sábado, 30 de novembro de 2024

primeira exibição


O documentário PESSOAL DO CEARÁ - LADO A LADO B será exibido na abertura do 4° FESTin Ceará - Festival de Cinema Itinerante da Língua Portuguesa, no dia 1°/12, domingo, às 18h, no Cineteatro São Luiz, em Fortaleza, com entrada franca.

Não é o lançamento do filme, previsto para o primeiro semestre de 2025.
Como convidado do FESTin, será uma exibição especial de Teste de Audiência, modalidade para avaliar a receptividade do público à obra, através de um questionário no Formulário Google, que será disponibilizado com acesso por QR Code após a sessão.
Fotos: Leo Mamede, Angélica Maia e Rubens Venâncio

quinta-feira, 28 de novembro de 2024

unidade


  Foto: Edouard Boubat, 1967


Cada dia

tem sua porção de vida
tem sua imensidão de luz
tem sua solidão de gente
cada dia
cabe em si mesmo
como cabem na terra
a colheita e a semente.
Cada dia
tem seu ontem e amanhã
tem seu silêncio de espera
tem sua largura de saudade
cada dia
cabe em si mesmo
como cabem no continente
a distância e a cidade.
Cada dia
tem seu mar e os peixes
tem seus barcos e as viagens
tem seus remos e mãos fortes
cada dia
cabe em si mesmo
como cabe no porto
o rumo do sul e do norte.
.............................
Do meu livro Poesia provisória (Editora Radiadora, 2019)

segunda-feira, 25 de novembro de 2024

a elegância do escritor


O primo Basílio, quarto livro de Eça de Queiroz, 1878, é um clássico romance sobre o adultério e a condição feminina, um exemplar do realismo da literatura portuguesa.
O escritor que já abalara três anos antes a moralidade da Igreja Católica no polêmico O crime do padre Amaro, dessa vez dirige seus dardos certeiros para as mazelas da família burguesa urbana, com uma análise ferrenha, focando com grande elegância literária, mas sem comedimentos na representação, os ridículos de uma classe média alta e proporcionalmente dissimulada. O personagem-título é uma espécie de dândi cínico e pedante, que mantém o estilo de vida aristocrático, mas decadente.
A precisão cirúrgica com que o escritor disseca os costumes, absurdos e contradições dos personagens da sociedade lisboeta, revela que o universo mesquinho e protótipo de futilidade reverbera-se muito além da geografia e do tempo. Nunca um romance teve seus aplicativos tão atualizados ao olharmos em volta o mundo em que vivemos, ladeira abaixo de hipocrisias.
Em 1873, durante uma viagem ao Canadá, Eça de Queiroz visita o estúdio do famoso fotógrafo William Notman, em Toronto, e faz uma de suas pouco conhecidas fotos, que ilustra abaixo esta postagem. Tinha 28 anos de talento e elegância.
Hoje, 179 anos de nascimento do escritor.

sábado, 23 de novembro de 2024

fuga e mergulho do poeta


Foto: Lüfti Özkök, 1961

A poesia do romeno Paul Celan é marcada pelo trauma do Holocausto. Judeu nascido em uma cidade que hoje pertence à Ucrânia, Tchernivtsi, seus pais foram deportados para um campo de concentração, onde morreram, e ele preso na Romênia em 1941, onde ficou até 1944, quando as tropas soviéticas desmontaram as imensas cadeias.
O poeta passou a carregar o que se chamava “culpa do sobrevivente”, a “condenação” por ter escapado, viver com as lembranças dos horrores e testemunhado a morte de milhares. Escrever era o exercício de sublimação da alma estilhaçada, em eterna solidão com os fantasmas, pois, como disse em um verso de Cinzas, “Ninguém / testemunha pelo / testemunho”.
Fuga da morte é o poema que mais o identifica com o pretérito atormentado. Escrito em alemão, como toda sua obra, foi publicado em seu primeiro livro, Papoula e memória, em 1948. Paul Celan tinha se mudado para Paris, onde concluiu os cursos de filologia e literatura, iniciados em Bucareste, tornou-se professor universitário, casou com uma artista gráfica, Gisèle Lestrange (1927-1991), e em 1955 teve um filho, Eric Celan, autor de um livro sobre a mãe.
Com longos versos sem pontuação, o poema é de uma grandeza comovente pelo enlevo de imagens translatícias, menções a personagens lendárias e analogias doloridas. São poucos os livros de Celan traduzidos no Brasil. Neste sábado vespertino de lembrança, destaco alguns trechos do citado poema, publicado na coletânea Cristal (Editora Iluminuras, 1999):
- “Leite preto da manhã nós te bebemos de madrugada”, referindo-se à fumaça dos crematórios;
- “quando escurece à Alemanha teus cabelos de ouro Margarida”, em alusão à jovem que na obra de Goethe seduz Fausto com joias materializadas pelo demônio;
- “nós cavamos uma cova nos ares lá não aperta”, sobre os mortos que dos fornos subiam aos céus e os jogados em covas coletivas.
O título do poema indica uma curiosa similaridade estrutural. As seis estrofes dispõem o ritmo de uma fuga, o estilo musical barroco. Um verso se anuncia como uma voz, que se remete mais à frente sobre outro verso e se encontram mais adiante com outros versos, formando vozes de um coro sobre o mesmo tema. As vozes de todos nos campos de concentração sob o mesmo destino.
Hoje, 104 anos de nascimento de Paul Celan.
Ele tinha 49 anos quando mergulhou para sempre nas águas do Rio Sena. Como apagando-se dos crematórios.

