sexta-feira, 30 de abril de 2021

eu não estou interessado em nenhuma 'tiuria' - o novo sempre vem


“Eu acho que a gente precisa abrir novamente a discursão sobre música brasileira, sabe? É preciso voltar novamente a polemizar sobre música brasileira. Muita coisa tá acontecendo na música popular brasileira. Está acontecendo e as pessoas não estão vendo, não estão dizendo, não ‘tão querendo, mas tá acontecendo muita coisa. E é preciso que os meios de comunicação, os críticos, as pessoas, tomem um conhecimento mais preciso disso. E... os compositores novos, estão todos abertos à polêmica, estão todos abertos à discursão. (...) Então, eu tô interessado numa linguagem nova dentro da música popular brasileira. Novas palavras, novos signos, novos símbolos.”

- Trecho da entrevista com Belchior, aos 28 anos, transcrito do programa MPB Especial, TV Tupi de São Paulo, 2 de outubro de 1974, direção de Fernando Faro.
Naquele ano o cantor acabara de lançar o seu primeiro LP, pela Chantecler, que ficou conhecido como Mote e closa. O seu discurso poético-musical proposto nesse disco seminal se concretiza mais fortemente no álbum Alucinação, de 1976, pela PolyGram, através do selo Philips.
A faixa-título é praticamente um manifesto de toda obra de Belchior, composta de doze discos autorais, do citado de 1974 a Bahiuno, de 1993. E até acrescento, tranquilamente, seu último disco de estúdio, Vício elegante, 1996, onde, exceto a faixa-título, em parceria com
Ricardo Bacelar
, e o tradicional cântico católico Panis Angelicus, as demais onze canções, de Almanaque, de Chico Buarque, a Aparências, composição de Ed Wilson e Cury Heluy, sucesso na voz de Marcio Greyck na década de 80, apresentam o Belchior intérprete de letras que ele poderia ter escrito.
Sobre a composição Aluinação", o Porto Iracema das Artes, escola de formação e criação ligada à Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, apresenta hoje o projeto Anatomia da Canção. Sob mediação da cantora e compositora
Mona Gadelha
, coordenadora do Laboratório de Música, a transmissão será pelo canal da escola no YouTube, às 17h30.
Junto com a jornalista e pesquisadora Josy Teixeira, e o escritor e músico
Leo Mackellene
, estaremos comentando as novas palavras, os novos signos, os novos símbolos que Belchior trouxe para a música brasileira.
Quatro anos hoje daquela madrugada de domingo quando Belchior ficou encantado com uma nova invenção e partiu, depois de “há tempo muito tempo longe de casa”, a léguas tiranas das margens do rio Acaraú que corta sua aldeia, nessas ilhas cheias de distância em Santa Cruz do Sul nos pampas gaúchos.
Toca Belchior!

quinta-feira, 29 de abril de 2021

começaria tudo outra vez


foto Geraldo Guimarães

30 anos hoje da morte de Gonzaguinha.

