sábado, 30 de janeiro de 2021

o termo saudade


Hoje é celebrado o Dia da Saudade, essa bela palavra substantivA feminina, essa expressão tão expressiva na língua da última flor do Lácio, essa raiz em nosso coração do latim “solitatem” que desfolha no significado solidão, esse sentimento de nostalgia, essa ‘sodade’ a caminho de São Tomé na voz de Cesária Évora, essa delimitação do vazio que Olavo Bilac dizia que “é a presença dos ausentes”, e que o meu amigo

Paulo Viana

sampleou demarcando no peito que é “o lugar onde os ausentes se encontram”...

E assim,
"saudade" em Camões
é
“te extraño” em Cervantes,
“mi mancate” em Alighieri‎,
“I miss you” em Shakespeare,
“tu me manques” em Baudelaire,
“sehnsucht” em Goethe,
“tocka” em Dostoiévski,
“koishii” em Mishima,
“wo shiang ni” em Yu Xiang,
“brakujący” em Szymborska...
Em cearês saudade é Belchior: três anos e nove meses hoje que na parede da memória é o quadro que dói mais...

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

o coração de Olga Benário


“Eu gostaria que soubessem que cumpri duas tarefas: uma do Partido e outra do meu coração”.

Trecho final do discurso da alemã, de origem judaica, Olga Gutmann Benário, no encontro da Juventude Comunista Internacional, em Moscou, 1928, sobre sua ação ao comandar o resgate da prisão de seu namorado, Otto Braum, militante do PC. O auditório aplaudiu em pé aquela jovem corajosa de 20 anos.
Olga tem também sua vida marcante no Brasil pela atuação ao lado de Luís Carlos Prestes, líder do movimento que entraria para a história como Intentona Comunista, com quem casou ao vir para cá, em 1934, com a missão de dar segurança pessoal ao Cavaleiro da Esperança na guerrilha. Mais uma vez cumprindo as tarefas do Partido e do coração.
Após a insurreição, duramente reprimida pelo governo de Getúlio Vargas, Olga e Prestes passaram a viver na clandestinidade, e acabaram detidos em 1936. Na prisão, Olga descobriu que estava grávida. No mesmo ano foi deportada para a Alemanha nazista. Recebida pela Gestapo, foi levada para a prisão feminina do Campo de Concentração de Barnimstrasse, onde teve sua filha Anita Leocádia Prestes (hoje historiadora aposentada, 84 anos), que ficou com a mãe na cela até o fim do período de amamentação, e depois entregue à avó, dona Leo Benário.
Olga foi executada em 23 de abril de 1942, aos 34 anos de idade, na câmara de gás com mais 199 prisioneiras, no campo de extermínio de Bernburg. "Lutei pelo justo, pelo bom e pelo melhor do mundo. Até o último momento, manter-me-ei firme e com a vontade de viver. Beijo-os pela última vez", escreveu em sua carta de despedida, citada na biografia Olga, de Fernando Morais, 1985. Sarah Helm, escritora e jornalista inglesa, em seu volumoso livro Ravensbrück — A História do Campo de Concentração Nazistas Para Mulheres, 2015, na página 859 questiona dizendo que “nos arquivos não há resquícios dessa carta e sua autenticidade é duvidosa”.
Em 2008, por ocasião do centenário de seu nascimento, a Alemanha a homenageou, inaugurando uma ‘pedra de tropeço’ em frente ao último endereço em que ela viveu em Berlim, no bairro de Neukölln.
‘Pedras de tropeço’ são pequenas placas de latão fixadas nas calçadas dos locais onde moraram vítimas das atrocidades nazistas. Nelas estão escritos o nome, data de nascimento e de deportação e uma referência ao que aconteceu. Em toda Europa são encontradas mais de 13 mil placas semelhantes.
Hoje, 27 de janeiro, é celebrado o Dia Mundial da Lembrança do Holocausto, instituído pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em homenagem aos seis milhões de judeus e às outras vítimas da crueldade nazista. A data é uma alusão ao dia em que as tropas soviéticas libertaram o campo de concentração de Auschwitz-Birkenau, na Polônia.
No contexto mundial alarmante da extrema-direita, do antissemitismo, da proliferação assustadora de grupos nazifascistas, das tentativas de governos conservadores de reescrever a história e distorcer os fatos, da intolerância e ódio espalhados pela Internet, das teorias absurdas de terraplanistas, negacionistas, criacionistas, delirantes neopentecostais, a data de hoje é para lembrar que todos os dias são para lembrar.
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Texto para o meu livro em preparação ©Crônicas do Olhar, com adaptações para esta postagem, a ser lançado pela
Editora Radiadora
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Na foto, Olga Benário aos 20 anos.
Acervo Anita Leocádia Prestes/RJ; Arqshoah/Leer-USP.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Brumadinho, dois anos hoje


