sábado, 29 de janeiro de 2022

paixão pela palavra

                                       

foto Jay Garrido

Deram-me água e foto

          para fazer vida. 
Deram-me a palavra
           para construir o sonho.
- "Dádiva de palavra", poema de Calane da Silva, publicado em "Lírica do imponderável e outros poemas do ser e do estar", pela Maputo: Imprensa Universitária, 2004.
Com uma vasta obra entre poesia, contos, romances, ensaios e participações em antologias, Raúl Alves Calane da Silva é uma das maiores expressões da literatura moçambicana. Em uma de suas últimas entrevistas ao portal Villas & Golfe Magazine, disse que desde muito cedo apaixonou-se "definitivamente pela palavra, essa nota musical do criador em nós."
Mesmo tendo publicado somente dois livros de poesia – o outro é “Dos meninos da Malanga”, de 1982 -, sua escrita em prosa é marcadamente poética, comprovando sua destreza ao esmerilar cada palavra e mostrar a alma que ela tem sob diversos aspectos.
Em sua vida acadêmica especializou-se em lexicologia com doutorado em linguística portuguesa. A tese "Do léxico à possibilidade de campos isotópicos literários", apresentada na Faculdade de Letras da Universidade do Porto em 2009, disponível na Internet, é uma precisiodade na abordagem liguistíca e o fazer poético na obra do compatriota José Craveirinha (1922-2003), Prêmio Camões de 1991, considerado o maior poeta de Moçambique.
No começo de janeiro de 2020, nestes tempos açorados de males e esperanças em que ainda vivemos, Calane da Silva foi internado num hospital em Maputo, com fortes sintomas de Covid-19. Dias depois, na tarde do dia 29, faleceu aos 76 anos.
Como tinha escrito em “Lírica imponderável...”, “No gesto / cumpre-se / um tempo / palavra sôfrega / de futuros.”

sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

o menino que nós amamos


Há 78 anos o cantor, compositor, ator e físico Rodger Rogério continua um menino no chão sagrado do seu coração.
Parabéns pelo seu dia todos os dias, caro amigo!

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

impulsos incontidos

 foto Acervo Grupo Bloch

"Se os maus poetas soubessem que quando morrem, morrem para sempre, é possível que fossem mais cautelosos em suas exteriorizações e mais contidos em seus impulsos. Nada mais aterrador do que um mau poeta inspirado."

- Joel Silveira, escritor e jornalista (1918-2007), em Guerilha noturna, lançado pela Editora Record em 1994. O livro é uma preciosidade de aforismos, citações, reflexões sobre política, crítica social e literária, sempre com os petardos que marcaram sua escrita em mais de 20 títulos e centenas de reportagens. Manuel Bandeira dizia que "o texto do Joel é maciamente perfurante, como uma punhalada que só dói quando esfria”.
Imagino Joel diante os impulsos incontidos de poetas inspirados nestes tempos de redes sociais.

sábado, 22 de janeiro de 2022

dentro do samba-canção


No final de tarde de 22 de janeiro 1977, ao voltar do casamento do filho, Jayme Monjardim, a cantora Maysa, dirigindo a toda velocidade sobre a ponte Rio-Niterói, faleceu ao bater o carro em uma mureta quando tentava desviar de outro veículo. Tinha 40 anos.

No começo da década de 70 Maysa foi morar em Maricá, município na região metropolitana do Rio de Janeiro, a uns 60 quilômetros da capital. O clima rural de chácaras, fazendas, a brisa da praia de Ponta Negra, os resquícios históricos marcados nos trilhos da estrada de ferro, um túnel por onde o trem aparecia e sumia, tudo emoldurava o autoexílio da cantora em sua casa, livrando-se das encucações em que mergulhou nas noites em que cantava, pois, como diz Ruy Castro num capítulo de seu livro A noite do meu bem, 2015, "ninguém parecia viver dentro de um samba-canção como Maysa".
Na foto, a cantora em um show na boate Number One, RJ, 1972.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

a saudade chegou


Em Chega de saudade, segundo longa de Laís Bodanzky, 2007, a história se passa em uma noite de baile, num clube de dança na Lapa, São Paulo. Do final da tarde até o começo da madrugada, os frequentadores conversam, bebem, dançam em volta de seus dramas, no ritmo de suas alegrias, no compasso do tempo passado.

