domingo, 30 de abril de 2023

apontamentos para um domingo


Belchior tinha 27 anos quando compôs em 1973 Passeio, faixa 2 do lado B de seu primeiro disco, lançado em abril de 1974, pela Chantecler, que tem seu nome como título e ficou mais conhecido como Mote e glosa, música que abre o lado A.
Ao som de uma flauta e a cadência de uma percussão que sugerem passos por calçadas, Belchior convida quem o ouve a andar pelas ruas de São Paulo. Ele, que sempre era parado por um guarda em cada esquina e pedia seus documentos, como disse no disco seguinte, Alucinação, 1976, na música Fotografia 3x4, revela a estupefação e admiração do jovem que, com seu talento em peso, desceu do norte pra cidade grande.
“Meu amor, meu amor, meu amor / vamos andar / e passear”, replica o verbo de movimento transitivo direto que lembra mãos dadas, com ele, que se dizia “apenas o cantor”, e sua história, que “é talvez igual a sua”, “por entre carros”, saindo "pela rua da Consolação" onde chegaria a um pedaço de verde na metrópole, pudesse se deitar na grama, olhar para o céu sem prédios “dormir no parque em plena quarta-feira / e sonhar com o domingo em nosso coração.”.
Belchior, o cearense de Sobral, nessa música dialoga em cumplicidade de sentimentos com outro nordestino, o baiano de Irará, Tom Zé, que um ano antes lançou Todos os olhos, pela Continental, e disse que entre a vaidade da rua Augusta e a maldade da rua Angélica, graças a Deus encontrou a rua da Consolação “que veio olhar por mim / e me deu a mão.”.
Na letra de Augusta, Angélica e Consolação, segunda do lado B, Tom Zé sintetiza a cinesia de vários domingos nas expressões de alinhamento de três ruas importantes da capital paulista, e paralela e poeticamente configuram nomes de mulheres fortes, de amores e dores, convergindo naquela que o acolhe, a que etimologicamente consola. A rua Consolação é conhecida pelo fluxo de automóveis – os mesmos carros da canção Passeio - e na ponta final passa pelo Largo dos Aflitos, chegando à Estação da Luz. Belchior com seu vasto bigode no sol do parque, no barulho metálico de uma quarta-feira, sonhando com a luminosidade do fim de semana <> Tom Zé com seus cabelos tropicalistas “na estação da luz, / porque estava tudo escuro / dentro do meu coração.”.
Não dá para largar a mão de Belchior nesse passeio, e sentir a perplexidade paroxítona da “eletricidade / desta cidade” que lhe "dá vontade“ de "gritar que apaixonado eu sou”. Espanto e paixão tão bem colocados na simetria que pronunciam os versos seguintes: “neste cimento” que pulsa o abstrato do “meu pensamento”, que demonstra o contrafluxo do “meu sentimento”, que “só tem um momento”, o agora para “fugir no disco voador”.
Não, se não ficasse naquela cidade, não voltaria pro sertão. O novo sempre vem. Como veio também, naquele mesmo sintomático ano de 1973, na figura de outro baiano, que diante "as cercas embandeiradas que separam quintais" na cidade grande, fugiria “no cume calmo do meu olho que vê / assenta a sombra sonora dum disco voador”. Raul Seixas e Belchior igualmente se encontrando e com uma “porção de coisas grandes pra conquistar”, desafiando todas as dimensões, criando sociedades alternativas latino-americanas na música brasileira.
30 de abril de 2017, um domingo em nosso coração: Belchior ficou encantado com uma nova invenção e partiu, depois de “há tempo muito tempo longe de casa”, a léguas tiranas das margens do rio Acaraú que corta sua aldeia, nessas ilhas cheias de distância em Santa Cruz do Sul nos pampas gaúchos.
30 de abril de 2023, outro domingo como se fosse sempre dia 30 em nosso coração, porque seis anos são longos e a saudade muito maior. Porque amanhã será dia 1º, como foi naquele feriado trabalhador, quando, ao contrário do que prescreveu nos versos de Como nossos pais, voltou pro sertão, não como queríamos, não como o aguardávamos no palco do Anfiteatro Dragão do Mar, em Fortaleza, onde fomos ouvir seu último silêncio.
Assim como passeamos por suas canções, pelas ruas de São Paulo, de Fortaleza, do Rio Grande do Sul, e tantos brasis, caminhamos em despedida naquela segunda-feira em direção a sua nova e última estação.
“O anjo do Senhor / de quem nos fala o Livro Santo / desceu do céu pra uma cerveja, junto dele, no seu canto.”
Foto: Mário Luiz Thompson, capa do disco Belchior.


 

sábado, 29 de abril de 2023

portal do tempo


Foto: Acervo Instituto Moreira Salles

“Zuenir Ventura falou pra mim: ‘Tenho um trabalho aqui pertinho ali, dá uns 200, 300 metros, um homem te esperando, é um ex-presidiário, era o rei da Lapa, e tá te esperando pra ser fotografado. Esse é, nada mais, nada menos que o Madame Satã.’
Eu era da sucursal da revista VEJA, no Rio, e fui, me encontrei com ele.
E quando ele olhou pra mim, parecia uma fera, um olhar assim maligno, um olhar perseguido, em questões não muito conclusivas. E eu disse ‘Quero fazer uma fotografia de você, Madame Satã, saindo daquele portal ali’. Eu tinha visto tudo num raio rápido, porque não me interessava fotografar ele assim, parado, eu queria que ele fosse um ator da minha lira. E aí ele disse que sim, de uma forma calada, só fez com a cabeça sim. E eu disse 'Vá umas três ou quatro vezes'. Ele foi. Eu disse ‘De novo, vamos’, ele veio. Eu disse ‘De novo’... ‘De novo’, até que foi essa.”
- Walter Firmo sobre uma de suas fotos mais conhecidas, de 1976, a do transformista, figura emblemática e um dos personagens mais representativos da vida noturna e marginal da Lapa carioca na primeira metade do século XX.
Fotografar é o começo. O congelamento do clique é o início do descongelamento da memória.
A fotografia tem esse poder de eternidade: ela atravessa o portal, a rua e o tempo.
As linhas horizontais metálicas de prisão, as linhas verticais da camisa coração, o azul da porta e da calça feito céu com o pássaro branco do chapéu, tudo se liberta no pé direito que flutua, emoldura agora o olhar terno diante a lira fotográfica de Walter Firmo.
A foto faz parte da exposição Walter Firmo: no verbo do silêncio a síntese do grito, no CCBB Brasília. 

domingo, 23 de abril de 2023

ah, se tu soubesses como sou tão carinhoso...



Em novembro de 1957 o cantor e trompetista Louis Armstrong esteve no Brasil para uma turnê com shows em São Paulo e Rio de Janeiro, então Capital Federal. Foi recebido pelo presidente Juscelino Kubitschek, encontrou-se com o ator Grande Otelo, os cantores e compositores Dorival Caymmi, Lamartine Babo, Fernando Lobo, com a divina Elizete Cardoso, foi homenageado com um banquete no Palácio Laranjeiras, onde cantou acompanhado por Sivuca... mas foi com o maestro, flautista, saxofonista, compositor Pixinguinha que o músico estadunidense mais afinou amizade.
A histórica foto acima, um flagrante de Luis Edgardi, da revista O Cruzeiro, simboliza bem o dia em que o jazz e o chorinho se encontraram.
126 anos hoje do nascimento de Pixinguinha. A data foi escolhida para comemorar o Dia Nacional do Choro, gênero que mescla princípios da música africana e europeia, como a polca, e expressa uma melancolia resultante dos elementos e modulações de sons plangentes.
Quando o já denominado choro entra na nossa cena musical, era tocado por instrumentistas de bandas militares, e, principalmente, por operários da indústria têxtil e funcionários públicos.
Pixinguinha trabalhava nos Correios, e tornou-se o maior compositor do gênero, apresentando-se nos cabarés da Lapa e teatros de revista, acompanhando cantores como Mário Reis e Francisco Alves, e participou de vários grupos instrumentais como Caxangá, Oito Batutas e o regional de Benedito Lacerda.
A melodia de Carinhoso foi composta em 1917, e posteriormente colocada letra por João de Barros. Somente nos final dos anos 30 tornou-se mais conhecida, com a gravação de Orlando Silva. Pixinguinha foi criticado por ser influenciado pela forma sincopada do jazz. Ele não se incomodou com o tom dessas observações, sabia que a variedade melódica, harmônica e rítmica de cada um dos gêneros tinha origem na cultura popular, na fascinante criatividade das comunidades negras.
Pixinguinha e Armstrong devem ter conversado muito sobre isso no encontro nos jardins do Palácio do Catete, onde a foto foi feita. 

sexta-feira, 21 de abril de 2023

migrante


Foto: "Candangos", 1957, de Mário Fontenelle
 

IV
no começo da terra vermelha e cidade
meu pai passou por aqui
enquanto juscelino passava em seu jeep.
adubou concreto
elevou colunas
estendeu asas:
o sonho avesso de pau a pique.
de vastidão por imensidão
de cerrado por sertão
entorpecido de poeira e saudade
um dia subiu no pau de arara que voltava
sob o olhar franzido de juscelino.
preferiu
o abraço de minha mãe
o leite ralo das cabras
e a esperança de sol a pino.
- Poema do meu livro em preparação A paisagem e a distância - escritos sobre Brasília.
A cidade hoje faz 63 anos. Cada operário em construção, tijolo com tijolo num desenho lógico, também faz aniversário.  

quinta-feira, 20 de abril de 2023

o desfalecimento de Fausto

Foto: Renato Parada, 2015

“Estou só em São Paulo no primeiro mês após o falecimento de Cynira. Basta escrever ‘falecimento de Cynira’ e um frio me atravessa. Mas é melhor escrever ‘falecimento’ do que ‘morte’. A morte é definitiva, o nunca mais, o ‘never more’. Falecimento lembra desfalecimento, saída de cena temporária, o que combina melhor com essa passagem, pois Cynira é figura vital e não se compatibiliza com a ideia de extinção.”
- Trecho inicial da primeira página do diário do historiador Boris Fausto, em 17 de julho de 2010, publicado no livro O brilho do bronze [um diário], Editora Cosac Naify, 2014.
Boris decidiu escrever como uma forma de suportar a ausência da esposa, com quem viveu por quase 50 anos. Extremamente sincero na saudade e um admirável humor no texto, o autor mais do que narra os sentimentos e reflexões sobre a viuvez, faz uma crônica da cidade de São Paulo e considerações sobre o momento social e político do país, observações inevitáveis por ser um dos maiores historiadores brasileiros.
A Revolução de 1930 – historiografia e história (1970) é uma leitura imprescindível para compreendermos aquele período que deu fim à República Velha e inaugurou a chamada Era Vargas, que durou até 1945. História geral da civilização do Brasil, que ele escreveu com Sérgio Buarque de Holanda nos anos 90, uma coleção de 11 volumes, é outra obra essencial para conhecermos nossa história desde a colônia até o Golpe de 1964. Aliás, a bibliografia de Boris Fausto é uma leitura indispensável, com mais de 30 títulos.
O brilho do bronze, mesmo com seu viés íntimo pela dor de uma ausência, é um livro que se mescla com o olhar amplo, de tudo e de todos. De suas idas sistemáticas, ritualísticas, ao túmulo de Cynira, levando as flores que ela tanto gostava (“Fico na dúvida se estou protegendo meus mortos ou dificultando sua respiração”), a uma conversa com o motorista de táxi que o leva ao cemitério (“Você vai se encontrar com ela, quando o dia chegar. E vai ser um encontro muito bonito”, diz um inconveniente taxista para o passageiro incomodado, “maldita racionalidade”, reage Fausto ao sair), o livro é uma abordagem tocante sobre saudade, sociologia e filosofia política.
Boris Fausto sofreu um AVC em 2021, um ano depois que faleceu seu irmão, o filósofo e professor Ruy Fausto, o que o impulsionou a escrever “Vida, morte e outras histórias”, também de memórias, para atravessar mais uma saudade e o isolamento da pandemia. Recuperou-se do derrame cerebral, mas faleceu ontem aos 92 anos.
Não pretendo deixar este mundo, a não ser forçado”, escreveu em uma das páginas do diário. “A noite com seus sortilégios”, como disse Manuel Bandeira sobre “A Indesejada das gentes”, é “iniludível”, “dura ou coroável”.
Um frio nos atravessou ontem, Fausto, com a notícia do seu desfalecimento. Sim, desfalecimento. Sua figura vital não se compatibiliza com a ideia de extinção. 

sábado, 15 de abril de 2023

o reflexo da esfinge

 

Quando se retirou do cinema, o mundo inteiro ficou vivo nela.
Tinha nascido com outro nome, e graças à sua beleza gélida mereceu ser chamada de Divina, Esfinge Sueca, Vênus Viking...
Meio século depois do adeus, Justo Jorge Padrón, poeta espanhol que falava sueco com sotaque das Ilhas Canárias, estava olhando uma vitrine de uma loja de discos em Estocolmo, quando o vidro descobriu o reflexo de uma mulher alta e altiva, envolta em peles brancas, parada às suas costas.
Ele deu meia-volta e viu a mulher, queixo erguido, grandes óculos escuros, e disse que sim, era, disse que não, não era, que era, que não era, que podia ser, e por pura curiosidade perguntou a ela:
- Desculpe, mas... mas... a senhora não é Greta Garbo?
- Fui – disse ela.
E com lentos passos de rainha, se afastou.
- Esse curioso relato está no livro póstumo de Eduardo Galeano, O caçador de histórias (L&PM Editores, 2016), uma compilação de mais de duzentos ótimos textos curtos, que mesclam relatos de amigos e autobiográficos.
O texto me faz lembrar outra curiosidade em torno de Greta Garbo: a frase “I want to be alone / Eu quero ficar sozinha”. Sempre associada à vida reclusa da atriz, na verdade é de Grusinskaya, personagem que interpretou em O Grande Hotel (Grand Hotel), clássico filme pós-depressão americana dirigido por Edmund Goulding em 1932.
A frase dita pela boca da protagonista, uma dançarina que não crê no amor, marcou como uma sentença a vida de Garbo ao retirar-se do cinema de uma vez por todas nove anos depois, logo após atuar em Duas vezes meu (Two-faced woman), de George Cukor. As críticas negativas ao filme abalaram a estima da atriz, que já se sentia desiludida com o mundo pelos horrores da Segunda Guerra.
Pouco mais de uma década depois, Greta Garbo, mais incisiva pela escolha que fez na carreira artística, afirmou em entrevista à revista Life, na edição de 24 de janeiro de 1955, que "Eu nunca disse que queria ficar sozinha; apenas disse: 'Quero ser deixada em paz'. Há toda uma diferença", imprimindo para si a lenda.
Greta Garbo nunca se casou, não teve filhos, não escreveu livro, e não se sabe se plantou alguma árvore. Também nunca ganhou um Oscar, pelo menos quando foi indicada várias vezes. A Academia com sua mania de tardia "mea culpa", deu a estatueta especial em 1954, celebrando o conjunto de sua obra. A atriz desdenhou da premiação, não compareceu à cerimônia. A pretérita Greta Garbo já estava decididamente recolhida com seu cigarro, objetos de arte, móveis raros e pinturas de mestres impressionistas no gigantesco apartamento da rua 52, em East Side, Nova York, onde faleceu na manhã de 15 de abril 1990, de pneumonia, aos 84 anos.
Acima, a solidão da esfinge fotografada por Cecil Beaton, no Hotel Plaza, New York, 1946.



domingo, 9 de abril de 2023

a ressurreição de uma obra


Na fé cristã, a Páscoa é a comemoração do fundamento e da crença que Jesus morreu e ressuscitou no terceiro dia.

A Igreja Católica, lá nos primórdios, preocupada em tornar o Cristianismo mais atraente para os ditos não-cristãos, misturou a ressurreição de Jesus com rituais de fertilidade que ocorriam na primavera, e ovos e coelhos simbolizam a fecundidade, multiplicação, abundância.
A reprodução acima é da belíssima obra do pintor renascentista Rafael Sanzio, Ressurreição de Cristo, criada na passagem de um século para outro, entre 1499 e 1502, no nascimento de um novo tempo.
É curioso como na grandiosidade de uma peça estejam marcados em suas cores, o símbolo, a história e significados de transformação, de mudança, de renascimento.
Um terremoto na cidade Tolentino, Itália, por volta do final do século 18, atingiu a Basílica de São Nicolau, onde estava o quadro, por detrás do altar. Foi recuperado, renascido, elevado aos céus para a humanidade. A obra ressuscitada.
Em 1947, o historiador e colecionador Pietro Maria Bardi criou, junto com o jornalista Assis Chateaubriand, o Museu de Arte Moderna de São Paulo. Bardi, que nasceu na mudança de um século, 1900, e faleceu na passagem de outro, 1999 – mais uma vez, o renascimento - foi diretor da instituição por dedicados 45 anos. Em 1954 adquiriu, através de leilão, o quadro de Rafael Sanzio para o Museu.
O belo e magnetizante óleo sobre madeira, de pouco mais de 50 cm de dimensão, exposto em cavalete de cristal, é a única obra do pintor italiano não somente no Brasil, mas em todo o hemisfério sul. Outra vez renascida em nova casa. 

sábado, 8 de abril de 2023

perdoa-me por me traíres


Judas quer compreender a mensagem de Cristo, e acha que os irmãos apóstolos estão seguindo sem questionar as palavras do Mestre. Judas discute com eles, defende o seu direito de adivinhar a verdade de Deus.
Essa versão enviesada e curiosa do apóstolo que virou, ao longo da história cristã, sinônimo da deslealdade e da postura pérfida, é apresentada no filme russo Judas, de Andrey Bogatyrev, 2013, e, exibido no Brasil na mostra Semana de Filmes Russos em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília (no Espaço Itaú de Cinema).
Adaptado do livro Judas Iscariotes, de Leonid Andreev, falecido em 1919 aos 48 anos, o filme desenvolve a tese de que não se trata de crime intencional, nem de culpa, mas de um desígnio obscuro que parece reger a vida de certos homens contra a vontade deles, contra a razão, contra a salvação. Judas é apresentado, na reviravolta dessa versão, como um personagem argumentativo, desafiando continuamente os discípulos quanto a sua compreensão pessoal da mensagem de Jesus - e da natureza divina. Em essência, o filme pergunta se o martírio forçado de Cristo por Judas não pavimentou o caminho para seus ensinamentos se enraizarem mais.
Na síntese dessas controversas interpretações, Judas, que era o discípulo favorito de Jesus, teria agido a pedido do Mestre, mesmo sabendo que depois seria perseguido por causa de seu ato. “Afasta-te dos outros e contar-te-ei os mistérios do reino. Irás alcançá-los, mas sofrerás muito”, teria alertado Jesus. Cumprida sua missão, Judas não teria se enforcado, como registram os evangelhos canônicos, mas se retirado para meditar no deserto. 

sexta-feira, 7 de abril de 2023

Jesus de Montreal


Um grupo de atores encena pelas ruas da grande Montreal, de forma nada convencional, uma versão teatral de A Paixão de Cristo.
Para complicar, a via-crúcis de Jesus se confunde com as dificuldades de cada um do elenco, principalmente para o jovem ator (Lothaire Bluteau, em duplo papel) a quem pegaram para Cristo.
Jesus de Montreal (Jésus de Montréal), de Denys Arcand, produção canadense, 1989, tem um dos mais originais argumentos que abordam o martírio de Cristo em direção à cruz. Com roteiro do próprio diretor, a narrativa de metalinguagem da peça dentro do filme faz um paralelo de cada acontecimento da história com o cotidiano dos artistas, dando uma simétrica e curiosa interpretação bíblica para os mortais.
Desenvolvendo outro viés, mas no mesmo desempenho de ousadia e criatividade, Arcand faz o que Pier Paolo Pasolini elaborou em O evangelho segundo São Mateus (Il vangelo secondo Matteo), 1964, a decodificação precisa, social e política do tema, ao contrário de todo tipo de leitura das produções que mitificam e edulcoram a "maior história de todos os tempos", aqui lembrando o título do clássico hollywoodiano dirigido por George Stevens em 1965.
Denys Arcand (O declínio do império americano, As invasões bárbaras, Amor e restos humanos) realiza um cinema que desconstrói mitos e conceitos estabelecidos, questionando e contestando o sentido de nossas inquietações.
No enredo de Jesus de Montreal, a peça não é vista com bons olhos pela Igreja. Fora do filme também.

quarta-feira, 5 de abril de 2023

o lirismo da memória

 


Trem da memória, de Nirton Venancio, descreve a geografia sentimental do Ceará. Percorre um trajeto que vai de um quintal idílico às nuvens que o verão dissipa.
As imagens contempladas pelo menino antigo evocam nomes e lugares de um tempo indelével que voa no trem fluido e misterioso das reminiscências.
O roteiro dos pássaros – e aqui uma referência ao título do premiado livro de estreia do autor, em 1981 - cresce em lirismo no olhar no poeta e do cineasta, em parceria os personagens do filme mágico avultam no cenário da infância. Os pais, os avós, as tias - os Totonhos Rodrigues, reverência que faço ao avô de Manuel Bandeira, citado em seus poemas Profundamente e Evocação do Recife - se embandeiram para marcar as fronteiras das paisagens e dos momentos que, embora longínquos, são trazidos à tona e revivem no transporte fluente e musical da poesia, que faz do quando um agora.
A poesia de Nirton Venancio tem o estilo do grande poeta pernambucano do lirismo libertador.
- Marcio Catunda, poeta (Rio de Janeiro)
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Trem da memória, Editora Radiadora, 2022
Prefácio: Valdi Ferreira Lima
Posfácio: Mailson Furtado
O livro concorre ao Oceanos – Prêmio de Literatura em Língua Portuguesa 2023 e ao IX Prémio Nacional de Poesia António Ramos Rosa, Faro, Portugal.
À venda com o autor e pelo site.


domingo, 2 de abril de 2023

afluente


 Quando o DNA é também o afeto como afluente.


flores para o comandante


David Bowie e Ryuichi Sakamoto. Ambos músicos e atores.
Em Merry Christmas, Mr Lawrence, de Nagisa Oshima, 1983, eles se encontram em um campo de concentração na ilha de Java, durante a Segunda Guerra.
O cameleônico cantor inglês, já experiente nos palcos e nas telas desde 1967 quando estudava teatro e mímica.
O inventivo compositor japonês, um dos pioneiros da música eletrônica quando integrou nos anos 70 a Yellow Magic Orchestra.
A desobediência do prisioneiro major Jack Celliers, vivido por Bowie, às rígidas regras do capitão Yonoi (Sakamoto) é guiada por flores, o que enfurece cada vez mais o comandante, culminando com a impactante cena do beijo na face, como uma gravura do choque e delicadeza da interseção entre culturas.
A magnífica atuação dos dois, mais do que uma química, é uma alquimia minimalista que desenvolve o vínculo entre abominação e sedução. Sakamoto, além de estrear como ator a convite do amigo cineasta, criou a trilha sonora com sintetizadores distorcidos, teclados pulsantes que desenham o íntimo daquela relação de atração reprimida.
Desde 2014 que Ryuichi Sakamoto enfrentava problemas de saúde. Faleceu terça-feira, 28, aos 71 anos, abatido por câncer de cólon que se espalhou por outros órgãos. E como refletindo as tradições xintoístas, a notícia foi dada hoje. Creio também que se seguiu a lenda Tomobiki, que envolve seis dias do ciclo lunar para o velório.
Premiado com o BAFTA, da Academia Britânica de Cinema, Sakamoto abriu caminho para outras belíssimas trilhas: ganhou o Oscar, Globo de Ouro e Grammy por O último Imperador, de Bernardo Bertolucci, O pequeno Buda, também do diretor italiano, De salto alto, de Pedro Almodóvar, Olhos de serpente e Femme Fatale, ambos de Brian De Palma, Tabu, de Oshima, o curta The staggering girl, Luca Guadagnino, Love is the devil: Study for a portrait of Francis Bacon, de John Maybury, e a série para televisão dirigida por Oliver Stone, Wild Palms.
Fotos: Toichiro Narushima (cena do filme) e James Hadfield, 2016.


