Viagem, décimo livro de Cecília Meireles, reúne sua produção de 1929 a 1937. Publicado em 1938 pela Lisboa Editorial Império, recebeu o Prêmio Olavo Bilac concedido pela Academia Brasileira de Letras.
Dedicado “aos meus amigos portugueses”, é um dos seus mais belos livros. Um passeio na plenitude do eu-lírico existencial em 199 páginas, construção perfeita nas intercessões do Simbolismo ao Modernismo. Nesse período, além de suas obras, Cecília fazia traduções, viajava por vários países, e lecionava Literatura Luso-Brasileira e Técnica e Crítica Literária na Universidade do Distrito Federal, à época no Rio de Janeiro.
Alguns fatos marcaram Cecília Meireles nos seis anos em que ela preparava o livro, e, inevitavelmente, refletem-se em muitos poemas.
O mais grave foi o suicídio de seu primeiro marido, o pintor português açoriano Fernando Correia Dias, em 1935. Cecília casou-se aos 20 anos e com ele teve três filhas, as Marias Elvira, Matilde e Fernanda, esta conhecida atriz de televisão, destaque nas novelas na década de 70, Gabriela, Pai Herói, O Grito, e no cinema, entre outros papéis, foi a Rainha Dona Maria I no filme de Carla Camurati, Carlota Joaquina, 1995. Foi ela que, muito criança, encontrou o pai enforcado.
Também fatídica foi sua relação com o presidente Getúlio Vargas, a quem chamava publicamente de ditador. Cecília escrevia em sua coluna Página da Educação, no jornal Diário de Notícias, fortes artigos defendendo o ensino laico, as liberdades individuais, uma república democrática, posicionando-se contra o ufanismo do governo. Perseguida, teve o Centro de Cultura Infantil, criado por ela e o marido, fechado em 1934, por ordens vindas do Palácio do Catete, sob a acusação que na biblioteca teria “conteúdo educacional duvidoso” para as crianças, como o clássico As Aventuras de Tom Sawyer, de Mark Twain, sobre o garoto que vive na sociedade sulista do século 19, às margens do rio Mississippi, nos Estados Unidos, quando predominava o sistema da escravidão.
Menos traumático, mas frustrante pelo pitoresco, foi o desencontro com Fernando Pessoa. Cecília Meireles viajou à Portugal naquele mesmo ano para uma série de palestras nas universidades em Lisboa e Coimbra. O poeta dos heterônimos marcou o contato num café da capital, Cecília esperou, esperou, e depois de algumas horas e várias xícaras de chá, decidiu voltar ao hotel. Encontra na portaria um exemplar autografado do livro Mensagem e um bilhete de Pessoa se desculpando: fora aconselhado por seu horóscopo daquela manhã a não ir a encontros. Não fingiria a certeza que deveras sentia. O poeta falece no ano seguinte, levando Ricardo, Álvaro, Caeiro...
Cecília Meireles foi estampa na cédula 100 Cruzados Novos em 1989 – assim como Drummond na de 50 - no último ano do governo Sarney, aquele da dinastia do babaçu maranhense, escritor nos intervalos de mandatos, autor da "polinização" em nossa literatura com Maribondos de fogo. Mas veio o governo do marajá collorido das Alagoas no ano seguinte, as notas não circularam por muito tempo e o Plano Real de Itamar desvalorizou a Unidade Real de Valor dos poetas na mão do povo.
O livro Viagem traz entre tantos poemas consagrados, como os ótimos 13 Epigramas, o pouco conhecido pelo título, Marca, mas lembrado pela polêmica ao ter sua penúltima estrofe musicada por Raimundo Fagner, com o título Canteiros, gravada e não creditada no seu primeiro disco, Manera fru-fru, manera, 1973.
Não menos conhecido, o poema Motivo é gravado pelo cantor cearense cinco anos depois, no álbum Eu canto – quem viver chorará, apesar da contenda judicial movida pela família de Cecilia.
Motivo é, possivelmente, o poema mais substancial em metalinguagem, em significado e definição para Cecília Meireles: “Eu canto porque o instante existe / e a minha vida está completa. / Não sou alegre nem sou triste: / sou poeta.” A análise semântica que se faz de cada verso, “atravesso noites e dias / no vento”, “se desmorono ou se edifico, / se permaneço ou me desfaço”, traça um perfil elucidativo de quem tem o dom e o fado de lapidar a vida com a mais íntima manifestação da literatura: a poesia. O canto.
Hoje completam 118 anos de nascimento de Cecília Meireles. Mais de um século de asa ritmada. Se fica ou passa, ela sabia que cantava. E canção é tudo.
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