sábado, 2 de novembro de 2019

Pasolini no Brasil

Em março de 1970, Pier Paolo Pasolini viajava para o Festival de Cinema Mar Del Plata, Chile, para apresentar Medeia, baseado na obra teatral de Eurípides, do distante século V a.C. Ao seu lado a cantora lírica Maria Callas, estrela do filme.
Passando por céus brasileiros, o avião teve que fazer um pouso de emergência em Recife. Os passageiros desceram e ficaram no hall. Logo se espalhou a notícia do famoso cineasta em solo pernambucano. O diretor de “Teorema” às margens do Capibaribe!
Nas poucas horas em que ficou no aeroporto, o atento observador Pasolini impressionou-se com os operários que trabalhavam na construção do prédio e aqueles que, transeuntes de outra classe social, eufóricos o cumprimentavam.
A imagem, como um retrato social do país que ele não conhecia de perto, o inspirou a escrever um poema. “No aeroporto em construção, passando / diante de um grupo de operários que trabalham / dos olhos que se levantam aos passageiros / é assim que o Brasil me saúda”, diz um trecho.
Quando retornou do Festival, Pasolini decidiu conhecer um pouco mais do Brasil. Parou em Salvador e Rio de Janeiro. Suas reflexões políticas e sociais o atiçavam. Vivíamos o pesadelo do terceiro período da ditadura militar sob o comando de Médici. O cineasta, com seus filmes e seu discurso engajado, intensificava críticas e denúncia do modelo cruel consumista de sua Itália, desde duas décadas, logo após a Segunda Guerra, disseminado pela revolução industrial. O neocapitalismo da também revolução tecnológica amedrontava Pasolini, que via principalmente na nova geração, jovens vítimas de uma cruenta doutrinação econômica.
O instinto do pensador em sua inquietação, relacionava situações preocupantes em países do terceiro mundo. Viver por uns dias o Brasil, testemunhar seus contrastes sociais, foi para o cineasta tão emergente quanto o pouso em Recife. Por isso, voltou.
No Rio foi guiado por um rapaz de nome Joaquim, que personificou a imagem da pobreza, da felicidade, do medo, da falta de perspectiva... (“aquele que arranca os olhos / pode ser confundido com aquele cujos olhos são arrancados. / Joaquim nunca poderia ser diferente de um sicário. Por que então não amá-lo se o tivesse sido?”, descreve em trecho do outro poema).
E subiram a favela da Rocinha (“A favela fatalmente nos esperava, / eu grande conhecedor, ele guia – / seus pais nos acolheram, e o irmãozinho pelado / recém-saído de trás do oleado –, ah, sim, invariabilidade da vida”, descreve do alto do poema),
O cineasta de encontro a uma realidade longe e perto da praia de Copacabana: “Se chego a uma cidade de além-mar / Muitas vezes chego a uma cidade nova, levado pela dúvida”, relata como num cartão postal às avessas em um ponto do poema. Uma realidade congênere a que ele via nas periferias de Roma (“ignorantes de imperialismo clássico / de qualquer delicadeza quanto ao velho Império a explorar / os Americanos dividem entre si os irmãos supersticiosos”, acusa no poema).
As disparidades sociais que o cineasta observou, mostrou uma espécie de estandardização da miséria e do consumo, entre um modelo do capitalismo europeu e o que se aplicava em países da América latina e na África.
Passados alguns dias nesse tour político-social, Pasolini voltou à Itália com dois poemas que expressam sua visão de um Brasil bem abaixo dos céus que o fizeram descer em Pernambuco.
Transumanar e organizzar e Hlierarquia, e mais reflexões de lúcido pensamento, estão no livro que leva o nome do primeiro poema, publicado em 1971.
Nos versos finais do poema escrito no Rio de Janeiro, Pasolini diz revoltado: “Ó Brasil, minha pátria desgraçada, / destinada sem escolha à felicidade / (de tudo são donos o dinheiro e a carne, / ao passo que você é tão poético)”.
Escreveria o mesmo se tivesse pousado no Brasil de hoje, no Ano 1 desta Era Tosca em que estamos (sobre)vivendo.
Hoje, 44 anos de sua morte. Pasolini sempre vivo!
Acima, o cineasta e Maria Callas desembargando no aeroporto Santos Dumont, Rio de Janeiro, 1970. Foto ©ANSA

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