Abordando o amor, a solidão e outros precipícios do coração, entre a diversão necessária e o drama que se assume, a trama gira em torno de cinco núcleos de personagens, entre eles os idosos interpretados por Tonia Carrero, a preocupada Alice, e Leonardo Villar, o rabugento Álvaro em conflito com culpas pretéritas.
Uma cena se destaca no filme. Quando Alice se afasta para falar com amigos, o enquadramento fecha em Álvaro. Ele olha em volta, deslocando-se na memória. Lembra de sua falecida esposa. A música diminui. A imagem da mulher, interpretada por Selma Egrei, aparece. Ambos ficam em primeiríssimo plano, na intimidade de outra dimensão, no recorte de um tempo dentro de outro. No curto e preciso diálogo, delineado pelo abstrato da visão e a solidez da contrição, o que se acusa e o que se rebate é realçado pela letra da clássica canção “Lama”, na voz presente de Elza Soares, quando a música volta e o vulto da mulher desaparece.
Cada verso enfatiza o desconsolo (“quem foste tu / quem és tu / não és nada / se na vida fui errada / tu foste errado também”), e a compunção (“se eu errei, se pequei / não importa / se a esta hora estou morta / pra mim morreste também”) dos personagens que se reencontram e se desencontram de novo.
Essa cena não teria o mesmo impacto se não fosse a rápida e marcante presença de Elza Soares e sua visceral interpretação. A entonação de cada verso é um diálogo dentro do filme - na personificação da esposa falecida - e com a própria história da cantora, tanto na postura diante da vida que ela teve no amor, na solidão e em outros precipícios do coração, quanto na importância que tem essa canção em sua carreira, composição de Paulo Marques e Ailce Chaves, de 1952.
Em 1953 a jovem Elza de 16 anos fez seu primeiro teste como cantora no programa de Ary Barroso, Calouros em Desfile, na Rádio Tupi, Rio de Janeiro, impressionando, comovendo e recebendo aplausos de todos. A voz daquela menina, magrinha, simples e humilde, revelava uma força que vinha do fundo de sua alma, de suas origens, de um Brasil brasileiro que ela levaria e defenderia por toda sua vida artística, em seu canto de dores, doçura e esperança. Elza Soares ganhou o primeiro lugar naquela tarde de calouros.
E nesta tarde de quinta-feira, dia 20, Elza Soares faleceu aos 91 anos. Tarde de janeiro de um Brasil ainda marcado por uma pandemia no ar e pandemônio no planalto – males que ela enfrentava defendendo vacina para todos e a união de corações contra o ogro.
Elza Soares partiu no mesmo dia, quarenta anos depois, que Garrincha, seu grande amor. “Eu sonho muito com o Mané”, disse ela em uma entrevista no programa de Pedro Bial, em 2018. Agora, chega de saudade dele, Elza. Fica aqui o Brasil com a sua saudade.

eu me lembro

 