Não foi desastre ambiental. Foi crime ambiental.

fonte das águas

foto de Ana Lontra Jobim, 1987

"É o fundo do poço, é o fim do caminho / no rosto um desgosto, é um pouco sozinho..."

- Tom Jobim, em Águas de março, gravada inicialmente em 1972, no compacto simples Disco de Bolso, um projeto d’O Pasquim (de um lado, O Tom de Jobim, no outro, O Tal de João Bosco, com Agnus Dei), e no disco Matita Perê, que o autor lançou um ano depois.
Em 1974 a canção ficou mais conhecida com a gravação no LP Elis & Tom.
No livro Tons sobre Tom, de Marcia Cezimbra, Tessy Callado e Tarik de Souza, resultado de 12 horas de entrevista com o maestro, publicado em 1995, revela como foi composta essa obra-prima, inspirada depois de um dia cansativo de Tom preparando o repertório de Matita Perê.
Isolado no sítio do Poço Fundo, em São José do Vale do Rio Preto, região serrana do Rio de Janeiro, o compositor comentou com Thereza, sua então esposa, ao voltar de uma caminhada pelo mato: “é pau, é pedra, é o fim do caminho"... e a letra começou a ser rascunhada num papel pardo de embrulho que estava à mão do autor.
Falecido em 1994 aos 67 anos, hoje celebra-se o aniversário de 94 anos de nascimento.
foto de Ana Lontra Jobim, 1987

domingo, 24 de janeiro de 2021

as pedras pisadas do cais


Zózimo Bulbul foi o primeiro ator negro a participar de novela, fazendo par romântico com Leila Diniz em Vidas em conflito, 1969, na TV Excelsior. Sua atuação marcante ficou também como um símbolo da luta contra o racismo descarado e disfarçado.

Zózimo lutou a vida inteira pelos direitos nas questões da raça negra. Estreou como diretor no curta Alma do Olho, considerado subversivo pela censura na ditadura do governo Médici, em 1974.
Participou de mais de 30 filmes, entre eles Ganga Zumba, de Cacá Diegues, Terra em transe, de Glauber Rocha, O veneno da madrugada, de Ruy Guerra. Excelente ator, seguro nas suas interpretações, Zózimo chamava a atenção por sua elegância, de uma beleza ébano cativante.
Em meados de 2012 o cineasta Spike Lee o entrevistou para o documentário Go Brazil, go!. “Eu tinha morado em Nova Iorque quando a ditadura apertou por aqui. Fiz muitos contatos que me ajudaram na organização dos festivais de cinema. Spike esteve no Brasil e o único cineasta brasileiro que quis entrevistar foi a mim. Porque ele sabia do meu comprometimento com os irmãos africanos e em fazer com que o cinema seja ferramenta de luta”, disse em novembro daquele ano durante o 6º Encontro do Cinema Negro no Brasil, África e Caribe, evento criado por ele, ocorrido no Rio de Janeiro, quando foi homenageado pelos 50 anos de carreira.
No filme percebe-se que o artista falava com dificuldade. Zózimo Bulbul lutava contra um câncer no colo do intestino. Não chegou a ver o documentário. Um mês depois da homenagem, na manhã do dia 24 de janeiro de 2013, uma quinta-feira, sua esposa, a produtora e figurinista Biza Vianna, estava ao seu lado quando sofreu um infarto em seu apartamento, na praia do Flamengo, falecendo aos 75 anos. No final da tarde o salão da Câmara dos Vereadores estava lotado de artistas, parentes e amigos para o velório. “É um sentimento horrível, mas o que existe agora é um grande alívio, pois ele estava sofrendo muito. Ele lutou o tempo todo. É um guerreiro, um rei africano”, despediu-se a viúva.
Pedra do Sal e Cais do Valongo, são locais históricos importantes na história do Rio do Janeiro. O primeiro é um monumento religioso localizado no bairro da Saúde, onde se encontra a Comunidade Remanescentes de Quilombos. O segundo é um antigo cais onde as pedras pisadas marcam o único vestígio material da chegada dos africanos escravizados, pedaço que o compositor Heitor dos Prazeres chamava de “Pequena África”. O cronista João do Rio em seu livro As religiões do Rio, de 1904, descreve bem a relevância do que poderíamos chamar de “África carioca”. O escritor resgata em seu texto o lado negro e pobre com distorções de palavras ditas por um africano chamado Antônio, um nigeriano que lhe serviu de intérprete para a pesquisa.
Foi exatamente nesses dois espaços, onde pulsam as partículas arqueológicas da negritude subjugada e as divindades dos orixás que baixaram na alma dos escravos, que Zózimo Bulbul, extraindo como podia fôlego de sua saúde frágil, concebeu, juntamente com Biza Vianna, para a programação final do Encontro do Cinema Negro, a exposição móvel Herança Africana – Intervenções Urbanas a Caminho do Porto.
Artes plásticas, dança, roda de conversa, degustação gastronômica do continente negro, formam o belo cotejo que reverencia a cultura africana e sua influência na formação da identidade cultural brasileira.
Ao meio-dia de 25 de janeiro, Zózimo Bulbul foi enterrado no cemitério do Caju, na mesma zona portuária, no mesmo chão onde desembarcaram seus ancestrais, “entre cantos e chibatas”, como escreveu Aldir Blanc sobre outro bravo feiticeiro reaparecido há muito tempo nas águas da Guanabara.
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Texto para o meu livro em preparação ©Crônicas do Olhar, a ser lançado pela
Editora Radiadora
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foto ilustrativa para esta postagem: Acervo da família Zózimo Bulbul.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

os olhos do samba-canção


Em 1960 Manuel Bandeira viu a cantora Maysa em um programa de televisão, que principiou a gostar pelo nome, “Maysa! Parece um amanhecer”, escreveu em uma crônica na revista A Cigarra, em 1961. Fascinado com a voz que, segundo o poeta, mais dizia do que cantava, não conseguiu dormir naquela noite depois que desligou o televisor, “quem disse que eu podia esquecer os olhos e a boca de Maysa?”. 