Ano passado escrevi o texto abaixo sobre aquela manhã de segunda-feira.
Reposto a saudade. O texto fará parte do livro que estou finalizando, Crônicas do Olhar, pela
Editora Radiadora
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Um dos mais fortes contestadores do regime militar, Gonzaguinha tem em sua obra de 17 discos, nas letras e canções, a postura determinada herdada da mãe, Odaléia dos Santos, compositora e cantora da noite, que não abria mão de sua arte. De postura avançada para a época, recusava-se a ficar em casa, bela e recatada, como queria Gonzagão.
Odaléia tinha apenas 22 anos quando contraiu tuberculose, a chamada peste branca naqueles anos 40, doença contagiosa, fatal, uma sentença. Depois de meses e meses internada em sanatórios em Petrópolis e Santos Dumont, Minas Gerais, não resistiu à doença.
Antes de Odaléia falecer, Gonzaguinha, com dois meses de idade, e para preservar a saúde, foi retirado dos braços da mãe e entregue aos padrinhos, um casal amigo de Gonzagão, Dina e Henrique, que moravam no Morro de São Carlos, no Estácio, Rio de Janeiro. Até os dois anos, o menino via a mãe em rápidas visitas. E o pai também pouco encontrava, no começo de carreira, fazendo shows, já antecipando “minha vida é andar por esse país...”
Os títulos dos discos de Gonzaguinha resumem a grandiosidade explosiva de demarcação poética, cívica e maternal na história da música brasileira:
- no primeiro e no segundo, 1973, 1974, ambos Luiz Gonzaga Jr., apresenta-se e insiste com seu nome na cara do governo mais cruel da ditadura militar, Médici;
- Plano de voo, 1975, mostra as cartas de navegação de seu pensamento musical para o governo Geisel que esboçava abertura política;
- Começaria tudo outra vez, 1976, avisa que naquele período de ensaio placebo de abertura, repetiria o mesmo plano de resistência na arte e no discurso;
- Moleque Gonzaguinha, 1977, lembra a força do filho de Odaléia nos braços seguros de Dina, a nova mãe do franzino quimbundo "mu’leke" africano que subiu o morro de São Carlos. Naquele ano, o Brasil foi um dos primeiros países a reconhecer a independência de Angola e Moçambique que se tornaram, logo após a independência, socialistas;
- Recado, 1978, quando o país oscilava e processava uma distensão “lenta, gradual e segura", como diziam os militares, recorre à lembrança mátria na canção Odaléia, noites brasileiras, uma das mais belas homenagens de um filho para a mãe que nunca partiu em suas noites, e continua como “estrela guia” no solo pátrio;
- de 1979 a 1990, Gonzaguinha na vida, De volta ao começo, Coisa mais maior de grande – Pessoa, A vida de viajante, Caminhos do coração, Alô, alô, Brasil, Grávido, Olho de lince, Gerais, Corações marginais, Luizinho de Gonzagão Gonzaga Gonzaguinha atestam e testemunham tanto uma nova estrutura política no país, com as Diretas Já, Constituição de 1988, Nova República, quanto uma nova disposição familiar, pessoal, de reencontro com pai Gonzagão.
E também, com ternura, mas sem perder a dureza naquele 1988 da maldição dos vices, com Sarney no comando, avisa que “a gente não está com a bunda exposta na janela / pra passar a mão nela”.
Na manhã de 29 de abril de 1991, com o Brasil sob a presidência do marajá das Alagoas, o carro de Gonzaguinha bate de frente com um caminhão, em uma estrada no Paraná, ao regressar de uma apresentação na cidade Pato Branco. Ele se dirigia para Foz do Iguaçu, de lá iria de avião para Florianópolis, onde tinha um show agendado.
A súbita morte do cantor, aos 45 anos, deixou um vazio na música brasileira, insubstituível como tudo que é uma só vez na vida.
Nestes tempos de vírus no ar e vermes almas sebosas no poder, com certeza Gonzaguinha começaria tudo outra vez e bradaria "a gente quer viver numa nação / a gente quer é ser um cidadão".
foto Geraldo Guimarães

quarta-feira, 28 de abril de 2021

as letras das canções


Paulo César Pinheiro tem mais de mil letras musicadas em parcerias com Baden Powell, Pixinguinha, Radamés Gnatalli, Wilson das Neves, Moacyr Luz, Edu Lobo, Tom Jobim, Francis Hime, Cartola, João Nogueira, Egberto Gismonti, João Donato, Ivan Lins, Maurício Tapajós Dori Caymmi, Hélio Delmiro, Eduardo Gudin, Toquinho, Guinga, Vicente Barreto, Lenine... e tantos outros.

