quinta-feira, 23 de outubro de 2025

só o coração pode entender


Foto: páginas de Luiz Galvão nas redes sociais

A tropical minimalista sincopada canção Acabou chorare, letra de Galvão, musicada por Moraes Moreira, tem uma história interessante.
Gravada no disco homônimo dos Novos Baianos, em 1972, o ano em que vivíamos em perigo com a ditadura Médici, o letrista conta na página 98 de sua biografia Anos 70: Novos e baianos (Editora 34, 1997), que um dia telefonou para João Gilberto contando que estava escrevendo uma letra sobre uma abelhinha, a natureza de polinização do doce inseto voador.
“Fenomenal!”, admirou o bruxo de Juazeiro, no alto de seu banquinho e violão.
E João contou ao conterrâneo a coincidência que só o coração pode entender: “Eu estava justamente falando com o poeta Capinan, e ele lembrava que a abelha beija a flor e faz o mel, e eu gostei e completei: E ainda faz zum-zum-zum”.
- Posso usar isso na minha letra? – perguntou Galvão.
- Deve – aprovou o mestre.
A inusitada parceria não parou por aí. João Gilberto contou que sua filha Bebel quando pequena levou uma queda. O pai preocupado correu para acudi-la. A menininha curiosamente reagiu com coragem e tentou acalmar o pai aflito, falando uma língua em formação: “Não, acabou chorare”.
E assim, a clássica canção de um dos melhores discos da história da música brasileira, tem o zum-zum-zum de João e o auto consolo surpreendente de Bebel Gilberto.
Lembrei-me dessa história porque hoje faz três anos que Galvão partiu. Naquele 2022, sob um céu que não nos protegia de um desgoverno, o poeta vivia uma situação financeira difícil, fazendo campanha nas redes sociais, vendendo suas relíquias autografadas para custear o tratamento de saúde.
Era domingo de um outubro tenso quando li a notícia. “De manhã cedinho / tudo cá cá cá cá, na fé fé fé / no bu bu li li...” e nada ficou lindo. Comecei chorare. Quase dois meses depois de internado, Galvão não resistiu a uma hemorragia gastrointestinal. Tinha 87 anos e muita saudade do Brasil brasileiro.
Uma abelhinha faz zum-zum-zum em meu coração.

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