Bandeira já tinha ido para Pasárgada em 1930, onde a existência era uma aventura, andou de bicicleta, teve a mulher que quis na cama que escolheu, e tomou banhos de mar. Tudo sob os auspícios do rei, de quem era amigo. Mas nada superava a beleza de Maysa, a boca e aqueles olhos que o perseguiam no seu pequeno quarto, “era tão pungente a expressão deles, expressão de amargura, a mais intensa que eu já tinha visto na vida ou na arte!”.
Como Maysa “continuava” com ele fora do programa, Manuel Bandeira decidiu “aplicar à obsessão o golpe da catarse”, fazer alguma coisa para poder ir dormir. “O artista leva esta vantagem sobre o não-artista: pode livrar-se das obsessões, reduzindo-as a poema, estátua, pintura ou desenho. Vou fazer um poema sobre Maysa”, esclareceu na crônica o que resoluto falou para si, entre um chá, o tinteiro e o papel em branco à espera dos versos de um poema que “pretendia ser absolutamente sincero, nada de galanteio, de orquídeas brancas, de marrons glacês.”
Naquele começo de década Bandeira tinha uma coluna no Jornal do Brasil, e o assunto que dominava as redações era a inauguração da nova capital federal. “Eu tinha que bater a minha crônica para o jornal, não achava assunto que me atraísse, só se falava, então, em Brasília, de súbito me deu o estalo”, e começou a teclar na máquina Hermes Baby: “Neste momento a mão é para Brasília / (Todos os caminhos levam a Brasília) / Mas eu gosto de tumultuar o trânsito / Vou louvacionar Maysa!”
Manuel Bandeira deixou de lado o sonho erguido de Dom Bosco onde “No princípio era o ermo”, como diz Vinicius de Moraes em Brasília, Sinfonia da Alvorada, e joga-se nos “dois oceanos não-pacíficos” dos olhos de Maysa. Eliminou os quatro versos-desculpa acima e o poema veio de um fôlego só, para o seu próprio espanto que nunca considerou definitivo o que escreve sem reler e refazer “a versalhada dez, vinte, trinta vezes.”.
Publicado originalmente na sua coluna, em 1960, o poema que tem como título o nome da musa, está no capítulo Louvações do livro Estrela da tarde, na reedição com novos poemas, da José Olympio Editora, de 1963 (a primeira é de 1960, da editora baiana Dinamene).
No começo dos anos 70, Maysa foi morar em Maricá, município na região metropolitana do Rio de Janeiro, a uns 60 quilômetros da capital. O clima rural de chácaras, fazendas, a brisa da praia de Ponte Negra, os resquícios históricos marcados nos trilhos da estrada de ferro, um túnel por onde o trem aparecia e sumia, tudo emoldurava o autoexílio da cantora em sua casa, livrando-se das encucações em que mergulhou nas noites de um samba-canção.
No final de tarde do dia 22 de janeiro 1977, ao voltar do casamento do filho, Jayme Monjardim, dirigindo a toda velocidade sobre a ponte Rio-Niterói, Maysa faleceu, aos 40 anos, ao bater o carro em uma mureta, quando tentava desviar de outro veículo.
Bandeira concluiu na referida crônica, Um poema e sua história que “Não sei se Maysa gostou ou não da louvação. Vinicius me disse que ela gostou. Maysa não me deu bola.”
Nos versos finais do poema, o poeta arremata seu fascínio e mote sentimental dizendo que “Essa é a Maísa da televisão / A Maísa que canta / A outra eu não conheço / Não conheço de todo. / Mas mando um beijo para ela.”
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Texto para o meu livro em preparação ©Crônicas do Olhar, a ser lançado pela
Editora Radiadora
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quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

de volta ao futuro


 foto: Portfolio Mondadori, 1948

O escritor inglês George Orwell, nascido na Índia, faleceu com apenas 46 anos, de tuberculose, em 21 de janeiro de 1950. Foi poupado de assistir pelo telão da telinha a vulgarização que fizeram com o personagem mais significativo da sua literatura, Big Brother, o Grande Irmão, um ser fictício do clássico e distópico romance 1984, que retrata o cotidiano de um regime político totalitário e repressivo.
Publicado em 1949, a certa altura lê-se que "o Grande Irmão está te observando", o que conota a vigilância invasiva frequente de uma sociedade oligárquica coletivista.
Orwell mais do que um futurista, foi um vaticinador. O mundo em que vivemos é exatamente o que está no romance, ou pior, por ser dissimulado. A antítese da utopia, onde a tecnologia é utilizada como ferramenta de controle, usada pelo Estado, instituições e corporações.
Um programa de televisão de extrema imbecilidade como BBB, é a metalinguagem caricatural desse poder midiático, que transforma espectadores em néscios operantes para o nada, dopados e incapazes da reflexão e discernimento para tudo.
Orwell não imaginaria que sua teoria de um futuro avassalador chegasse a tanto.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

todas as metades


Meu primeiro poema musicado foi Ventania, do livro Roteiro dos pássaros, Editora Lourenço Filho, 1981, por Ricardo Augusto.

Não sou um letrista para canções. Sou apenas um poeta aprendiz e escrevo poemas para “dar coerência aos sonhos”, como disse Pirandello. A poesia tem sua musicalidade. Mas quando um poema, já com seu corpo definido, ganha uma melodia, ele se engrandece, ganha uma alma, uma outra dimensão. O poema se duplica. E se triplica na audição do outro.
A melodia está lá, na extensão de cada verso, no fôlego de cada palavra, na rima de uma emoção. O poeta não se dá conta. A escrita é uma canção embutida. Vem o músico e encontra as notas, porque só a ele cabe o sol que ilumina dó-ré-mi-fá-lá-si.
Depois de Ricardo Augusto, outros compositores cearenses desenharam música em alguns poemas, Bernardo Neto,
Calé Alencar
,
Parahyba de Medeiros
,
Alan Morais
,
Zé Rodrigues
,
Charles Wellington
,
Gildomar Marinho
,
Evaristo Filho Freitas
,
Eugênio Leandro
, o carioca Berto Mendes e o goiano-brasiliense
Rubi
. É sempre uma saudável perplexidade o encontro com a outra margem do rio.
Recentemente Alan Morais e Zé Rodrigues postaram no Spotify os EPs com as parcerias, respectivamente, Lunar” e Metade, publicados no meu livro Poesia provisória,
Editora Radiadora
, 2019. No mesmo serviço de streaming está Ventania, gravada por
Mona Gadelha
no disco Cidade blues rock nas ruas, Brazilbizz, 2013, e também no DVD do show apresentado na Caixa Cultural de Fortaleza, 2014.
Abaixo, os links de cada uma. Grato a todos os parceiros pelas metades que somamos.

os sonhos de Fellini


Do começo dos anos 60 até 1990, o cineasta Federico Fellini, aconselhado pelo seu psicanalista junguiano, manteve o hábito de, ao acordar, escrever o que tinha sonhado. E além de escrever, desenhava. Uma espécie de diário onírico ilustrado.

Muitos desses relatos e desenhos foram fontes para a composição de cenas e personagens de seus filmes.
Dois volumosos cadernos e dezenas de folhas avulsas com essas anotações, que o cineasta definia como “trabalhos noturnos”, ficaram guardados pelos seus herdeiros em cofre de um banco, de 1993, ano de sua morte, até 2006, quando a Fundação Federico Fellini adquiriu os direitos autorais e publicou "Il libro dei sogni" (O livro dos sonhos) organizado pelo roteirista e dramaturgo Tullio Kezich e o professor de história e cinema Vittorio Boarini.
A curiosa publicação revela tanto sonhos quanto pesadelos, e mostra o inconsciente inquieto e fascinante de um criador genial, com seus desejos, amores, medos, ansiedade, remorsos, erotismo, praticamente compondo uma análise dos mistérios e enigmas do ser humano.
Fellini dizia que desde pequeno tinha duas vidas: uma com os olhos abertos e outra com os olhos fechados.
Em março de 1993 o cineasta recebeu o Oscar de Honra pelo conjunto de sua obra. Em 30 de outubro do mesmo ano comemorou cinco décadas com a atriz Giuletta Masina, sua esposa. No dia seguinte aos festejos, Fellini dormiu para sempre. Cinco meses depois Giuletta o segue, torna-se "vídeo de uma outra luz", como diz a canção de Caetano. Tinha a mesma idade do marido, 73 anos, e a mesma saudade que ele levou.
Hoje comemora-se um século e um ano do nascimento do cineasta que fazia dos sonhos, filmes. E o cinema virou sonhos.
Na foto abaixo, um flagrante de sua vida de olhos fechados, enquanto descansava nos bastidores das filmagens de "A doce vida", 1960.