Viagem (aquela que começa bem decidida, "oh! tristeza me desculpe / estou de malas prontas..."), foi escrita quando ele tinha 14 anos. Seu primo João de Aquino musicou e vários cantores gravaram. Mas sua primeira gravação em disco foi Lapinha (a que também começa muito convicta, "quando eu morrer me enterre na Lapinha..." ) composta com Baden, e a clássica interpretação de Elis Regina, primeiro lugar na I Bienal do Samba da TV Record, 1968.
A ótima biografia A letra brasileira de Paulo César Pinheiro - Uma jornada musical, escrita pela jornalista Conceição Campos, lançada em 2009, é resultado de dez anos de pesquisa, e faz uma precisa radiografia afetiva e histórica do trabalho do mais importante letrista da música brasileira.
O compositor completa hoje 72 anos muito bem vividos entre canções e parceiros de todas as gerações.

domingo, 25 de abril de 2021

no meio de olhares espio


O cantor e compositor Rodger Rogério conta em entrevista para o meu documentário em andamento Pessoal do Ceará – Lado A Lado B, que durante o programa Proposta, na TV Record, em 1973, conheceu e ficou amigo do compositor paulista Paulo Vanzolini, autor do clássico samba-canção Ronda, aquele do andarilho à procura de quem não o quer mais.

Rodger, físico de formação, e Vanzolini, zoólogo reconhecido, tinham longas e divertidas conversas além da música que os apresentou. Certa vez, ao ouvi-lo falar muito e com bastante propriedade sobre o Pantanal, da beleza da extensão estépica no coração do Brasil, Rodger curioso perguntou se ele conhecia o Nordeste. “Meu filho, eu palmilhei aquele chão sagrado!”, respondeu, surpreendendo Rodger, que confessa, rapaz da cidade, o mais longe que alcançou foi nas viagens à fazenda da família de Flávio Torres, nos monólitos de Quixadá. “Pois de Quixadá, eu conheço até os bodegueiros”, arrematou Vanzolini, citando fulano, sicrano e beltrano.
Dessa conversa Rodger se inspirou para compor Chão sagrado, em parceria com Belchior, que desenvolveu a letra, sabendo da história do provedor do mote, e com a vantagem de ter palmilhado o sertão natal de Sobral às margens do Acaraú.
Gravado no disco homônimo de 1974, com
Téti
, a canção, segunda do lado A, é uma radiografia afetiva do chão de Morro Branco e Quixadá, de “sol quente pra todo lado”, como diz um dos versos, na alma do nordestino.
Assim como, por exemplo, os escritores Pedro Nava e Moacir Scliar sobreviviam e felizes viviam (até onde se sabe) de suas profissões de reumatologista e sanitarista, respectivamente, Paulo Vanzolini curtia demais seus afazeres diários no ramo da biologia estudando os répteis e anfíbios, sua especialização.
Mas compor música não era um hobby. Até porque não se trata a arte como passatempo. E tempo não se passa: se vive. Vanzolini criava como prolongasse sua formação para entender esse bípede chamado homem e sua complicada alma anfíbia. Com certeza, os animais tinham mais definição e uma convivência aprazível.
Volta por cima, na voz de Noite Ilustrada, Na Boca da Noite, que compôs com Toquinho, são outras de tantas canções que se consagraram também pelo conteúdo dramático dos enamorados, dos amantes e seus abismos.
Ronda, de 1953, gravada inicialmente por Inezita Barroso, é uma crônica de amor e morte nos bares e ruas de São Paulo. Apesar de não ser sua canção preferida - como revelou certa vez em uma entrevista - é a que melhor resume esse olhar analítico dos queixumes das almas penadas nos centros urbanos.
No mesmo mês de abril, Vanzolini veio e foi embora. Hoje faria 97 anos. Partiu três dias depois em 2013 para outras rondas, outro chão sagrado.
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Com adaptações para esta postagem, texto do meu livro em preparação Crônicas do Olhar, Editora Radiadora.

sábado, 24 de abril de 2021

a alegoria dos roedores


Ratos, temerosos roedores, com seus músculos miúdos, olhinhos amedrontadores luzindo nas trevas dos esgotos... invadem as casas, as cidades, o país. Numa longe localidade, restaurada do nada, eles promovem o VII Seminário dos Roedores, evento onde reúne os burocratas, sob a coordenação do Secretário do Bem-Estar Público e Privado, sempre ladeado do seu Chefe de Relações Públicas. Aquele país cada vez mais atravancado pelos mecanismos, os expedientes de papelocracia que invertem a proporção dos roedores em relação ao número de homens: cem por um.