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

domicílio


 O meu poema, a música de Charles Wellington, o traço de André Dias.

Todos domiciliados no mesmo espaço do afeto.

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

cais


Foto: Edouard Boubat, 1959
 

"Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!"

- Verso de Ode marítima, 1915, de Álvaro de Campos, um dos cais de Fernando Pessoa.
Foto: Edouard Boubat, 1959

terça-feira, 19 de novembro de 2024

a imortalidade de Rosa


Foto: Arquivo Público Mineiro / Acervo DIMUS – Museus Estaduais de MG

Em 1957 Guimarães Rosa se candidatou à Academia Brasileira de Letras, mas obteve apenas 10 votos. Tentou outra vez em 1963 e foi eleito por unanimidade, ocupando a vaga do gaúcho João Neves da Fontoura. Mas o escritor não tomou posse de imediato. Tinha uns medos, umas crenças, e achava que poderia se sentir mal de tanta emoção. Adiou por quatro anos.

Quando se considerou seguro, acertou com a Academia para assumir a cadeira no dia 16 de novembro de 1967. Tinha ido ao México no começo do ano representar o Brasil no I Congresso Latino-Americano de Escritores, publicou em agosto o livro de contos Tutaméia – Terceiras histórias, participou do júri do II Concurso Nacional de Romance Walmap, e por iniciativa dos seus editores alemães, franceses e italianos seria indicado ao prêmio Nobel... Estava entusiasmado! Fecharia o ano empossado na Academia.
Em seu discurso, fazendo uma referência à imortalidade que o fardão consagra, disse que "...a gente morre é para provar que viveu". Uma fala com acento aforístico que caberia numa conversa de Riobaldo com seu compadre Quelemém.
Três dias depois, na manhã de um domingo, Rosa sofre um infarto em sua casa, em Copacabana, e falece, aos 59 anos. Estava sozinho, sua esposa, dona Aracy de Carvalho, tinha ido à missa.
Como pedira aos familiares, foi enterrado com seus óculos de míope. O semblante final como
Um passarinho
sob a robusta ossatura com pinta
de boi risonho?,
perguntou e definiu Drummond em um trecho do poema a ele dedicado, Um chamado João, escrito três manhãs depois da partida do amigo e publicado no jornal Correio da Manhã.
Neste dia 19 bem cedo antes do café fui à estante e folheei o exemplar de Grandes Sertões: Veredas, que li pela primeira vez, com imensa perplexidade e encanto, na época da faculdade de Letras. As páginas quase todas sublinhadas e com observações laterais – hábito de dialogar com a obra e o autor que me fez sentir cumpliciado ao saber que Pedro Nava fazia o mesmo.
57 anos hoje que Rosa provou que viveu. Tenho dessas saudades de quem nunca vi e sempre amei na intimidade da leitura.