Fantástico, onírico, nostálgico e memorialístico, Federico Fellini concebeu em Amarcord, 1973, um dos mais fortes libelos cinematográficos contra o fascismo. Autobiográfico, o cineasta ambienta seu delírio e expurgação nos anos 30 da Itália devastada pela figura pústula de Mussolini, pela moral repressora e destrutiva.
Na história, o personagem Titta é o alter ego do diretor. Mas todos os personagens que o rodeiam e habitam o passado nessa depuração de revogação nostálgica, são Fellinis. Mesmo não tendo tragédias sérias na família, o cineasta tomou posição e dizia que o fascismo aprisionou os italianos em uma adolescência perpétua de pesadelos, pelos tempos opressivos que viveram. O cinema o acolheu para espantar os fantasmas.
‘Amarcord’ é uma referência à tradução fonética das palavras "mi recordo" usada em Rimini, província da região de Emilia-Romagna, onde Fellini nasceu há um século e dois anos hoje.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

saudades do Brasil


Em 5 de janeiro de 1982 Elis Regina foi a convidada do programa Jogo da Verdade, apresentado pelo jornalista Salomão Ésper, na TV Cultura, São Paulo, com as participações do produtor musical Zuza Homem de Mello e do jornalista Maurício Kubrusly como entrevistadores.

Foi um show de raciocínio lúcido, pensamento astuto, reflexões brilhantes e verdadeiras, pertinentes àquele momento da música brasileira e à situação política e social do país.
Em um trecho ela fala que "aquele do 666 do apocalipse" estava solto entre nós. Era governo do “cavaleiro” Figueiredo, o último dos generais da ditadura militar.
14 dias depois dessa entrevista, no final da manhã do dia 19, o namorado da cantora, o advogado Samuel MacDowell, sai às pressas de seu escritório na avenida Ipiranga, São Paulo, para o apartamento da cantora, no bairro Jardim Paulista. Preocupou-se com um telefonema dela, "mais balbuciava que falava", disse depois numa entrevista.
Sem ser atendido com a campainha, MacDowell arrombou a porta e encontrou Elis inerte no quarto. Acionou o médico e com a demora da ambulância, colocou a cantora em um táxi em direção ao Hospital das Clínicas, onde chegou sem vida, vitimada por um ataque cardíaco.
Elis morreu com apenas 36 anos de tanto Brasil.

terça-feira, 18 de janeiro de 2022

versos em alto mar


Em 1938, o jovem de 24 anos Marcus Vinicius da Cruz de Melo Moraes, o futuro 'poetinha', ganhou uma bolsa do Conselho Britânico para estudar língua e literatura inglesas na Universidade de Oxford.

Em setembro daquele ano, a bordo do navio Highland Patriot, escreveu o belamente dolorido Soneto da separação, motivado pela saudade da namorada Tati, que se tornaria sua primeira esposa.
Os versos partem de uma ausência, e não de uma ausência que nos parte quando tudo, “de repente, não mais que de repente”, se faz “triste o que se fez amante”.
Mas por licença poética, e desespero de causa mesmo, se conjuga nas duas ausências... quando se faz “da vida uma aventura errante”.

domingo, 16 de janeiro de 2022

"eu assubo nos aro e vou brincar no vento leste"

 


- João, de onde você tirou esse “vento leste”?
- Ah, Luiz, de noite eu liguei o rádio na Hora do Brasil e ouvi: ‘aviso aos navegantes: vento leste soprando pra sudoeste’.

