocação. A Indesejada encontrou o campo lavrado em uma vasta obra com cada coisa em seu lugar, coroada com poesia, prosa e traduções.
Otto Lara Resende em uma crônica sobre Bandeira, de 1976, publicada no livro póstumo O príncipe e o sabiá, 1994, diz em um trecho que “o melhor da pátria, quem sabe, são os poetas, a quem se fecham todas as portas, para que eles sejam mais livres e vejam mais longe. Sonham Pasárgada.”
Manuel Bandeira foi da geração de 1922 do Modernismo, mas teve desavenças com Oswald de Andrade. Recusou-se a assinar o Manifesto da Poesia Pau-Brasil e chegou a escrever um artigo detonando. Oswald, notório piadista, arriscava perder um amigo, mas não a oportunidade de uma brincadeira. E no embate entre os gênios, teria dito que “um poeta é sempre bem-vindo, e mais bem-vindo se é Manuel, Bandeira do Brasil”.
Chiste ou não, já saudara com distinção o que Lara Resende escreveu com louvor em sua crônica.

domingo, 11 de outubro de 2020

bença, mãe


Em meados dos anos 70 Tom Zé foi à grande rodoviária da capital paulista entrevistar nordestinos que aparecessem diante seus olhos. O cantor e compositor baiano queria colher material genuíno de sentimentos para o programa que o jornalista Fernando Faro apresentava na TV Cultura, MPB Especial – criado em 1969 como Ensaio, voltou ao nome de origem a partir de 1990.

Com seus olhos miúdos, atentos e profundos, Tom Zé viu uma moça morena na janela do ônibus se despedir da mãe com uma furtiva lágrima: “bença, mãe”. Era dezembro e a filha viajava para uma cidade do Nordeste para passar o Natal com os parentes que lá ficaram. O compositor se comoveu com a cena. A imagem não saiu de seu coração. A mãe abençoando e liberando as lágrimas enquanto o ônibus dava ré para sair, a moça acenando adeusinho misturando saudade com alegria de pegar estrada e rever outros queridos.
Conhecedor da alma desse universo de migrantes, Tom Zé partiu do pedido de benção que ficou no ar barulhento da rodoviária, e pegou como mote para compor uma canção. Preparava músicas para o próximo disco, vinha do conceitual e inventivo Todos os olhos, 1973, painel também sentimental de um nordestino na metrópole, e de Estudando o samba, 1976, uma releitura experimental e extremamente criativa do gênero. Agora Tom Zé faria um disco falando sobre os sonhos do nordestino que parte para o chamado Sul Maravilha, que sonha “viver bem civilizado, pagar imposto de renda / ser eleitor registrado, ter geladeira e TV / carteira do ministério, ter CIC, ter RG”, e que um dia na cidade grande possa “botar filho no colégio, dar picolé na merenda”, e quanto ao sertão “só volto lá a passeio, no gozo do meu recreio / só volto lá quando puder comprar um óculos escuro”.
E assim, com esse mapeamento afetivo de encantamento, devaneios e ilusões dos que arribam de suas terras, Tom Zé compôs a canção que abre o disco Correio da Estação do Brás, lançado em 1978, uma obra-prima do cancioneiro brasileiro. Nele, o cantor, através das onze faixas, expressa-se nos versos emotivos como quem traz e leva notícias de saudades mil e de esperanças infindas, como um portador para "quem quiser mandar recado / remeter pacote / uma carta cativante", como diz outra letra, a da música-título do disco.
E a canção inspiradora, Tom Zé pensou inicialmente em nomeá-la com o pedido retumbante "Bença, mãe", mas mudou para Menina Jesus, uma homenagem ao rosto de espírito inteiro na moldura da janela do ônibus. O compositor, dessa forma, inverte o percurso migratório e belamente feminiza a divindade de Jesus, o transitivo direto e pronominal agora menina, a que volta a passeio ao chão sagrado de origem para a ceia natalina.
Acima no vídeo, Tom Zé no programa Sr. Brasil, da TV Cultura, em 14 de maio de 2016, cantando o encanto da canção.
O cantor celebra hoje 84 anos idade. Salve, salve, eterno menino Jesus de Irará!
.........................................................................................................
Do meu livro em preparação Crônicas do Olhar, com adaptações para esta postagem.