quinta-feira, 31 de outubro de 2024

metomínia de um povo


"sua gula e jejum
sua biblioteca..."

- Versos da terceira estrofe de José, de Carlos Drummond de Andrade, no livro de título homônimo, originalmente publicado na coletânea Poesias (Editora José Olympio, 1942), que reúne também suas três primeiras obras, Alguma poesia, Brejo das almas e Sentimento do mundo.
José, o livro, com apenas 12 poemas, expressa e mescla a solidão do homem na metrópole e as questões pessoais do autor.
José, o poema, especificamente, é a mais pura elocução de abandono e desesperança do indivíduo na cidade, personificado no nome mais comum da nossa língua e que tem sentido coletivo.
Estruturado na verticalidade de versos livres, linguagem popular e ambiente cotidiano, Drummond repete o refrão “E agora, José” como um mantra de identificação, abraço e compartilhamento de sentimentos. Foi escrito no contexto e cenário dos escombros da Segunda Guerra e o Brasil do Estado Novo ditatorial de Vargas. O passado era refúgio, “quer ir para Minas, / Minas não há mais”; o futuro para onde se marcha não existe porta, “José, para onde?”.
Hoje, 122 anos de nascimento do poeta.
Você não morre, você é duro, Drummond.
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Foto: Luís Carlos/Agência JB, anos 70, publicada no livro Drummond Frente e Verso - Fotobiografia de Carlos Drummond de Andrade, Edições Alumbramento, 1989. 

terça-feira, 29 de outubro de 2024

o homem que amava os livros


Foto: Acervo Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, USP

O Dia Internacional do Livro é comemorado em 23 de abril, referência da UNESCO às datas de falecimento de Miguel de Cervantes e William Shakespeare, em 1616.
No Brasil, o Dia Nacional do Livro é celebrado hoje, 29 de outubro, em homenagem à fundação da Biblioteca Nacional, em 1810, com a transferência da Real Biblioteca portuguesa para cá.
Reverencio a data ao bibliófilo José Mindlin, criador da mais importante biblioteca privada do país. Quatro anos antes de falecer, aos 95, em 2010, ele doou sua coleção para a Universidade de São Paulo, com mais 30 mil volumes.
“A gente passa e os livros ficam. Então, é preciso que esse conjunto seja mantido e aumentado com o tempo. Sentirei saudades dos livros…”, disse durante a assinatura do termo de doação no auditório do Conselho Universitário.

 

domingo, 27 de outubro de 2024

Graciliano vai ao cinema


O escritor Graciliano Ramos era louco por cinema. Não perdia os filmes de Charles Chaplin, sua atriz predileta era Katherine Hepburn, e se divertia como uma criança de sua alagoana Quebrangulo com os desenhos da Disney.
Mas sua preferência forte, que o faziam ficar sem piscar os olhos na tela, eram as comédias sarcásticas de Frank Capra, que diametralmente denunciava, com humor, simplismo e idealismo, o que escritor dissecava com angústia a vida seca dos seus personagens. Imagino a preciosidade do sentimento desse encontro do cinema apólogo do cineasta hollywoodiano com o arcabouço literário do “Dostoievski dos trópicos”, como chama o biógrafo Dênis de Moraes.
Em Memórias do cárcere, obra póstuma, 1953, entre as agruras que relata, há uma passagem em que Graciliano conta como ele e a colega encarcerada Nise da Silveira, a médica psiquiatra, ficavam horas em planos quiméricos com vontade de assistir a um filme:
“Ociosos e ausentes do mundo, precisávamos fazer esforços para não nos deixarmos vencer por doidos pensamentos. Causavam-me espanto os devaneios dos outros, às vezes me sentia resvalar numa credulidade quase infantil, e era doloroso notar os escorregos do espírito. Nise ficava uma hora a matutar nos programas de cinema, exigia a minha opinião, grave. Entrávamos a escolher fitas, enfim nos decidíamos:
– Vamos ao Metro.
Esse exercício estava sempre a repetir-se, e nem sei se era apenas brincadeira, se não chegávamos a admitir a possibilidade maluca de atravessar paredes e grades, sair à rua, tomar o ônibus, entrar nas lojas, nos cafés, nas livrarias e nos cinemas".
Na foto de autor desconhecido, o Cine Metro Passeio, RJ, aguardando Graciliano.
Hoje, 132 anos de seu nascimento. 

sábado, 26 de outubro de 2024

o "bando" de Corisco

Foto: Cristina Pereira

Cine Brasília, 25/11, relançamento em cópia restaurada em 4K de Corisco e Dadá (1996).