 

o neorrealismo de minha memória


“O último dia de sol", de Nirton Venancio, é uma belíssima investida no cinema dos sentimentos e da memória. Rosselini redivivo, numa lição despojada de recursos, mas requintadíssima em sinceridade. Venancio, que havia realizado um poético e emocionante curta-metragem em 1988, "Um cotidiano perdido no tempo", prossegue revisitando o seu próprio passado com a segurança dos grandes veteranos do cinema da Península.
"Só é moderno aquele que soube ser antigo", disse Murilo Mendes. O olhar de Venancio e a luz de Miguel Freire jamais interferem de maneira grosseira na observação adulta dos sentidos aviltados do menino personagem; a opção pelo preto-e-branco se impõe na tentativa de detectar fragmentos dolorosos da memória de um país à deriva. "O último dia do sol" parece um episódio apócrifo de "Roma, cidade aberta" ou "Alemanha, ano zero".
Quem se amarra em firula, vai criticar o final em aberto, o tempo excedente de algum plano e a economia dos diálogos. Os amantes do fetiche vão detestar a decupagem clássica. Mas somente aqueles que odeiam o cinema como meio de aperfeiçoamento humano serão incapazes de enxergar que estão diante de um filme grandioso em sua generosidade. A evolução de Nirton Venancio o coloca além do cinema narrativo e mais próximo da poesia em estado seminal.
Eis, finalmente, um herdeiro insuspeito da dramaturgia prosaica, embora sempre universal, e imensa em afetividade, de Roberto Santos.
- Carlos Reichenbach (1945-2012), cineasta, em sua página na Internet, Cinema - Cartas do Reichenbomber, 23 de junho de 2000, sobre meu filme curta-metragem.
Na madrugada de 1º de abril de 1964, dia seguinte ao golpe militar no Brasil, um ativista político foge com a esposa e o filho pequeno. A ação, com roteiro baseado em fatos da minha memória, passa-se em uma pequena cidade do interior cearense.
Vivemos duas décadas de arbitrariedades, de prisões, de torturas, de mortes, de "suicídios", de corpos em valas comuns, sumidos, jogados ao mar. Há quase 60 anos que pais não têm seus filhos de volta, que filhos não conhecem seus pais, que brasileiros perderam o passado em cárceres e ainda ecoam em seus ouvidos a ira de seus carrascos. A tortura como instrumento do Estado, e não da lei, foi uma marca registrada do governo militar.
Filmado em película PB 35mm, com 18 minutos de duração, recebeu os prêmios de melhor fotografia (Miguel Freire) no 4º Festival de Cinema e Vídeo de Curitiba, melhor direção de arte (Jefferson De Albuquerque Junior) no 10º Cine Ceará, melhor filme nacional conferido pela Organização Católica Internacional de Cinema, no 23° Guarnicê de Cinema e Vídeo do Maranhão. Selecionado para Festival de Cine y Video de Derechos Humanos (Argentina), Festival Internacional de Cinema de Mar del Plata (Chile) e Festival de Cine de La Habana (Cuba). E tantos festivais, mostras e debates sobre a ditadura militar. A jornalista, ensaísta, pesquisadora e professora Ivana Bentes, no programa Curta Brasil da TVE Brasil, lembrou que é o primeiro filme que tem enredo no dia do golpe.
Hoje, 59 anos de nada a comemorar. Só nosso coração civil a bradar "nunca mais outra vez!".
Disponível no meu canal no Vímeo.
(Cópia provisória, extraída de DVD, enquanto uma digitalizada a partir dos negativos é providenciada).
Na foto de Deise Jefinny, ao meu lado na câmera, o diretor de fotografia Miguel Freire e o assistente Pereira Sebastian Matias, à frente, o ator Joca Andrade.