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

muito além


“Esta manhã, antes do alvorecer, subi numa colina para admirar o céu povoado, e disse à minha alma: 'Quando abarcarmos esses mundos e o conhecimento e o prazer que encerram, estaremos finalmente fartos e satisfeitos?'
E minha alma disse: 'Não, uma vez alcançados esses mundos prosseguiremos no caminho.’”
- Walt Whitman, em As folhas da relva, publicado em 1855. A ‘magnum opus’ do maior poeta norte-americano teve várias edições. Inicialmente, o autor bancou sozinho a tiragem, investiu do seu salário de empregado de um jornal. Whitman não considerava seu livro concluído.
A vida não parava de lhe dar motivos para desfolhar a relva e escrever. Escrever e se fazer presente em trabalhos voluntários nas ruas, nos hospitais, nos asilos, nas embarcações como marinheiro. Foram praticamente quatro décadas preparando o livro e convivendo com mendigos, prostitutas, operários, pessoas que compartilhavam as dores e esperança. O poeta esteve na trincheira da Guerra da Secessão, e na batalha entre o norte industrializado e abolicionista e o sul aristocrata, latifundiário e escravagista.
Whitman escreveu sobre a liberdade. E não por acaso é o criador do verso livre. Sua alma libertária se cristalizava na escrita desacorrentada da métrica acadêmica. E pela ousadia, lucidez em ver, sentir e falar sobre a odisseia do homem simples, Whitman chegou a ter sua obra acusada de esquisita, bizarra e até obscena, a ponto de um crítico descerebrado sugerir açoite em praça pública como punição.
Ao final da nona e última edição do livro, em 1892, já no leito de morte, Whitman chegou a 382 poemas.
As folhas da relva é uma espécie de bíblia da poesia norte-americana. Um livro de fôlego, épico, sobre o ser humano em busca de respostas e caminhos. Uma vez concluído e alcançado o objetivo do poeta, prosseguimos no caminho dele.
O autor fotografado por George Collins Cox, em 1887. Cox, um dos retratistas pioneiros, sempre esteve por perto de Whitman, e notabilizou-se pelas belas imagens que expressavam a consistência da alma do poeta. Seu acervo foi restaurado em 1979, e digitalizado na Library of Congress's Prints and Photographs. A poesia da imagem também indo mais além.

saudades do Brasil


Em 5 de janeiro de 1982 Elis Regina foi a convidada do programa Jogo da Verdade, apresentado pelo jornalista Salomão Ésper, na TV Cultura, São Paulo, com as participações do produtor musical Zuza Homem de Mello e do jornalista Maurício Kubrusly como entrevistadores.

Foi um show de raciocínio lúcido, pensamento astuto, reflexões brilhantes e verdadeiras, pertinentes àquele momento da música brasileira e à situação política e social do país.
Em um trecho ela fala que "aquele do 666 do apocalipse" estava solto entre nós. Era governo do “cavaleiro” Figueiredo, o último dos generais da ditadura militar.
14 dias depois dessa entrevista, no final da manhã do dia 19, o namorado da cantora, o advogado Samuel Mac Dowell, sai às pressas de seu escritório na avenida Ipiranga, São Paulo, para o apartamento da cantora, no bairro Jardim Paulista. Preocupou-se com um telefonema dela, "mais balbuciava que falava", disse depois numa entrevista.
Sem ser atendido com a campainha, Mac Dowell arrombou a porta e encontrou Elis inerte no quarto. Acionou o médico e com a demora da ambulância, colocou a cantora em um táxi em direção ao Hospital das Clínicas, onde chegou sem vida, vitimada por um ataque cardíaco.
Elis morreu com apenas 36 anos de tanto Brasil.

domingo, 17 de janeiro de 2021

o primeiro domingo

foto Amanda Perobelli

"Que a população acredite na vacina. Estou falando agora como mulher, brasileira, mulher negra, que acreditem na vacina."

- Mônica Calazans, 54 anos, enfermeira que trabalha na UTI do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, a primeira pessoa a ser vacinada no Brasil, hoje, domingo, com uma dose de CoronaVac, no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

pássaro formoso


"Primeiro passeio (a pé) depois de meses e meses de hospital.
Mas atenção - tomei todos os cuidados necessários, tirei a máscara apenas 3 segundos enquanto minha filha
Joana Limaverde
tirava a foto na praça que não tem aglomeração."
-
Ednardo
, Fortaleza, 17/1/2021

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

todo o ar que precisamos


foto Rodrigo Sombra, 2015

Em 1964, o poeta Thiago de Mello era nosso adido cultural no Chile, então governado pelo conservador independente (sem partido) engenheiro Jorge Alessandri. Aqui, os latifundiários, a elite empresarial, as forças armadas e os interesses norte-americanos preparavam o golpe.

No dia 30 de março, Thiago de Mello completou 38 anos de idade. Festejou na Casa La Chascona, do poeta Pablo Neruda, onde morava, ao lado de brasileiros e amigos chilenos, entre estes o médico Salvador Allende.
Neruda e Allende estavam ao lado do poeta quando, no dia 1º de abril, ouviu no rádio o pronunciamento do deposto Jango sobre o golpe militar do dia anterior.
“O que sinto é que esse golpe militar no Brasil desencadeará uma onda de revoltas nos países da América. E até o Chile pode ser alcançado”, comentou - e vaticinou - Salvador Allende, como lembrou o poeta em entrevista à revista do Movimento Humanos Direitos, em 2009.
Como esperado, Thiago de Mello renunciou ao cargo na Embaixada. Na condição de exilado, cheio de indignação e saudade do seu país então marcado pelos Atos Institucionais que cerceavam a liberdade e suprimiam direitos, o poeta escreve um de seus mais belos poemas, Os Estatutos do Homem, o seu Ato Institucional Permanente, descrito em 14 artigos utópicos, que simbolizam a crença em leis que iluminam o coração dos homens que resistem.
O poema é o segundo, página 19, no livro publicado depois do golpe, o sintomático Faz escuro, mas eu canto: porque a manhã vai chegar, 1965, Editora Civilização Brasileira. Em 1980 a Martins Fontes lançou somente o poema, em formato livreto 21x21, e ilustrações do cearense Aldemir Martins.
Traduzido por Pablo Neruda, Os Estatutos do Homem teve várias edições no Chile, Uruguai, Argentina, Peru, Cuba, além de Portugal e versões para Estados Unidos e Alemanha, onde foi lançada em 1977 a Cantata dos Estatutos do Homem, composição para coral e orquestra, de autoria de Peter Janssens (1934-1998), um alemão apaixonado pela cultura da América Latina. Viveu na Argentina e musicou poemas do nicaraguense Ernesto Cardenal.
Desde 1978, quando retornou ao Brasil, Thiago de Mello, hoje aos 94 anos, mora à beira do rio Andirá, em seu Amazonas natal.
E nestes tempos sob nuvens escuras em que vivemos, de vermes no poder e da criminosa falta de ar nos pulmões dos manauaras atingidos pela Covid-19, canto com o meu desejo mais real e solidário, o utópico Artigo 4 dos Estatutos desse Buda Nagô das águas de Andirá:
Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no AR,
como o AR confia no campo azul do céu.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

SOS Manaus!


 

o espelho que miramos


foto Isabella Gresser

Na consideração do filósofo, ensaísta e teórico musical sul-coreano Byung-Chul Han, a sociedade moderna passou do “dever fazer” para o “poder fazer”. “Vive-se com a angústia de não estar fazendo tudo o que poderia ser feito”, e se você não é um vencedor, a culpa é sua. “Hoje a pessoa explora a si mesma achando que está se realizando; é a lógica traiçoeira do neoliberalismo”. E a consequência: “Não há mais contra quem direcionar a revolução, a repressão não vem mais dos outros”. É “a alienação de si mesmo”.
A dependência das redes sociais (cá estamos), e nelas a necessidade das pessoas de obterem uma maior quantidade de “likes” em postagens que expõem em praça pública virtual as vísceras de suas relações pessoais, dos namoros ao filho recém-nascido, os pratos preferidos na mesa posta, os comprovantes de check-in de viagens ao exterior, a selfie em frente ao espelho na academia, o abraço com a banca de aprovação de doutorado, da unha encravada e saída do podólogo ao resultado positivo e recuperação de Convid... É preciso curtidas e mais curtidas para que tudo ao final do dia seja “validado”. E assim existimos sem sabermos a que será que se destina.
Essas pontuações dos costumes do mundo moderno com a internet têm em Byung-Chul Han uma pertinente e necessária reflexão. O seu pensamento dissecador da sociedade do hiperconsumismo, faz, por exemplo, uma comparação inquietante com o romance distópico 1984, de George Orwell, publicado em 1948: naquele universo “a sociedade era consciente de que estava sendo dominada; hoje não temos nem essa consciência de dominação.”
O filósofo de 62 anos, residente na Alemanha, onde é professor na Universidade de Berlin, tem mais de dez livros publicados. Destaco Sociedade do cansaço, 2010, A topologia da violência, 2011, A agonia de Eros, 2012, Psicopolítica: Neoliberalismo e as novas técnicas de poder, 2014, Sociedade da transparência, 2017, onde encontramos temas como ética, filosofia social, política, fenomenologia, teoria cultural, estética, religião... sempre tratando do mundo em que vivemos, curiosamente visionário nestes tempos pandêmicos e de avanço da extrema-direita.
Realista sem ser fatalista - embora pareça -, Byung-Chul Han alerta a cada leitura. Em Sociedade da transparência ele observa e sobreavisa que “as coisas tornam-se transparentes quando abandonam toda a negatividade, quando se alisam e aplanam, quando se inserem sem resistência na corrente lisa do capital, da comunicação e da informação."
Um dos pontos interessantes no desenvolvimento do pensamento do filósofo, é o seu diálogo cogitativo, de correlação e equivalência de símbolos com o cinema. Agonia de Eros foi escrito a partir de um ensaio em que examina os personagens depressivos do filme Melancolia, 2011, do dinamarquês Lars Von Trier.
Em 2015 a cineasta e artista plástica alemã Isabella Gresser dirigiu o documentário Sociedade do cansaço (disponível no YouTube, com legendas em inglês) em que acompanha o próprio Byung-Chul Han em suas andanças em Seul e Berlin, trechos de palestras, suas análises sobre filmes, fotografias, artes plásticas, suas origens na Coreia. A proposta narrativa de Gresser, como recurso de metalinguagem, quando o filósofo caminha pelas ruas da capital alemã, é uma referência a Asas do desejo, de Wim Wenders, 1987. Como diz o título original, Der himmel über Berlin (O céu sobre Berlin), o cineasta faz, através dos personagens, dois anjos sobrevoando a cidade, um passeio sobre os pensamentos dos habitantes, analisando a utópica e desencantada ideia da condição humana. No documentário, que tem o subtítulo Byung-Chul Han em Seul/Berlin o caminhante filósofo configura-se, se estende e se espelha na ótica desses anjos pensadores.
O filme de Wenders foi rodado no sintomático tempo de dois anos que antecederam a queda do Muro de Berlin. Byung-Chul Han é como um terceiro anjo refletindo sobre os destroços e o que isso significou, significa e significará.