Na foto após a exibição: Nirton Venancio (assistente de direção), Ronaldo Duque (cineasta, mediador do debate) e Rosemberg Cariry (diretor).

O sertão nordestino virou um mar de cinema com a direção operística de Rosemberg em Corisco e Dadá.


 

sexta-feira, 25 de outubro de 2024

na pele do cinema


De todos os meus trabalhos como assistente de direção no cinema, o que mais me marcou foi Corisco e Dadá" de Rosemberg Cariry (1996), com quem trabalhei em mais três filmes.
Marcou-me pela experiência que misturou em um mesmo caldeirão de sentimentos, o encanto de reconstituir uma realidade histórica num set em pleno sertão escaldante, sem filtro, do Ceará e Pernambuco.
Apontamentos para o meu aprendizado:
- A perplexidade gratificante de conviver com uma realidade do cinema brasileiro e suas dificuldades de produção.
- A convivência recompensante com uma equipe organicamente inserida em todas as frentes sob um céu saturado de luz.
- A alquimia no espaço rusticano de um elenco magistral plenamente na pele e alma dos personagens.
- E o que mais me cativou: o enlevo dos figurantes, muitos deles habitantes das localidades, que compunham os bandos de Lampião e Corisco, magnetizados pela caracterização dos personagens de Chico Alves e Chico Diaz, respectivamente, a ponto de reverenciá-los mesmo nos intervalos de filmagens. Mais do que seguiam as indicações do roteiro, obedeciam as ordens dos seus chefes.
O sertão nordestino virou um mar de cinema na condução da câmera galopante de Ronaldo Nunes e a direção operística de Rosemberg Cariry.
O filme, em cópia restaurada em 4K, será exibido hoje, às 19h, no Cine Brasília, com a presença do diretor para uma boa conversa após a sessão.

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

escrever é melhor que sonhar

Foto: Daniel Mordzinski

"A atividade de sonhar é a que mais se parece com a de escrever, exceto que a literatura vem a ser como um sonho que alguém dirige."
- Jorge Luis Borges, em entrevista ao jornal espanhol La Opinión, 1976.

ao grande mestre com imenso carinho


Há quase um ano eu conversava com o cineasta Vladimir Carvalho numa das Quintas Literárias da Associação Nacional de Escritores, em Brasília, quando ele me perguntou: “E o seu documentário sobre o Pessoal do Ceará?”. Disse que estava concluído e expliquei os motivos da demora, as dificuldades de finalização, a extensa negociação para a liberação de direitos autorais de músicas e imagens.

- Eu sei o que é isso. Minha vida toda foi negociar músicas e imagens, mais as imagens, para terminar meus filmes. – Disse-me, com conforto e parceria colocando a mão em meu ombro.
- Nirton, me diga uma coisa, você tem meu livro Jornal de Cinema?
Falei que não tinha mais, emprestei a um amigo que nunca me devolveu. “Ah, vou lhe dar outro. Passamos lá em casa depois daqui”.
E assim, generosa e surpreendemente, foi feito.
O amigo José Anchieta nos deu carona. O carro estacionou no bloco da 104 Sul. “Esperem aí que vou pegar”, pediu, saindo apressado.
Fiquei ali no enquadramento de janela 4:3 mesmo, como nas câmeras com que ele filmou O país de São Saruê, admirando aqueles passos de um dos maiores documentaristas indo pegar um livro para mim. Eu, eterno aprendiz de cinema diante daquele monumento.
Passaram-se mais de vinte minutos quando eu e Anchieta nos entreolhamos preocupados com a demora. E de repente lá vem ele com o exemplar. Saio do carro e chega se explicando: “Demorei porque não achava uma caneta pra dedicatória e não queria acordar minha mulher.”


Abri o livro e li o que com tanto carinho escreveu. Dei-lhe um abraço comovido e ele me flagrou com os olhos molhados: “Ei, gosto de você, conterrâneo velho de paz”, brincou, fazendo um trocadilho com o título de um de seus filmes.
E hoje, menos de um mês para completar um ano daquela noite em novembro, Anchieta me liga dando a notícia de sua partida. Agora subiu para outros sets e não volta mais.
Guardo essa dedicatória num dos lugares mais ternos do meu coração. Parafraseando o poeta Antonio Cícero, que partiu ontem: guardo olhando, fitando, mirando por admirar, iluminando e ser por Vladimir iluminado.

Vladimir Carvalho partiu há pouco


Foto: Breno Esaki

 

terça-feira, 22 de outubro de 2024

o rei da vela


Em 1940 o escritor, ensaísta e dramaturgo Oswald de Andrade apresenta sua candidatura à Academia Brasileira de Letras. Quinze anos antes tentou e não conseguiu. E dessa vez a intenção vinha caracterizada por polêmicas, pois o modernista acusava frontalmente a instituição de antidemocrática. Definia sua postulação como um desafio à ordem e necessidade de renovação. Um “paraquedista que se lança sobre uma formação inimiga, cujo destino único é ‘ser estraçalhado’”, escreveu em um dos seus artigos para a seção Telefonema do jornal carioca Correio da Manhã.
Provocador, intempestivo, anárquico, Oswald enviou junto com a inscrição uma carta ao presidente da Academia, Celso Vieira, onde, entre outras afrontas, pergunta se “será V.S. um dos membros da quinta-coluna, que camuflados no fardão, sabotam aí dentro, as magras conquistas do espírito brasileiro? ”. E para fazer alarde, manda o texto para os jornais, anexando uma fotografia ao lado de uma mulher segurando uma máscara contra gazes asfixiantes, que usou na França um ano antes, durante o ataque nazista. O que se entende como ilustração de uma outra parte da carta: “Passará pela cabeça de V.S. alertada pelos bombardeios contemporâneos, que o fim dos quarentas imortais que nas últimas décadas adormecem o espírito francês ‘sous la coupole’, pode ser um campo de concentração? Ou será V. S. daquelas teimosas velhas de Botafogo que ainda acreditam no pavoneio dos títulos literários, roubados aos verdadeiros trabalhadores da cultura?”.
“Pavoneio dos títulos literários” é ótimo! Muito adequado à proliferação dos saraus de hoje em dia e suas performances de lacração.
Ao final, no resultado da eleição, Oswald de Andrade perdeu para Manuel Bandeira, concorrente da “formação inimiga”, composta também, entre outros, por Menotti del Picchia, que desistiu da candidatura em favor ao poeta pernambucano. Oswald teve apenas um voto, de Cassiano Ricardo, autor do consagrado Martim Cererê.
A Semana de Arte Moderna de 1922, o Manifesto da Poesia Pau-Brasil, o Manifesto Antropófago, o Modernismo no Brasil, a transgressão, ousadia e inovação, tudo é sinônimo do imenso Oswald de Andrade.
Hoje, 70 anos que ele partiu para outras semanas.

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Foto: Oswald de Andrade em 1920, Acervo Marília de Andrade. Intervenção cromática de Andrea Vilela de Almeida, para a capa da segunda edição de Oswald de Andrade – Biografia, de Maria Augusta Fonseca, Editora Globo, 2007. 

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

um cineasta apaixonado


Foto Joe Gaffney, 1977

Em 1983 François Truffaut lançou De repente, num domingo (Vivement dimanche!), um policial com ótimo enredo de suspense, com Jean-Louis Trintignant e Fanny Ardant, com quem estava casado há três anos. O cineasta comemorava a boa repercussão do filme e o nascimento de sua filha Josephine, quando numa manhã queixou-se de fortes dores de cabeça que continuaram pelos meses seguintes. Em 1984 foi diagnosticado câncer no cérebro e começou o tratamento.

Na tarde de 21 de outubro Truffaut faleceu no leito do histórico Hospital Americano de Paris, quando começava a escrever a autobiografia, com a ajuda do amigo roteirista Claude de Givray.