O diálogo foi entre os cantores e compositores, o maranhense João do Vale e o pernambucano Luiz Vieira, autores da clássica Na asa do vento, de 1956, gravada inicialmente por Dolores Duran.
Esse e muitos outros 'causos' de parcerias estão no livro MPBambas – Histórias e memórias da canção brasileira – Vol. 2, de Tarik de Souza, Editora Kuarup, lançado em 2016.
João do Vale, de origem simples e semianalfabeto, muito espirituoso achava que tinha que colocar umas 'palavras difíceis' para impressionar em suas composições. E tudo fazia sentido. “A simplicidade é o último grau da sofisticação”, como dizia Leonardo Da Vinci.
Na asa do vento é uma das mais conhecidas do repertório de Luiz Vieira, gravada no LP homônimo de 1978, juntamente com Menino de Braçanã (com Arnaldo Passos) e Prelúdio pra ninar gente grande (sempre lembrada como Menino passarinho).
João do Vale, que também gravou no disco de 1981, sempre dizia que “parceria com gente que já tem nome não é bom, não.” Ele se referia ao fato que desde da primeira composição feita com o pernambucano, Estrela miúda, em 1952, os locutores das rádios anunciavam “de Luiz Vieira”. “Até 1964 quase ninguém sabia que as minhas músicas eram minhas”, revelou numa entrevista para o encarte de um exemplar da Nova História da Música Popular Brasileira, coleção da Abril Cultural de 1977.
Nessa mesma publicação relata um episódio interessante. João do Vale trabalhava como pedreiro numa obra na rua Barão de Ipanema, no Rio, quando no rádio na casa vizinha tocava Estrela míuda na voz da cantora Marlene. O sorridente operário da construção e da poesia falou para o colega de trabalho:
- Tá ouvindo essa música?
- Tô. É a Marlene que tá cantando.
- E sabe quem é o autor? Sou eu.
O colega pedreiro nem piscou:
- Conversa, neguinho. Você tá é delirando. Faz mais massa aí, vai!
João do Vale faleceu em 1992, aos 72 anos, depois de mais de dez anos numa cadeira de rodas com fortes sequelas de locomoção e fala, consequentes de um derrame cerebral. Luiz Vieira “assubiu nos aros” em 2020, na manhã de 16 de janeiro, aos 91 anos.
A foto acima, de acervo familiar, foi utilizada na capa do livro O jovem João do Vale, ótima pesquisa de seu conterrâneo, o escritor e jornalista Wilson Marques. Lançada em 2013 pela Editora Nova Alexandria, a biografia narra a trajetória do compositor com foco em sua infância e juventude no povoado Lago da Onça, em Pedreiras, até largar tudo e partir para o Brasil dos contrastes e brincar no vento leste.

sábado, 15 de janeiro de 2022

sinfonia de pardais

foto Acervo Arquivo Nacional, 1972

Celebra-se hoje o Dia Mundial do Compositor, de origem no México, em 1945, por ocasião da fundação da Sociedade de Autores e Compositores do México.

Vale lembrar que no Brasil a data é comemorada em 7 de outubro, Dia do Compositor Brasileiro, criada pelo grande Herivelto Martins, em 1948. Seis anos antes ele fundou a União Brasileira de Compositores. E bem antes, em 1937, criou o lendário conjunto vocal Trio de Ouro, que durou até a morte de Herivelto, em 1992, aos 80 anos.
Herivelto vivia 24 horas a música brasileira, escrevendo, compondo, gravando, fazendo shows. Preocupava-se com a situação de nossos compositores, lutou pela regulamentação da profissão e pela garantia dos direitos autorais. Pixinguinha costumava dizer em público, quando o encontrava, que “Devo a minha aposentadoria a este homem. Ele foi muito importante, um grande político sem ser político”.
A clássica Ave Maria no Morro, composta em 1943, foi gravada inicialmente pelo Trio de Ouro, por Dalva de Oliveira, e depois Angela Maria, Nelson Gonçalves, Eduardo Araújo, Gal Costa, Maria Bethania, Peri Ribeiro, Agnaldo Rayol, Tetê Espínola, Baby (quando Consuelo), Elza Soares, João Gilberto, Caetano Veloso, Emílio Santiago, Mônica Salmaso, e muitos outros intérpretes. A composição teve uma curiosa carreira internacional a partir dos anos 60, tocada em órgãos nas monumentais catedrais da Alemanha, Áustria, Suíça, Suécia, Itália, impercáveis interpretações como as de Luciano Pavarotti e Andrea Bocelli, Zucchero, James Last & Chor & Orchester, Helmut Lotti, The Hootenanny Singers, Czeslaw Niemen, Semino Rossi... a lista é longa.
Herivelto inspirou-se para criar a canção na singela capelinha no Morro da Favela, onde tinha uns pardais sobrevoando e cantando. O compositor ficava ali na frente, ao anoitecer, admirando, tomando uma cachacinha na hora da Ave Maria, e jamais imaginou que sua prece musical chegasse tão longe.
Em 1964 a espanhola Sarita Montiel, interpretando uma cantora brasileira, canta Ave Maria no Morro no filme Samba, de Rafael Gil, produção da Espanha com enredo esquisito ambientado na Favela do Salgueiro, Copacabana e outros pontos turísticos, antes da personagem seguir para Buenos Aires.
A banda alemã Scorpions, em 1995, ao se apresentar em um show no México, e com a intenção de homenagear Sarita Montiel, que ali fez carreira cinematográfica, canta uma versão em espanhol de Ave Maria, surpreendentemente acústica para uma banda de hard rock. A de Eduardo Araújo é muito mais rock.
E por que dia 7 para comemorar o dia do compositor, Herivelto Martins nunca esclareceu. Há uma lenda, reforçada por sua filha, a atriz Yaçanã Martins, que o pai era secretamente esotérico e considerava o número muito mágico.
Tanto 15 de janeiro quanto 7 de outubro, hoje é um dia para lembrar que todos os dias são dos compositores, de Rudolf Schenker do Scorpions a todos os heriveltos brasileiros. Estes bem sabem quanta abnegação para afinar e sobreviver com as cordas que amassaram neste país.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

os estatutos do poeta


Em 1964, o poeta Thiago de Mello era nosso adido cultural no Chile, então governado pelo conservador independente (sem partido) engenheiro Jorge Alessandri. Aqui, os latifundiários, a elite empresarial, as forças armadas e os interesses norte-americanos preparavam o golpe.

No dia 30 de março, Thiago de Mello completou 38 anos de idade. Festejou na Casa La Chascona, do poeta Pablo Neruda, onde morava, ao lado de brasileiros e amigos chilenos, entre estes o médico Salvador Allende.
Neruda e Allende estavam ao lado do poeta quando, no dia 1º de abril, ouviu no rádio o pronunciamento do deposto Jango sobre o golpe militar do dia anterior.
“O que sinto é que esse golpe militar no Brasil desencadeará uma onda de revoltas nos países da América. E até o Chile pode ser alcançado”, comentou - e vaticinou - Salvador Allende, como lembrou o poeta em entrevista à revista do Movimento Humanos Direitos, em 2009.
Como esperado, Thiago de Mello renunciou ao cargo na Embaixada. Na condição de exilado, cheio de indignação e saudade do seu país então marcado pelos Atos Institucionais que cerceavam a liberdade e suprimiam direitos, o poeta escreve um de seus mais belos poemas, Os Estatutos do Homem, o seu Ato Institucional Permanente, descrito em 14 artigos utópicos, que simbolizam a crença em leis que iluminam o coração dos homens que resistem.
O poema é o segundo, página 19, no livro publicado depois do golpe, o sintomático Faz escuro, mas eu canto: porque a manhã vai chegar, 1965, Editora Civilização Brasileira. Em 1980 a Martins Fontes lançou somente o poema, em formato livreto 21x21, e ilustrações do cearense Aldemir Martins.
Traduzido por Pablo Neruda, Os Estatutos do Homem teve várias edições no Chile, Uruguai, Argentina, Peru, Cuba, além de Portugal e versões para Estados Unidos e Alemanha, onde foi lançada em 1977 a Cantata dos Estatutos do Homem, composição para coral e orquestra, de autoria de Peter Janssens (1934-1998), um alemão apaixonado pela cultura da América Latina. Viveu na Argentina e musicou poemas do nicaraguense Ernesto Cardenal.
Desde 1978, quando retornou ao Brasil, Thiago de Mello morava à beira do rio Andirá, em seu Amazonas natal. De lá partiu hoje aos 95 anos.
E nestes tempos sob nuvens escuras em que vivemos, de vermes no poder e vírus no ar, canto o Artigo I dos Estatutos do Buda Nagô das águas de Andirá:
Fica decretado que agora vale a verdade,
que agora vale a vida,
e que de mãos dadas
trabalharemos todos pela vida verdadeira.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

mulher marcada para viver

A história da paraibana Elizabeth Altino Teixeira no combate à violência agrária e à impunidade começou em 1962, após o assassinato do marido, o fundador da Liga Camponesa João Pedro Teixeira.

“O João sempre me pedia para dar continuidade à luta, eu não respondia. Na hora da morte, ele segurou na minha mão e eu disse sim. Nem pensei que eu estava sozinha para criar onze filhos”, conta com serenidade e saudade. Para não ter o mesmo fim do marido, com o golpe militar de 1964, Elizabeth foi viver na clandestinidade, no interior do Rio Grande do Norte, com o falso nome de Marta Maria Costa.
Quando era militante, ela chegou a ser convidada por Fidel Castro para morar com a família em Cuba. Determinada, agradeceu respondendo que tinha uma missão no Brasil: “lutar pelo direito à terra.”
A trajetória de ambos foi resgatada pelo cineasta Eduardo Coutinho no filme Cabra marcado para morrer, rodado inicialmente em 1964 e finalizado em 1984. Elizabeth é protagonista da história de perseguição no campo e de repressão política sofrida pelo marido.
“Perdi a conta de quantas vezes fui presa e vi a morte de perto, mas o que mais doeu nessa vida toda foi ter passado mais de 16 anos longe dos meus filhos”, conta. Nove deles foram criados pelo seu pai.
No dia 9 de março de 2006, durante o primeiro mandato do presidente Lula, dona Elizabeth foi homenageada no Congresso Nacional, recebendo o diploma Mulher-Cidadã Betha Lutz por ocasião do Dia Internacional da Mulher.
Lúcida aos 96 anos, mora em João Pessoa numa casa doada por Eduardo Coutinho logo após as filmagens.
Na foto de Wyliana Teixeira, a beleza de dona Elizabeth ao receber a primeira dose da vacina contra a Covid-19, em 24/2/2021.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

só queria embalar meu filho

 

“Quem é essa mulher / que canta sempre esse estribilho / só queria embalar meu filho / que mora na escuridão do mar”
Essa mulher é Zuzu Angel. Esses versos são da música Angélica, que Chico Buarque compôs para ela, logo após sua morte em 1976, e está no disco Almanaque, de 1981. O filho que deixou de ser embalado pela mãe era Stuart Angel, estudante de Economia, militante do MR-8, preso em maio dos anos de chumbo de 1971, por agentes do Centro de Informação da Aeronáutica, torturado e assassinado, e o corpo possivelmente jogado na escuridão do mar. Tinha 25 anos, hoje faria 76.
Há relatos horríveis de testemunhas que estiveram com o rapaz na prisão, como o poeta Alex Polari, que disse ter visto ser arrastado por um jipe, com a boca no cano de descarga. A mãe, estilista reconhecida no Brasil e no exterior, dedicou sua vida a denunciar a morte do filho, enfrentando com coragem os generais da ditadura, apontando-os nominalmente, criando peças com estampas que representavam o período de repressão em que se vivia. Sempre ousada em suas criações, fez roupas com pedras e rendas do Nordeste, desvinculando-se da maneira colonizada de se vestir.
Zuzu Angel morreu misteriosamente em “acidente” de automóvel na saída do túnel Dois Irmãos, na Estrada da Gávea, Rio de Janeiro, local que hoje tem seu nome. Uma semana antes, entregou a Chico Buarque um documento que deveria ser publicado caso algo lhe acontecesse, onde escreveu: "Se eu aparecer morta, por acidente ou outro meio, terá sido obra dos assassinos do meu amado filho".

domingo, 9 de janeiro de 2022

vida e morte cabralina


 foto Bob Wolfenson

"O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte."