Esse é o resumo de “Seminário dos ratos”, um dos quinze magníficos contos no livro homônimo de Lygia Fagundes Telles, lançado em 1977.
A escritora, que completou 98 anos no dia 19 deste mês, com uma narrativa alegórica que mescla realidade e fantasia, o fantástico e a lógica racional, apresenta uma reflexão política e social do que vivemos em períodos de contenção de liberdade, de domínio pela força, de aniquilamento dos nossos direitos pela mentira e adestramento. O livro foi escrito em uma das décadas mais cruéis da ditadura militar no Brasil, a era Geisel herdada de Médici e entregue a Figueiredo.
Todos os textos, na simbologia do horror e do asco, exprimem a distopia, a perplexidade, o poder na mão dos homens sem alma.
Na capa das primeiras edições do livro, dois ratos erguem estandartes com bandeiras, à frente de uma figura estilizada, uma espécie de monstro-rei. A ilustração sugere que será tanto protegido quanto retirado do trono pelos roedores. É da natureza a vilania de quem se merece. E no conto-título, Lygia coloca como epígrafe os versos finais de “Edifício Esplendor", de Carlos Drummond de Andrade, “– Que século, meu Deus! diziam os ratos. / E começavam a roer o edifício.”, um dos doze poemas publicados no pequeno-grande livro “José”, o quarto do itabirano, 1942.
A abertura do conto, o conto, o livro, tudo é como um aplicativo atualizado no Brasil de agora, nestes tempos pandêmicos com a praga da era do pandemônio, a peste no trono do planalto central e seus ratos seguidores infectando as casas, as cidades, o país.
Que século, meu Deus! - diremos os homens.

sexta-feira, 23 de abril de 2021

ah, se tu soubesses como eu sou tão carinhoso...


Em novembro de 1957 o cantor e trompetista Louis Armstrong esteve no Brasil para uma turnê com shows em São Paulo e Rio de Janeiro, então Capital Federal. Foi recebido pelo presidente Juscelino Kubitschek, encontrou-se com o ator Grande Otelo, os cantores e compositores Dorival Caymmi, Elizete Cardoso, Lamartine Babo, Fernando Lobo, foi homenageado com um banquete no Palácio Laranjeiras, onde cantou acompanhado por Sivuca... mas foi com o maestro, flautista, saxofonista, compositor Pixinguinha que o músico norte-americano mais afinou amizade.

A histórica foto acima, um flagrante de Luis Edgardi, da revista O Cruzeiro, simboliza bem o dia em que o jazz e o chorinho se encontraram.
124 anos hoje do nascimento de Pixinguinha. A data foi escolhida para comemorar o Dia Nacional do Choro, gênero que mescla princípios da música africana e europeia, como a polca, e expressa uma melancolia resultante dos elementos e modulações de sons plangentes.
Quando o já denominado choro entra na nossa cena musical, era tocado por instrumentistas de bandas militares, e, principalmente, por operários da indústria têxtil e funcionários públicos. Pixinguinha trabalhava nos Correios, e tornou-se o maior compositor do gênero, apresentando-se nos cabarés da Lapa e teatros de revista, acompanhando cantores como Mário Reis e Francisco Alves, e participou de vários grupos instrumentais como Caxangá, Oito Batutas e o regional de Benedito Lacerda.
A melodia de Carinhoso foi composta em 1917, e posteriormente colocada letra por João de Barros. Somente nos final dos anos 30 tornou-se mais conhecida, com a gravação de Orlando Silva. Pixinguinha foi criticado por ser influenciado pela forma sincopada do jazz. Ele não se incomodou com o tom dessas observações, sabia que a variedade melódica, harmônica e rítmica de cada um dos gêneros tinha origem na cultura popular, na fascinante criatividade das comunidades negras.
Pixinguinha e Armstrong devem ter conversado muito sobre isso no encontro nos jardins do Palácio do Catete, onde a foto foi feita.

quarta-feira, 21 de abril de 2021

aos homens do nosso tempo


"Reis, ministros
E todos vós, políticos,
Que palavra além de ouro e treva
Fica em vossos ouvidos?
Além de vossa rapacidade
O que sabeis
Da alma dos homens?
Ouro, conquista, lucro, logro
E os nossos ossos
E o sangue das gentes
E a vida dos homens
Entre os vossos dentes."


- trecho de Poemas aos homens de nosso tempo, de Hilda Hilst, publicado no livro Júbilo, memória, noviciado da paixão.
Lançado em 1974, no período mais cruel da ditadura militar, derramando “o sangue das gentes” brasileiras, o livro, e especificamente o poema, é extensivo a estes tempos de pandemônios, de políticos almas sebosas, de presigárgulas gambás das trevas, como o atual despresidente do nosso país e seus seguidores dementes com lavas de ódio em "vossos dentes", que escolhem “ouro, conquista, lucro, logro” em vez da vida.
91 anos hoje de nascimento de Hilda Hilst, a grandiosa senhora do lado bonito deste país.

segunda-feira, 19 de abril de 2021

Bandeira do Brasil

“O melhor da pátria, quem sabe, são os poetas, a quem se fecham todas as portas, para que eles sejam mais livres e vejam mais longe. Sonham Pasárgada.”

Otto Lara Resende em uma crônica sobre Manuel Bandeira, de 1976, publicada no livro póstumo O príncipe e o sabiá, 1994.
O poeta pernambucano foi da geração de 1922 do Modernismo, mas teve desavenças com Oswald de Andrade. Recusou-se a assinar o Manifesto da Poesia Pau-Brasil e chegou a escrever um artigo detonando. Oswald, notório piadista, arriscava perder um amigo, mas não a oportunidade de uma brincadeira. E no embate entre os gênios, teria dito que “um poeta é sempre bem-vindo, e mais bem-vindo se é Manuel, Bandeira do Brasil”. Chiste ou não, já saudara com distinção o que Lara Resende escreveu com louvor em sua crônica.
Bandeira tinha 82 anos quando faleceu em 1968, dezesseis anos depois que escreveu Consoada, um poema que é todo corpo-narrativo eufemístico sobre a morte. O mais longe que vai é denominá-la maiusculamente de “a Indesejada”. Manteve a reverência pessoal na pronúncia da recusa humana, pois sabe-se lá como é do outro lado. O eu-lírico aceita os sortilégios da dita cuja, e sereno a trata como uma refeição leve, natalina, como define o título. Mas “a iniludível”, por ser pontual sem data marcada, veio-lhe dura, abatendo-lhe com uma hemorragia gástrica. Mesmo assim, não teve medo, o poeta sorriu uma carinhosa e consoante evocação, “o meu dia foi bom, pode a noite descer”.
135 anos hoje de nascimento do poeta que coroou a literatura brasileira com o itinerário rumo à Pasárgada. Mais longe, mais livre.

o perfume das cigarras na hortelã


 — papai o que é poeta?