François Truffaut amava a infância, o cinema, as mulheres. Sintetizo essa paixão em sua filmografia em três grandes títulos de minha predileção:

- transformou sua traumática infância em um dos mais belos filmes de sempre, Os incompreendidos (Les 400 coups), longa de estreia, em 1959;

- traduziu a sua paixão como cineasta no mais emblemático filme sobre os bastidores de uma produção, o metalinguagem A noite americana (La nuit américaine), em 1973;

- expressou sua paixão pela alma feminina em O homem que amava as mulheres (L'homme qui aimait les femmes), de 1977.

Truffaut partiu na juventude da maturidade, aos 52 anos. Não teve tempo de escrever sua biografia, mas sua vida está claramente exposta e compartilhada em seus 26 filmes e agora 40 anos de ausência.

domingo, 20 de outubro de 2024

cartas de um jovem poeta

 

Em 24 de maio de 1870, Arthur Rimbaud, aos 16 anos de idade, escreve uma carta a Théodore de Banville, líder do movimento parnasiano, autor de muitas das críticas literárias do seu tempo e influência nos simbolistas. Banville tinha 31 anos, publicara oito anos antes seu terceiro livro de poemas, Les Stalactites, e o adolescente Rimbaud o tinha como mestre.
A carta acompanhava três poemas, Sensation, Ophélie e Credo in Unam, e Rimbaud esperava que Banville os publicasse na edição da série Parnasse Contemporain que preparava.
Alguns trechos de uma missiva admirável pela elegância e reverência:
“Caro Mestre, estamos no mês do amor, tenho 17 anos”.
(Rimbaud só completaria essa idade em 20 de outubro daquele ano, portanto, a mentira de alguns meses é uma “licença poética” que aceito de bom grado).
“A idade das esperanças e das quimeras, como se diz – e eis que me pus a cantar, criança tocada pelo dedo da Musa -, perdão se isto é banal – as minhas crenças mais puras, minhas esperanças, minhas sensações, todas essas coisas de poetas -, que eu chamo de primavera... Dentro de dois anos, de um ano talvez, estarei em Paris”.
(Estava em sua cidade natal, Charleville, a 200 quilômetros da capital).
"– Anch’io, senhores jornalistas, serei parnasiano! – Não sei o que tenho dentro de mim... que quer subir à tona... – Eu vos afianço, caro Mestre, que sempre adorarei as duas deusas, a Musa e a Liberdade.”
Essa e mais dezenas de cartas estão na íntegra no livro “A correspondência de Arthur Rimbaud, lançado pela L&PM Editores Ltda em 1983, com seleção do fundador da empresa, Ivan Gomes Pinheiro Machado, e tradução do jornalista, ator e diretor de teatro, o capixaba-brasiliense Alexandre Ribondi (1943-2023).
Nesses escritos epistolares adentramos nas mais íntimas inquietações de Rimbaud, de tal forma que os hipérbatos, as anástrofes, as sínquises, todas essas normas de retórica e estilística gramaticais dos versos, na dificuldade e sutileza da tradução, desenham a personalidade complexa e carismática do imberbe poeta.
Hoje, 170 anos de seu nascimento.
Acima, arte urbana com a imagem do poeta, de Ernest Pignon, Paris, 1978.

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

o que escrevo me entrega

Bússola, do meu livro Poesia provisória (Editora Radiadora, 2019), parte 1, Explorar as tardes.
Com a primeira edição esgotada, a Editora está providenciando uma nova tiragem.
Coordenação editorial, Alan Mendonça; prefácio, Carlos Emílio Correia Lima; desenho da capa, Fausto Nilo. 

terça-feira, 15 de outubro de 2024

o escritor e o cinema


Em 2017 o ator e cineasta Selton Mello lançou O filme da minha vida, baseado no livro Um pai de cinema, do escritor chileno Antonio Skármeta. Ambientado no começo dos anos 60, numa pequena cidade da serra gaúcha, a história se desenvolve em ritmo de metalinguagem ao discorrer a ação do personagem central, um jovem fascinado por poesia e cinema, que convive com a ausência do pai, um projecionista de filmes que foi embora sem avisar a família.

