quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

a saudade chegou


Em Chega de saudade, segundo longa de Laís Bodanzky, 2007, a história se passa em uma noite de baile, num clube de dança na Lapa, São Paulo. Do final da tarde até o começo da madrugada, os frequentadores conversam, bebem, dançam em volta de seus dramas, no ritmo de suas alegrias, no compasso do tempo passado.

Abordando o amor, a solidão e outros precipícios do coração, entre a diversão necessária e o drama que se assume, a trama gira em torno de cinco núcleos de personagens, entre eles os idosos interpretados por Tonia Carrero, a preocupada Alice, e Leonardo Villar, o rabugento Álvaro em conflito com culpas pretéritas.
Uma cena se destaca no filme. Quando Alice se afasta para falar com amigos, o enquadramento fecha em Álvaro. Ele olha em volta, deslocando-se na memória. Lembra de sua falecida esposa. A música diminui. A imagem da mulher, interpretada por Selma Egrei, aparece. Ambos ficam em primeiríssimo plano, na intimidade de outra dimensão, no recorte de um tempo dentro de outro. No curto e preciso diálogo, delineado pelo abstrato da visão e a solidez da contrição, o que se acusa e o que se rebate é realçado pela letra da clássica canção “Lama”, na voz presente de Elza Soares, quando a música volta e o vulto da mulher desaparece.
Cada verso enfatiza o desconsolo (“quem foste tu / quem és tu / não és nada / se na vida fui errada / tu foste errado também”), e a compunção (“se eu errei, se pequei / não importa / se a esta hora estou morta / pra mim morreste também”) dos personagens que se reencontram e se desencontram de novo.
Essa cena não teria o mesmo impacto se não fosse a rápida e marcante presença de Elza Soares e sua visceral interpretação. A entonação de cada verso é um diálogo dentro do filme - na personificação da esposa falecida - e com a própria história da cantora, tanto na postura diante da vida que ela teve no amor, na solidão e em outros precipícios do coração, quanto na importância que tem essa canção em sua carreira, composição de Paulo Marques e Ailce Chaves, de 1952.
Em 1953 a jovem Elza de 16 anos fez seu primeiro teste como cantora no programa de Ary Barroso, Calouros em Desfile, na Rádio Tupi, Rio de Janeiro, impressionando, comovendo e recebendo aplausos de todos. A voz daquela menina, magrinha, simples e humilde, revelava uma força que vinha do fundo de sua alma, de suas origens, de um Brasil brasileiro que ela levaria e defenderia por toda sua vida artística, em seu canto de dores, doçura e esperança. Elza Soares ganhou o primeiro lugar naquela tarde de calouros.
E nesta tarde de quinta-feira, dia 20, Elza Soares faleceu aos 91 anos. Tarde de janeiro de um Brasil ainda marcado por uma pandemia no ar e pandemônio no planalto – males que ela enfrentava defendendo vacina para todos e a união de corações contra o ogro.
Elza Soares partiu no mesmo dia, quarenta anos depois, que Garrincha, seu grande amor. “Eu sonho muito com o Mané”, disse ela em uma entrevista no programa de Pedro Bial, em 2018. Agora, chega de saudade dele, Elza. Fica aqui o Brasil com a sua saudade.

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