domingo, 17 de novembro de 2024

o primeiro romance

Rachel de Queiroz tinha 19 anos, em 1929, quando contraiu uma séria congestão pulmonar, quase tuberculose. O médico recomendou repouso absoluto. Sob medicação, à noite e às escondidas, começa a escrever O Quinze, publicado no ano seguinte.
A trama do romance, com densidade no fluxo linear de dois planos narrativos – as agruras do vaqueiro Chico Bento e sua família e a relação afetiva do rude fazendeiro Vicente com sua prima Conceição – não é fruto de delírio febril da moça adoentada. Rachel inspirou-se na grande seca que presenciou no sertão cearense em 1915 e fez a família mudar-se para o Rio de Janeiro. O êxodo de vidas secas noutro viés.
A obra da estreante inaugura ao lado de A Bagaceira, do paraibano José Américo de Almeida, de 1928, o chamado Ciclo do Nordeste que renovou a literatura brasileira, onde as questões sociais, a realidade do retrato rural, o exame psicológico dos personagens, são elementos de um neorrealismo de introspecção e liberdade linguística, semelhantes ao do realismo urbano antecedido por Machado de Assis.
Hoje, 114 anos de seu nascimento.
Na foto de autor desconhecido, Rachel aos 20 anos, publicada na revista A Noite Illustrada, Rio de Janeiro, edição de 4/02/1931. Arquivo Nirez

sábado, 16 de novembro de 2024

a liberdade é uma estátua


O título desta postagem é uma fala da peça Deserto, baseada nas memórias e em fragmentos de diferentes obras de Roberto Bolaños (1953-2003). Apresentada recentemente no Festival de Teatro Cena Contemporânea, em Brasília, o monólogo na interpretação visceral e comovente de Renato Livera, aborda os últimos anos de vida do escritor chileno, diagnosticado com uma doença hepática crônica.
A primeira imagem que me veio ao ouvir a fala na contextualização cênica, foi a sequência final do filme Planeta dos macacos (Planet of the apes), de Franklin J. Schaffer, 1968.


Clássico da ficção científica, conta a história de uma tripulação espacial que depois de muito tempo hibernada na nave, pousa em um planeta parecido com a Terra, dominado por uma civilização de macacos, já no adiantado e inimaginável ano 3900. O planeta é a própria Terra, sem vestígios de seres humanos, e numa curiosa inversão, tem os símios como seres inteligentes, poderosos e bélicos.
Charlton Heston interpreta o astronauta George Taylor, sobrevivente que enfrenta a raça dos macacos falantes em busca de respostas para aquilo tudo. Heston, que já tinha sido salvador da humanidade como Moisés em Os dez mandamentos, o lendário herói espanhol em El Cid, o judeu libertário em Ben Hur, não foi à toa que a Century Fox o escalou para mais um papel de Messias-reloaded.
Depois de muito embate com os macacos, Taylor em uma fuga que extasiava a plateia, em desesperado galope à beira-mar, dá de cara com a Estátua da Liberdade, afundada parcialmente na areia, a tocha apagada em suspiro final. Uma das imagens mais impactantes da história do cinema.
O personagem ajoelha-se e sucumbe à dor. A cena resume toda a certeza que a humanidade estava ali disseminada, coagulada na mais grave desesperança. Hollywood, como fábrica mágica de sonhos e pesadelos, elipsou o apocalipse em uma cena extremamente simbólica, não somente por sabermos da cidade de New York sumida do mapa, mas de toda a população da Terra literalmente enterrada com a estátua presenteada pela França.
Naquela noite ao sair do teatro, a realidade lá fora anunciava Donald Trump como 47º presidente eleito dos Estados Unidos.
Enquanto andava sob uns discretos pingos de chuva deste novembro brasiliense, um trecho da fala de um personagem do livro O gênio e a deusa (1955), do visionário Aldous Huxley, juntou-se às minhas reflexões, perplexidades e temores, no entrelaçado encontro da peça, do filme e da realidade: “O mal da ficção é que ela faz sentido demais. Em seu estado bruto, a existência é sempre um infernal emaranhado de coisas”.
Parece que assim caminha a humanidade naquela praia em direção à liberdade, que é uma estátua. 

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

o tempo de Manoel



Em 2008 os jornalistas Bosco Martins, Cláudia Trimarco e Douglas Diegues foram a Campo Grande, Mato Grosso do Sul, entrevistar Manoel de Barros. Foi uma das raríssimas vezes em que o poeta recebeu a imprensa em sua casa. Ele não se sentia à vontade em entrevistas. Com sua timidez de passarinho e simplicidade pantaneira, Manoel preferia atender às perguntas por escrito. Até mesmo nesse encontro respondeu à máquina em sua Olivetti.

Os visitantes adentraram com muito zelo a rotina do poeta, que acordava às 5h da manhã, tomava um copinho de guaraná em pó, caminhava 25 minutos, tomava uma xícara de café com leite, subia ao seu escritório "de ser inútil”, dizia, descia ao meio-dia, tomava dois uísques, almoçava e sesteava. No resto do dia ouvia música erudita, Chico Buarque, Paulinho da Viola... E ia para o alpendre admirar o crepúsculo que “emenda com o meu crepúsculo”, arrematava.
Um dos jornalistas, querendo saber sobre o tempo, a duração da vida, cita o ator italiano Vittorio Gassman numa entrevista em que achava que a vida deveria ser duas, uma para ensaiar, outra para viver a sério, pois quando se aprende alguma coisa, está na hora de ir. “Concorda com isso?”, indaga o repórter.
Manoel sorriu por trás dos óculos e do bigode, como diria seu amigo Drummond, vira-se para a máquina e datilografa:

Concordo, sim. E até proponho uma solução científica. Seja esta:
O Tempo só anda de ida.
A gente nasce, cresce, envelhece e morre.
Pra não morrer
É só amarrar o Tempo no Poste.
Eis a ciência da poesia:
Amarrar o Tempo no Poste!
E respondendo mais: dia que a gente estiver com tédio de viver é só desamarrar o Tempo do Poste.”

A maravilhosa e surpreendente entrevista foi publicada na revista Caros Amigos, edição 117. Uma preciosidade para reler tanto quanto se volta ao encanto de seus livros.
Há dez anos o tempo de Manoel soltou-se do poste, não por tédio, mas em continuidade ao tratado geral das grandezas do ínfimo. “Viver nunca foi angustiante. Tirando o nunca até que venho bem até aqui”, refletia.
O poeta tinha 98 anos de infância na alma. “Eu não caminho para o fim, eu caminho para as origens”, epigrafou o seu tempo.
.....................................

Acima, desenho do poeta, do livro Celebrações das coisas. Bonecos e poesias de Manoel de Barros, organizado por Pedro Spíndola, editado pela Fundação Manoel de Barros e Fundação Municipal de Cultura de Campo Grande, MS, 2006.

terça-feira, 12 de novembro de 2024

a última quimera

 


Em 1912 Augusto dos Anjos lançou Eu, seu único livro, que reúne 58 poemas, todos em versos rimados e numa magnífica composição de decassílabos. Mas a publicação não agradou à crítica nem à classe conservadora. A literatura brasileira estava marcada pelas escolas simbolista e parnasiana.
O poeta paraibano usou a erudição como modelo formal, mas transgrediu no conteúdo, adotando uma linguagem com vocabulário científico para expor suas angústias existenciais. Sofrimento, pessimismo, tremores noturnos, podridão moral, morte, decomposição física, eram temas que não cabiam na elegância dos saraus de lirismo comedido.
Augusto dos Anjos passou por grandes dificuldades financeiras. Formado em Direito, nunca exerceu a profissão, sobrevivia lecionando Literatura no Liceu Paraibano, em 1910. Quando tentou transferência para o Rio de Janeiro, em busca de melhores condições, o governador João Lopes Machado negou o pedido. Augusto demitiu-se e foi embora com sua esposa, Ester Fialho.
Indignado, dizia que a injustiça social era solícita em premiar os ruins, dourar as falcatruas, entronar os endinheirados e avaríssima com os honestos e os sonhadores. Com a alma atormentada, sem emprego fixo, o poeta sacrificava-se dando aulas particulares. Tinha dois filhos, muitas dívidas e poucas esperanças.
Vislumbrou uma melhora de vida quando se mudou com a família para Leopoldina, em Minas Gerais. Por influência do cunhado, foi nomeado diretor de um grupo escolar. Mas cinco meses depois adoeceu, contraiu dupla pneumonia e faleceu em 12 de novembro de 1914.
Versos íntimos, seu poema mais conhecido, é no mesmo fôlego epígrafe e lápide de seus curtos e intensos 30 anos de vida com o coração cheio de pesares. Um soneto de insólita combinação paradoxal da finitude humana.
Nesta manhã, quando cedo me veio à lembrança sua história, fui à estante - esses passadiços horizontais em que se guardam dorsos verticais do tempo - e peguei o livro para folhear poemas em homenagem íntima, solitária, marejada. Imaginei como teria sido sua despedida.
Poucos devem ter assistido ao seu enterro no Cemitério Nossa Senhora do Carmo, em Leopoldina. "Somente a Ingratidão – esta pantera – / Foi tua companheira inseparável!”.
A vastidão dos prados mineiros foi sua última quimera.
Foto: autor desconhecido, 1912, Acervo Biblioteca Brasiliana Guita, São Paulo.

sábado, 9 de novembro de 2024

ê bumba-iê-iê boi, ano que vem, mês que foi


Foto: Acervo Família Torquato Neto

“E fique sabendo: quem não se arrisca não pode berrar. Citação: leve um homem e um boi ao matadouro. O que berrar mais na hora do perigo é o homem, nem que seja o boi. Adeusão.”
- Trecho do poema-imagem Pessoal intransferível, de Torquato Neto, escrito em 1971, um ano antes de ele apagar a luz...
E na imagem-poema acima, Torquato na exposição A pureza é um mito, de Hélio Oiticica, em Londres, na Whitechapel Gallery, 1969, um ano depois do antológico Tropicália ou Panis et Circencis, disco que tem suas letras Mamãe Coragem e Geleia geral (de onde destaquei o verso para o título da postagem).
Hoje, se acaso a sina do menino infeliz não se nos ilumina, ele faria 80 anos pessoais e intransferíveis.

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

cartas entre irmãos


Durante o período de 1873 a 1890 o pintor Vincent van Gogh escreveu quase 600 cartas para seu irmão mais novo, Theo van Gogh, um próspero comerciante de arte, com quem compartilhava suas instabilidades emocionais e dele recebia ajuda financeira.
Van Gogh guardou poucas das cartas que recebia, mas o irmão conservou todas. Graças a isso, logo após a morte de Theo, a viúva Johanna van Gogh-Bonger, professora e igualmente comerciante de arte, tratou de publicar algumas dessas correspondências e negociar os quadros do cunhado pela Europa. Ambos faleceram muito próximo, Vincent em 1890, Theo um ano depois.
A obra missivista é uma preciosidade para se conhecer o homem atormentado que foi o pintor. Van Gogh disserta sobre o processo de criação, o seu confronto com os costumes da sociedade burguesa, a sua consciência de se impor como artista e até mesmo – e a expressão substantiva aqui pode parecer contraditória - a lucidez em reconhecer sua loucura, sua crescente perplexidade e agonia diante da vida.
As naturezas-mortas com garrafas de absinto, as florações de um pomar de ameixa, as cortesãs e as velhas camponesas, a solidão dos terraços dos cafés à noite, os velhos tristes no portão da eternidade, os comedores de batata, as cadeiras na sala e o pequeno quarto de dormir, os telhados sobre Haia, o pátio do hospital em Arles, os barcos pesqueiros e o velho moinho, a alma nos auto-retratos, a angústia cinza de seus pinceis e a luz amarela de seus girassóis estão nessas cartas tanto quanto em seus quadros.
É sempre prazeroso reler esses escritos, parece que nos tornamos um dos destinatários. Cartas têm esse poder de acolhimento e cumplicidade. Hábito perdido nestes tempos em que a vida não é mais devagar. Nem divagar.

 

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

os instantes de Cecília


Foto década de 50, Acervo Solombra Brooks

Motivo, publicado em Viagem, de 1939, é o poema mais substancial em metalinguagem, significado e definição de Cecília Meireles:
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
A análise semântica que se faz de cada verso,
atravesso noites e dias
no vento,
se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
traça um perfil elucidativo de quem tem o dom e o fado de lapidar a vida com a mais íntima manifestação da literatura: a poesia. O canto.
123 anos hoje do nascimento de Cecília. Mais de um século de asa ritmada. Se fica ou passa, ela sabia que cantava. E a canção é tudo.
Foto década de 50, Acervo Solombra Brooks


 

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

this is the end

This is the end
...
No safety or surprise, the end
...
Can you picture what will be
...
The snake is long, seven miles
...
The killer awoke before dawn
...
This is the end
- Versos da canção The end, de Jim Morrisson, gravada no disco de The Doors, 1967.