Skármeta foi convidado pelo diretor para uma pequena participação. Está lá também em seus minutos como ator, interpretando o proprietário de um bordel.
Não foi a sua primeira experiência no cinema. Com o golpe militar de Pinochet, Skármeta saiu para a Argentina com o cineasta Raúl Ruiz e de lá para a Alemanha, onde passou a dar aulas de roteiro na Academia Alemã de Cinema.
Um produtor o convidou para criar alguma história sobre Pablo Neruda e Chile. Escreveu e ele mesmo dirigiu Ardente paciência. E fez o caminho inverso, transformou o roteiro em um romance. "Na literatura a narrativa é mais luminosa entre as opacidades e turbulências”, considera, distingue e desiste do cinema: “Ser roteirista me parece extremamente desgastante. Essa combinação criação e indústria sufoca. Uma adaptação da minha própria obra, prefiro mil vezes que outra pessoa a faça”.
E assim foi feito. O romance, que fora originalmente filme, foi adaptado para o cinema em 1994 com direção de Michael Radford com o título il postimo, no Brasil, O carteiro e o poeta.
Como a ponta de uma estrela que ilumina em todos os lugares, Skármeta brilha no filme de Selton Mello.
Já alguns anos acometido por Alzheimer, ele partiu na manhã de hoje, terça-feira, aos 83 anos.
Acima, trecho do making of de O filme de minha vida. O escritor fala do desejo que sempre teve de ver seu livro adaptado e filmado no Brasil.

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

velas da memória


O escritor e engenheiro mecânico naval inglês William McFree (1881-1966), que se dedicava a pensar viagens e oceanos em seus livros, condicionava que "O mundo não está interessado nas tempestades que você encontrou. Querem saber se trouxe o navio”. Lembrei-me dessa máxima ao terminar a leitura de Velas náufragas (Editora Penalux, 2019), do poeta piauiense, e agora também brasiliense, Diego Mendes Sousa.

Dividido em Opus e seus cantos e líricas, o livro é de uma preciosidade narrativa encantadora, de fôlego único pelas águas e costas de cada verso. Há uma condução interna e estética de movimentos das marés nesse memorial litorâneo e barroco. Diego constrói no longo poema, na estrutura mítica de uma caravela, o seu épico íntimo de marinheiro poético em sua natal Parnaíba, onde o Delta é o único em mar aberto para as Américas. Os versos de seus olhares iniciais foram quando o autor tinha “a idade eternal de Castro Alves”, como aponta no primeiro poema, Seres aladinos, e tem ele a precocidade de talento do seu conterrâneo Mário Faustino.

“Peixes, / Caranguejos, / Cavalos-Marinhos, Camarões / Tartarugas, Siris”, “Carnaúbas / Coqueiros, Cajueiros, Pedras, / Ventos, Mares, Mangues, Lagoas, Rios, Xananas”, toda paisagem de alma litorânea habita a vida do poeta e sua infância que se espalha pelas páginas molhando os pés do leitor. Todos esses seres, vistas e horizontes que Diego grafa em maiúsculas, dão a importância merecida dos nomes próprios, a mesma referência e reverência a Evandro Lins e Silva, Assis Brasil, Alberto Silva e dezenas de outros citados pela devoção do autor. O coração do poeta “é uma inscrição / precisa ao evocar os seres aladinos”.

Mas é no arquétipo dos caranguejos, dos siris, das lagostas, que Diego atesta e solidifica “o amor sublimado predestinado” do poeta nas águas barrentas e seus afluentes de inspiração. Foram esses pequenos seres de carapaça dura que “ensinaram-me a nadar / na solidão dos dias emirados sob as águas”, designa o autor na sua anatomia existencial. Todos diante do “horizonte fascinante” entre o rio Igaraçu e a Serra da Ibiapaba.

