Luiz Geraldo de Miranda Leão foi um dos seletos e genuinamente críticos de cinema deste país. E crítico entenda-se como um verdadeiro estudioso da sétima arte. Jornalista, professor e escritor, Miranda é autor de importantes livros sobre o tema que dominou tão bem por mais de 60 anos. Entre eles, destaco Ensaios de Cinema, lançado em 2010 pelo Programa Cultura da Gente, do Banco do Nordeste.
Em quase 300 páginas ele disserta de forma preciosíssima análises sobre a Nouvelle Vague, destacando a importância de Os incompreendidos, 1959, obra-prima de François Truffaut, à reflexões sobre o cinema hollywoodiano contemporâneo. Faz considerações surpreendentes em quatro filmes de Martin Scorsese (Quem está batendo à minha porta, 1968, Caminhos perigosos, 1973, Alice não mora mais aqui, 1974, Depois de horas, 1985), passando antes pelo período marcante do macarthismo, pelo cinema subestimado de Edward Dmytryk nos anos 40 e 50, elabora observações acertadas e rigorosas sobre a estética da violência na narrativa inovadora dos filmes de Sam Peckinpah, releva a América sentida na pulsação da magnitude de Stanley Kubrick, vai ao cinema europeu e como desbravador do código da mente humana, disseca a alma da cinematografia de Ingmar Bergman, e evidencia o expoente de um novo cinema no trabalho do húngaro István Szabó.
E entre tantos outros gêneros, períodos e diretores estudados no livro, dedica um especial olhar as suas duas grandes paixões: Orson Welles e o cineasta brasileiro Walter Hugo Khouri, de quem se tornou amigo. Viu de perto o diretor de Cidadão Kane. Tinha 10 anos de idade em 1942 quando acompanhou na praia do Mucuripe, em Fortaleza, as filmagens de It’s all true, levado pela mão de seu pai, o cinéfilo e pediatra João Valente de Miranda Leão.
Miranda teve e tem uma importância fundamental na minha vida no cinema. Muito cedo comecei a ler seus artigos nos jornais. Posso dizer, sem erro, com orgulho e saudade desses tempos, que muito de teoria cinematográfica aprendi através dessas leituras, e adolescente fascinado ouvindo suas palestras no Clube de Cinema Fortaleza nos anos 70, em conversas antes e depois das sessões do Cinema de Arte do Cine Diogo, quando fui editor dos folhetos informativos que se distribuía na entrada de cada apresentação nas noites de sextas-feiras. Sua análise lúcida, criteriosa e apaixonada, serviu-me de estímulo para mergulhar cada vez mais no mundo das telas de cinema, como crítico no jornal O Povo, e depois como cineasta.
A última vez que estive com Miranda já faz tempo. Ele em Fortaleza, eu em Brasília, contatos por e-mail. Enviou-me um exemplar citado livro de ensaios. Em 2014, em um encontro com sua filha, jornalista
Aurora Miranda Leão
, na capital cearense, soube que ele estava adoentado. Hoje recebo a notícia de seu falecimento, aos 89 anos. Miranda partiu bem cedo, no começo da manhã desta atípica sexta-feira santa. Não acordou, continuou no sono de outra luz, por atrás da tela de cinema, onde deve existir uma dimensão que não alcançamos do lado de cá, de quem fica nesta sessão diante o filme da vida. Miranda foi ao encontro de sua esposa Marlene, falecida há uma semana, como Giulietta Masina foi logo atrás de Fellini. Ele me dizia que desde quando assistiu às filmagens de It’s all true, o cinema não saiu mais dele. Ver Orson Welles dando ação ao movimento das imagens sob sol o cearense, deve mesmo ter marcado aquele menino. Sempre que eu ouvia seu relato dessas lembranças, conseguia ver também o cineasta através de seus olhos. E me sentia igualmente no set à beira-mar, como se então fosse ele meu pai levando-me pela mão ao cinema. Era tudo verdade. Passei a chamar meu mestre Miranda Leão de “Cidadão do Cinema”.
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