- Trecho da fala final do personagem Joaquim, do poema Os três mal-amados, publicado no livro homônimo, 1943, de João Cabral de Melo Neto, o mais milimétrico de nossos poetas.
Hoje, um século e dois anos do seu nascimento.
E num mesmo dia 9, na sequência do mês 10, em 1999, o poeta partiu para a pedra do sono. Tinha 79 anos.
Mais do que uma sucessão de datas, uma aliteração numérica, é uma arquitetura de um poema a palo seco, com o mesmo rigor estético de sua poesia. É um poema avesso como um cão sem plumas, uma rima toante de versos feito lâminas, o dia e a noite de sua vida, o inverno e o verão de sua existência nos agrestes de Recife, o começo de tudo e o fim do nada.
Há 23 anos João Cabral livrou-se de uma vez por todas das aspirinas que tomava diariamente, desde a juventude, para uma dor de cabeça do medo morte.

sábado, 8 de janeiro de 2022

instruções para enganar o mau tempo


Em primeiro lugar, não se desespere e em caso de agitação não siga as regras que o furacão quererá lhe impor.
Refugie-se em casa e feche as trancas quando todos os seus estiverem a salvo.
Compartilhe o mate e a conversa com os companheiros, os beijos furtivos e as noites clandestinas com quem lhe assegure ternura.
Não deixe que a estupidez se imponha.
Defenda-se.
Contra a estética, ética.
Esteja sempre atento.
Não lhes bastará empobrecê-lo, e quererão subjugá-lo com sua própria tristeza.
Ria ostensivamente.
Tire sarro: a direita é mal fudida.
Será imprescindível jantar juntos a cada dia até que a tormenta passe.
São coisas simples, mas nem por isso menos eficazes.
Ao seu lado diga bom dia, por favor e obrigado.
E tomar no cu quando o solicitem de cima.
Atire com o que tiver, mas nunca sozinho.
Eles sabem como emboscá-lo na solidão desprevenida de uma tarde.
Lembre que os artistas serão sempre nossos.
E o esquecimento será feroz com o bando de impostores que os acompanha.
Tudo vai ficar bem se você me ouvir.
Sobreviveremos novamente, estamos maduros.
Cuidemos das crianças que eles quererão amoldar.
Só é preciso se munir bem e não amesquinhar amabilidades.
Devemos ter à mão os poemas indispensáveis, o vinho tinto e o violão.
Sorrir aos nossos pais como vacina contra a angústia diária.
Ser piedosos com os amigos.
Não confundir os ingênuos com os traidores. E, mesmo com estes, ter o perdão fácil quando voltarem com as ilusões acabadas.
Aqui ninguém sobra.
E, isto sim, ser perseverantes e tenazes, escrever religiosamente todos os dias, todas as tardes, todas as noites.
Ainda sustentados em teimosias se a fé desmoronar.
Nisso, não haverá trégua para ninguém.
A poesia dói nesses filhos da puta.

- Texto do poeta e dramaturgo argentino Alejandro Pablio Robino, escrito em 2015, erroneamente atribuído nas redes sociais ao escritor e guerrilheiro compatriota Paco Urondo (1930-1976).

quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

alguns magos do Oriente


Eles chegam tocando sanfona e violão,
os pandeiros de fita carregam sempre na mão...
Hoje é o dia de Santos Reis,
anda meio esquecido,
mas é o dia da festa de Santos Reis...
- Trecho de A festa de Santos Reis, de Márcio Leonardo, gravada por Tim Maia, em seu segundo LP, 1971.
O autor Márcio Leonardo Sossio, um paulista hoje com 75 anos, residente em Santo Antônio do Pinhal, município próximo a Campos do Jordão, compôs quando tinha apenas 15 anos, e guardou a canção que celebra a viagem dos três Reis Magos à Belém para adorar o menino Jesus e lamenta o esquecimento da data. Guardou como quem guarda uma prece para o futuro.
Na capital Márcio era um dos rapazes que nos anos 60 amava os Beatles e os Rolling Stones, e acompanhava os festivais de música popular brasileira. Em 1970, com 24 anos, passou a frequentar uma boate na noite paulistana que era de propriedade de um amigo, a Cave, vendo ali uma oportunidade de se apresentar, mostrar suas composições. Afinal, por lá cantavam Jorge Ben, Sérgio Reis, Herondy Bueno, Cassiano e, entre outros com um balanço que mesclava samba e soul, um jovem que acabara de chegar de um temporada nos Estados Unidos, Tim Maia, de quem ficou amigo. O cantor morou um tempo na casa de Leonardo, que lhe mostrou algumas canções.
Sempre atraído pela vida no campo, foi morar numa comunidade no interior de Pernambuco, e Tim Maia seguiu para o Rio de Janeiro, assumir a função de síndico no condomínio Brasil. Em 1971 Marcio Leonardo ouviu no rádio sua composição sobre o Reis Magos. Procurou de imediato o telefone do Tim e conseguiu falar. “Onde é que você está, mermão?! Tem grana boa aqui pra você”, disse o cantor com aquele vozeirão. A composição de Márcio abre o disco onde tem sucessos como Você e Não quero dinheiro, só quero amar.
No LP de Tim Maia de 1976, a faixa 4 do lado A, intitulada Márcio Leonardo e Telmo é uma referência ao seu filho, a quem deu o mesmo nome do amigo. O menino ficava ali brincando durante os ensaios do pai na gravadora Seroma, mexendo nos instrumentos, e o acompanhava nos shows. Seguiu carreira como Leo Maia, gravou discos, virou evangélico em 2011 e hoje, aos 47 anos, se dedica à música gospel.
E Márcio Leonardo, mesmo com o dinheiro que passou a receber dos direitos autorais, preferiu o trabalho ligado à natureza. Tem uma pousada na região verde do Pinhal e é conhecido como o ambientalista Márcio Branco.

terça-feira, 4 de janeiro de 2022

a última viagem

foto © Collection Catherine et Jean Camus

No dia 4 de janeiro de 1960 o escritor Albert Camus comprou passagem de trem de Villeblevin à Paris. Iria em companhia de seu amigo, o poeta René Char. Seriam 105 km até capital de boas conversas sobre literatura enquanto da janela admiravam a paisagem verde riscando de leve.
Mas Camus aceitou o convite do seu editor Michel Gallimard e entrou no sedã Facel Vega Excellence. Completavam a lotação a esposa e a filhinha de Michel e o cachorro. Já perto da cidade Sens, o carro repentinamente rodopia, descontrola-se em direção a uma árvore, bate em outra e se arrebenta. O escritor morre na hora, o editor dias depois, a mulher e a menina se salvam e o animal sai em disparada. Nunca o encontraram. Ao lado do corpo de Camus, a maleta com os originais manuscritos do romance autobiográfico que estava escrevendo, “O primeiro homem, que numa irônica anotação visionária, registrou nas primeiras páginas que aquele livro não deveria ficar inacabado. Foi publicado por sua filha, Catherine Camus, em 1994.

sábado, 1 de janeiro de 2022

olhemos para cima


 

Janus, deus romano das mudanças e transições,
dos inícios,
das escolhas.
Inventor das guirlandas,
dos botes,
dos navios,
das moedas de bronze.
Olha para o passado, tem um olho em dezembro:
- vade retro, coronavírus, Ômicron, verme do Planalto Central e suas variantes!
Olha para o presente, tem a chave do futuro:
- venha logo mais vacina, ventos do Chile, um corpo cheio de estrelas!
2022! Sejamos bem-vindos a mais um giro ao redor do Sol!