 

segunda-feira, 4 de novembro de 2024

tato das retinas

Foto: André Arruda, 2013


Na madrugada de 1º de abril de 1964 o telefone tocou na casa do fotojornalista Evandro Teixeira. Era capitão Leno, seu amigo de vôlei de praia, dizendo que o Forte Copacabana, no Rio de Janeiro, estava sendo tomado. O militar era contrário ao golpe que se instalava. Teixeira, que morava nas proximidades, pegou sua Leica M3 e correu para o local. Com ajuda do amigo conseguiu entrar com a máquina escondida na jaqueta. E começou a fotografar a movimentação dos militares debaixo de uma chuva torrencial. Os golpistas não se incomodaram, pensaram que fosse fotógrafo do Exército. Mas Teixeira sentiu que era hora de sair quando chegou o marechal Castello Branco cercado de oficiais.

Dos registros que fez daquele início da página infeliz de nossa história, uma foto se destaca, a de um soldado no Forte, absorto e encharcado, expressando um sentimento de isolamento e melancolia, diametralmente oposto às comemorações da vitória. Eram 5h da manhã. O sol molhado que surgia prenunciava os tempos sombrios que viveríamos nas próximas décadas.
O jovem fotógrafo baiano de Irajuba tinha 29 anos quando ingressou em 1963 no Jornal do Brasil, o que considerou como o ano de arrebatamentos em sua vida profissional. Hesitou no início quando recebeu o convite do editor Dilson Martins. O JB era o mais importante periódico, referência gráfica e na vida política, cultural e econômica do país com suas reportagens e colunas. Foi o primeiro jornal a ter um estúdio fotográfico próprio e a usar as câmeras da fabricante sueca Hasselblad. “O ambiente do JB me transformou no fotógrafo que sou”, disse Evandro Teixeira, em entrevista ao site do Instituto Moreira Sales, em 2010, quando saiu do jornal.
Evandro Teixeira faleceu hoje aos 88 anos. Desde o começo do mês passado estava internado se tratando de complicações decorrentes de uma pneumonia. Nas redes sociais amigos fizeram campanha para doação de sangue. Foi atendido. Um gesto simbólico nesses afluentes de afeto e gratidão na corrente sanguínea do grande fotógrafo.
“A pessoa, o lugar, o objeto / estão expostos e escondidos / ao mesmo tempo sob a luz, / e dois olhos não são bastantes / para captar o que se oculta / no rápido florir de um gesto” // É preciso que a lente mágica / enriqueça a visão humana / e do real de cada coisa”, disse Carlos Drummond de Andrade no poema a ele dedicado, Diante das fotos de Evandro Teixeira, publicado em Amar se aprende amando, 1986.

sábado, 2 de novembro de 2024

a morte joga xadrez


Em O sétimo selo (Det sjunde inseglet), Ingmar Bergman questiona a existência de Deus e reflete o temor de que o mundo possa acabar de repente ou de que seja dizimado gradualmente por uma peste. Rodado em 1957, o cineasta baseou-se na peça teatral de sua autoria. "Foi o primeiro passo em minha luta contra o horror que sentia da morte", disse em Imagens, livro de fotobiografia, 1996.
Ambientado em uma época remota da Idade Média, o filme mostra o intrépido cavaleiro Antonius Block, que, voltando da Cruzada da Fé, convida a Morte para uma partida de xadrez com o intuito de distraí-la para que os flagelados escapem e, com o tempo, vencê-la.
Bergman usa o recurso narrativo como alegoria da racionalidade para entender o sentido da vida. Não se apega propriamente a uma determinada religião, e coloca a Igreja como uma instituição decadente, incapaz de impedir o mal e solidificar a fé.
O cavaleiro é vivido por Max Von Sydow, ator frequente na filmografia bergmaniana. A Morte, na interpretação marcante e assustadora de Bengt Ekerot, que, curiosamente teve uma carreira curta, falecendo aos 51 anos.



A emblemática cena dos dois personagens separados e unidos pelo tabuleiro de xadrez concretiza os aspectos da credulidade questionada. O cineasta inspirou-se no quadro Victoria mortis, de 1921, para compor a mais forte e pronominal sequência do filme. Pintada pelo também sueco Owe Zerge (1894-1983), a obra retrata a batalha do homem contra a mortalidade, a brevidade da vida na figura de um jovem desnudo, concentrado e angustiado diante do opositor que, pacientemente, sabe e aguarda sua vitória inevitável. A vulnerabilidade do tempo finito escorrendo na ampulheta, em que cada movimento simboliza decisões, ações e consequências.
Filme e pintura, que resistem e continuam, enunciam o aforismo do arquiteto e médico grego Hipócrates, popularizado pelo poeta romano Sêneca: “Breve é a vida, longa é a arte”.