quarta-feira, 6 de novembro de 2019

a imaginária Adalgisa

“Tudo é escuridão e dúvidas diante de mim. Penso no amor que não obtive e no que está comprimido nas minhas carnes e na minha alma. O amor intocável que me identificaria com o cosmo, que subjugaria a grandeza do universo às ações humanas, fossem elas plenas de bondade ou pejadas de impiedade. Fosse pelas desintegrações ou pelo processo que leva à unidade.
Invade-me um sentimento de agressividade, colocando-me entre duas escolhas: a solidão ou a morte!
Qualquer uma das duas contém um potencial poético. Há uma grandeza divina na derrota coberta de solidão, quanto no amor e na morte.
A solidão eu conheço em toda sua força magnífica. A morte eu espero ansiosa, com toda a sua ternura.”

- Parágrafo final de um dos maiores, densos e poéticos romances da literatura brasileira, A imaginária, de Adalgisa Nery, publicado em 1959.
Carioca nascida em Laranjeiras, a autora vinha de seis livros de poesia, de 1937 a 1952, quando precisou e decidiu estrear na prosa. Narrado em primeira pessoa, o enredo conta o drama da vida da interiorana Berenice, desde sua infância e educação num rígido colégio de freira, passando pelos conflitos da puberdade, até o casamento tumultuado com um homem mais velho e autoritário.
Mesmo com situações e personagens ficcionais, o livro é assumidamente autobiográfico. A autora incorporou em Berenice o alter ego para expurgar a relação de fascínio e aversão, de enlevo e dissabor com o pintor Ismael Nery, um dos precursores do Modernismo no Brasil, por quem se apaixonou e casou aos 15 anos de idade. Tiveram sete filhos, somente dois sobreviveram. O escritor, pintor e cenógrafo Emmanuel Nery, falecido em 2003, aos 72 anos, era o caçula.
Adalgisa ficou viúva aos 29 anos. O marido faleceu aos 34, vítima de tuberculose. Sem condições para criar os filhos, a escritora conseguiu um emprego na Caixa Econômica, depois no setor de Comércio Exterior no Itamaraty.
Em 1940 conheceu Lourival Pontes, jornalista e ministro cérebro pensante do controverso Departamento de Imprensa e Propaganda do governo Vargas. Casam-se. Adalgisa passa a acompanhar o marido pelo mundo, em viagens diplomáticas. Separam-se depois de 13 anos, quando Lourival se apaixona por outra nada imaginária.
A escritora entra numas de mal pra pior com o abandono. Foi o impulso para começar a escrever A imaginária, juntando as duas grandes decepções na vida, “o amor que não obtive e no que está comprimido nas minhas carnes e na minha alma."
O crítico literário Jonatan Silva disse uma vez que Aldagisa Nery praticamente criou, mesmo involuntariamente, o gênero autoficção, mais tarde “patenteado” pelo francês Serge Doubrovsky, com seu romance Flis, em 1977, por narrar fatos de sua vida com personagens fictícios, mas de contornos identificáveis. É o que os franceses chamam de “roman à clef”, recurso narrativo em que o autor retrata experiências pessoais sem se expor, cria até anagramas com seu nome para batizar personagens.
Nos tumultuados anos 60, e ainda marcada pela separação, a escritora deixa um pouco de lado a literatura, e dedica-se ao trabalho de jornalista. E numa inquietude, na ebulição à procura imaginável de sentido, saídas e soluções, cai na ciranda louca da política, eleita deputada três vezes com mandatos pelo PSB e MDB. É cassada no arrastão que se fez com a promulgação do AI-5.
O mais irônico é que, pobre e desamparada, Adalgisa foi acolhida, em Petrópolis, pelo apresentador de televisão Flávio Cavalcanti, notório simpatizante do governo militar. Mesmo sabendo das posições de seu protetor, a escritora dizia que preferiu escolher o caminho do afeto, e a ele dedicou seu penúltimo livro, o romance Neblina, 1972. Flávio, comovido, agradeceu, e a crítica execrou.
Como um réquiem para si, escreve o sintomático livro de poemas Erosão, em 1973. Encerra a carreira, fecha a estante e vai morar com o filho Emmanuel, numa inversa e uterina volta.
Uma noite, ao chegar em casa, Emmanuel encontra um bilhete da mãe. Sem nenhum motivo de atrito na relação que justificasse, e nenhum sintoma de qualquer doença, resolveu se internar numa casa de idosos, subjugando, assim, “a grandeza do universo às ações humana”, mesmo que “fosse pelas desintegrações ou pelo processo que leva à unidade", como finalizou Berenice, a personagem imaginada.
Após um ano vivendo na companhia crepuscular daquelas pessoas “plenas de bondade ou pejadas de impiedade”, sofre um AVC. Perde a normalidade da fala e parte do movimento do corpo. Solidifica a solidão que mais do que imaginava, conhecia de “forma magnífica”.
Em 1980, aos 74 anos, encontrou “a iniludível”, aquela a que esperava, e imaginava, com toda sua ternura. E parte.
Em 1999 foi lançada a biografia Adalgisa Nery — Muito amada e muito só, da jornalista pernambucana Ana Arruda Callado. Imprescindível para conhecer um pouco mais dessa grande força feminina que afirmava mais do que se justificava, “que culpa tinha eu de viver sinceramente as realidades do meu mundo governado pelos meus sentidos?”
Acima, Adalgisa fotografada em 1971 por Paulo Garcez, para O Pasquim

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