sexta-feira, 18 de junho de 2021

a última madrugada


"Cada coisa chegará no tempo próprio, não é por muito ter madrugado que se há de morrer mais cedo. (...) Vivi desde aqui até aqui."

- Fragmento de um parágrafo de Ensaio sobre a cegueira, página 169, de José Saramago, 1995.
Possivelmente o livro do escritor que melhor simboliza a imagem de um mundo imundo e bárbaro. A obra foi um dos principais motivos para o Nobel de Literatura, em 1998, o primeiro autor de língua portuguesa a ganhar o Prêmio.
Numa tarde de setembro de 1991 Saramago sofreu um deslocamento da retina, e aquela dolorosa experiência o acompanhou como uma luz de inspiração. Dias depois, enquanto aguardava o almoço no restaurante Varina da Madragoa, no centro de Lisboa, o escritor “como sempre, pensava em coisas vagas. De repente, surgiu-me o título ‘Ensaio sobre a cegueira’...”, disse em entrevista ao Jornal Lusitano, na edição de 27 de novembro de 1995.
O diário registra também um trecho de seu discurso de apresentação na noite do lançamento. Saramago afirmou que “Este é um livro francamente terrível com o qual eu quero que o leitor sofra tanto como eu sofri ao escrevê-lo. Nele se descreve uma longa tortura. É um livro brutal e violento e é simultaneamente uma das experiências mais dolorosas da minha vida. São 300 páginas de constante aflição. Através da escrita, tentei dizer que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso.”
Esse desejo do autor é uma consequência inevitável que a narrativa provoca, pelo incômodo e reflexão, a abstinência moral humana, a urgência de resgatar o afeto diante do caos e escuridão.
Adaptado para o cinema em 2008, por Fernando Meirelles, o romance distópico é a atualíssima imagem aterradora destes tempos sombrios em que sobrevivemos: na névoa de uma pandemia em volta do planeta, e aqui, na cerração de um pandemônio em volta do planalto.
Na foto de Pedro Walter, o escritor na ilha espanhola Lanzarote, onde viveu até madrugar em 18 de junho de 2010, aos 87 anos.

Nenhum comentário: