segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

alguns apontamentos sobre Camus


Hoje, quando completam 61 anos de morte do escritor franco-argelino Albert Camus, autor de clássicos da literatura, como A peste, O estrangeiro, O mito de Sísifo, vasculho em minhas referências, leituras e lembranças, um tema para dissertar, e colocar o texto no livro que preparo, Crônicas do Olhar, a ser lançado pela
Editora Radiadora.

Poderia escrever sobre o acidente de carro que tirou-lhe a vida, aos 46 anos, no começo daquela tarde. Camus iria de trem de Villeblevin à Paris, comprou as passagens, em companhia do poeta René Char, mas aceitou o convite do seu editor Michel Gallimard e entrou no sedã Facel Vega Excellence. Completavam a lotação a esposa e a filhinha de Michel e o cachorro. Já perto de cidade Sens, o carro repentinamente rodopia, descontrola-se em direção a uma árvore, bate em outra e se arrebenta. O escritor morre na hora, o editor dias depois, a mulher e a menina se salvam e o animal sai em disparada. Nunca o encontraram. Ao lado do corpo de Camus, a maleta com os originais manuscritos do romance autobiográfico que estava escrevendo O primeiro homem, que numa irônica anotação visionária, registrou nas primeiras páginas que aquele livro não deveria ficar inacabado. Foi publicado por sua filha, Catherine Camus, em 1994.
Poderia avançar um pouco mais sobre a especulação de que o acidente foi plano do ministro das Relações Exteriores da União Soviética, Dmitri Shepilov. Albert Camus batia frontalmente em artigos, acusando-o pelo massacre durante a repressão à Revolução Húngara de 1956. O escritor e tradutor tcheco Jan Zábrana trata do assunto com muita firmeza em seus diários, postumamente publicados no livro Toda a vida (Celý život), em 1992.
Poderia comentar sobre o mau humor do escritor quando esteve no Brasil em agosto de 1949, muito claramente colocado nas páginas do seu Diário de viagem, publicado em 1978, pela Editora Record. Camus manteve longas conversas com Aníbal Machado, Manuel Bandeira, Murilo Mendes, Augusto Frederico Schmidt, Oswald de Andrade, Mário Pedrosa, mas não escondia sua impaciência com esse "país em que as estações se confundem umas com as outras; onde os sangues misturam-se a tal ponto que a alma perdeu seus limites". Otto Lara Resende em seu livro de crônicas O príncipe e o sabiá, organizado por Ana Miranda, lançado em 1994, diz que o escritor estava sempre com “horror aos repórteres que lhe perguntavam trivialidades sobre o existencialismo” e não suportava as “damas sobrecarregadas de joias e de frivolidade que foram ouvi-lo no auditório do Ministério da Educação.” Com bronquite e a tuberculose se agravando, mais mau humorado ele ficava. “Na viagem de navio, pensou em suicidar-se. Depressão brava. Tudo no Brasil lhe parecia lamentável, a começar pelo Cristo no Corcovado”, relata o cronista na página 263.
Poderia falar também sobre sua paixão por futebol. Albert Camus foi goleiro durante dois anos do Racing de Argel quando era universitário. As crônicas desportivas da época faziam referência a sua bravura e ao seu espírito de liderança em campo. O escritor dizia que preferia assistir qualquer partida de futebol a ir ao teatro, tanto que numa palestra quando esteve no Brasil, talvez para aliviar seu agastamento nos trópicos, pediu que o levassem para ver um jogo. Camus só não seguiu a carreira esportiva por conta da tuberculose.
Poderia comentar sobre a excelente montagem teatral no Brasil A peste, no final de 2018, com direção de Vera Holtz e Guilherme Leme. Estruturado em um monólogo, com atuação perfeita de Pedro Osório, a peça desenvolve contornos contemporâneos para apontar e refletir o desmoronamento moral da sociedade e os avanços dos governos de ultradireita, pontuações que estão no original de Camus, na analogia que faz à ocupação nazista na Europa.
E aqui, com a lembrança dessa adaptação, feita dois anos antes do 2020 em que continuamos vivendo em perigo, finalizo meus apontamentos sobre o tanto que poderia escrever sobre Albert Camus. Quando falamos sobre o livro A peste, é inevitável pararmos para nos contextualizarmos. O distópico romance espelha a reavaliação de pequenos gestos que nos mantém juntos no cotidiano, a urgente solidariedade que precisamos ter como resistência diante os flagelos e o autoritarismo. Consideração oportuna neste momento no mundo inteiro, e especialmente no Brasil, quando temos a infelicidade de um despresidente-alma-sebosa desdenhando a gravidade de uma pandemia, encarnando a brutalidade da peste ao tomar atitudes genocidas contra a população.

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