Assim como os navegadores antanhos Nicolau de Rezende e Gabriel Soares de Sousa adentraram o delta, o poeta legitima e destemidamente palmilha “arcaicos tombos imemorais / a sina destina-se ao fim / de tudo:”, o filho desvanecido que é de seu chão sagrado e sua poesia vivendo “da espinha dos peixes”, “do sal privilegiado dos camarões crescidos” e do “batuque do bumba-meu-boi” que por lá os povos inventaram e dançam. “Eita boi, / boi... Eita boi, boi”, eita poeta “que vive do seu / sopro de mar” e ventos das dunas.

Se “O amor é como um chão de neve também horizontal”, Diego Mendes Sousa edificou com os alicerces de seu coração a cidade imaginária Altaíba, geografia afetiva onde somente ele reside ao lado do “amor transcendido dos / mangueizais femininos da Altair”. O poeta sedimenta em sua alma litorânea um burgo muito mais distinto do que Pasárgada, onde Bandeira era amigo do rei e escolheria uma mulher; urbe mais eterna que Itabira que se tornou apenas uma fotografia na parede e como doía em Drummond; aldeia muito mais polida do que Macondo, onde García Márquez viveu sua solidão centenária. A cidade do poeta é conjugação no indicativo presente, “atmosférico / e intensamente marítimo”; está em Parnaíba como está no mundo, está em Altair como está em Diego.

O poema no livro não acaba nunca porque o autor volta sempre ao “coração dos mangues”. Meu texto não termina aqui porque continuo içando velas onde me encontro ao auscultar o “coração costeiro” do poeta.

Ao contrário do que sentenciou William McFree, Diego Mendes Sousa trouxe o navio e contou as tempestades que enfrentou. Caranguejos, siris, tartaruguinhas e tudo mais, agrupados na praia para ouvir as histórias de além-mar.

sábado, 12 de outubro de 2024

12 de outubro


A imaginação de crianças nigerianas na cidade Naija.
Elas fazem cinema com uma ideia na mão, a câmera na cabeça e a realidade no meio.
Foto: Olayemi Olatilewa, jornalista, escritor iorubá nigeriano, 2017.

 

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

a aurora das palavras

Foto: Cordis Notícias

“Papai raramente destruía o que escrevesse. O patinho feio, mantido e cuidado, pode crescer cisne. O que escrevesse, guardava”.
“Papai não repousava diante da obra que os outros supunham terminada. Sempre existe, ainda, alguma coisa por fazer. E o que existe se descobre, no rever das coisas feitas. Quase nada é definitivo”.
“Escrevendo sem cessar, meu pai manteve-se ausente das editoras durante dez anos mais: ‘As coisas que estão para a aurora, são antes à noite confiadas’ ”.
- Vilma Guimarães Rosa em Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu pai, Editora Nova Fronteira, 1983.
A citação que Vilma faz no último trecho é do conto Luas de mel, que Rosa publicou em seu livro de 1962, Primeiras estórias.
Acima, a escritora em visita ao Museu Casa Guimarães Rosa, Cordisburgo, MG, 2017.

 

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

o sopro da poesia

 


Foto: Altair Marinho

Nirton,
Você como alto poeta que é, sabe como ninguém que realmente a poesia é provisória.
A poesia sopra, acha o tom, revela a voz e vai embora. É uma hóspede do poema e a febre do poeta.
Li Poesia provisória (Editora Radiadora, 2019) com os olhos acesos, captando o rastro da poesia que lhe assalta o sentir. Seu livro está prenhe de sentimentos. Comoveu-me.
Você disse em Viés:
O poeta percebe
de forma estranha.
Por isso percebe.
Mais do que a percepção é a revelação do existir. Sua poesia é de vida vivida e de tempo temporão.
É do seu estro Turnos:
Os poetas
dormem tarde.
A poesia
é que acorda cedo.
Mui belo isso!
O poema Quimera, isso, sim, é boa imagem:
---------------O-lençol-no-varal---------------
é sempre
um poema
ao
vento...
Minha admiração,
Diego
.
Fortuna crítica e afetiva de um dos maiores poetas da literatura brasileira contemporânea, Diego Mendes Sousa.
Com a primeira edição esgotada, a Editora está providenciando uma nova tiragem.
Coordenação editorial, Alan Mendonça; prefácio, Carlos Emílio Correia Lima; desenho da capa, Fausto Nilo.