os bagunceiros e arruaceiros filho!
uns sonhadores que rasgam dinheiro
desconcertam a linguagem
na lagoa no lugar do lambari
colocam um violino nadando
no céu o pampa verdejante
na planície o mar azulante
e na lapela um girassol gigante
dizem coisas inesperadas
inventam ritmos alucinantes
às vezes até sem rima
atropelam o alexandrino
contrariam as leis dos sentidos
mais confundem que esclarecem
abusam do mistério
nas suavidades e nas asperezas
da luz sob as transparências
e do vento desenhando com nuvens
formas inexatas de bichos
tornam coisas abstratas
em ideias concretas imprevisíveis
são capazes de transfigurar
qualquer lógica ou limite
para declarar o amor a paz
imprescindível e intransferível
e ao final ainda confessam
que o poema não serve para nada
assim como as auroras as utopias
o perfume das cigarras na hortelã
e a trilha das formigas cortadeiras
no jardim depois da chuva
– papai quando crescer
posso ser poeta?
Do livro O unicórnio do sul e outras lendas poéticas, de José Couto, publicado pela Autografia Editora, RS, 2018, com ilustrações de Luiza Maciel Nogueira.
O lirismo dos poemas e desenhos resgatam a beleza urgente e necessária das lendas, estórias, do lúdico para todas as idades, como encanto e reflexão na contramão destes tempos ditos pós-modernos, do adestramento tecnológico, do fast food dos afetos, de pandemia no ar, de pandemônio no Planalto, da distopia dos podres poderes, da esperança em conta-gotas.

domingo, 18 de abril de 2021

sábado, 17 de abril de 2021

no peito é pleno abril


foto Acervo Ednardo

Em 1972, depois que no bicho deu o carneiro, como preconizaram os versos augustoponteanos, o cantor e compositor Ednardo seguiu em seu fusquinha das dunas brancas de Fortaleza para o Rio de Janeiro. As coisas vinham de lá, ele mesmo foi buscar. Foi com o corpo e a bagagem todo feliz na viagem.

Hoje ele completa 76 abris em seu coração.
Parabéns, caro trovador da geografia afetiva dos terrais cearenses!

terça-feira, 6 de abril de 2021

a atriz que emendou a gramática

foto Arquivo Dedoc/VEJA

"Tem som no microfone? Vocês são iguais sabem a quem? Àqueles que foram na 'Roda Viva' e espancaram os atores! Vocês não diferem em nada deles, vocês não diferem em nada! E por falar nisso, viva Cacilda Becker! Viva Cacilda Becker!"

Assim esbravejou Caetano Veloso, no III Festival Internacional da Canção, em 1968, quando sua música É proibido proibir foi recebida com vaia pelo público no Teatro da Universidade Católica de São Paulo (TUCA).
A explosiva interrupção do cantor durante a apresentação refletia claramente uma crítica ao governo naqueles tumultuados anos a caminho da decretação do AI-5, o golpe dentro do golpe que aconteceu em dezembro daquele o ano que não terminou, como diz o título do livro de Zuenir Ventura.
A primeira-dama dos palcos brasileiros é citada no trecho do discurso por ter, corajosamente, participado e tomado a frente da comissão de artistas que foi à residência do então governador Abreu Sodré, exigir providências sobre o ataque ao Teatro Galpão.
Os desdobramentos repressivos da ditadura militar atingiram todos os setores culturais do país. No teatro, Cacilda Becker colocou o rosto além dos palcos e não aceitava tapas como militante assumida das causas de sua classe. Sob acusação de que seus papeis nas peças que escolhia e a forma como interpretava tinham conotações subversivas, foi sumariamente demitida dos trabalhos na TV Bandeirantes.
No mesmo assustador 1968, Augusto Boal dirige o espetáculo Primeira Feira Paulista de Opinião, com textos de vários dramaturgos, como Plínio Marcos, Bráulio Pedroso, Gianfrancesco Guarnieri, Jorge Andrade, Lauro César Muniz e o próprio Boal. Com trilhas compostas por Edu Lobo, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Sérgio Ricardo e Ary Toledo, a montagem, discutindo o tema urgente como “O que pensa o Brasil de hoje?”, uniu o meio teatral de São Paulo com a classe carioca na luta contra as ações autoritárias da Censura. Logo no dia da estreia, em julho, a peça sofreu 71 cortes.
Integrante do elenco, Cacilda Becker, resoluta e belamente impávida, caminha até o proscênio e se responsabiliza pela apresentação do texto na íntegra. Aquela atitude corajosa de desobediência civil, de rebeldia cívica, petrificaram os agentes federais censores ali sentados na primeira fila. A força na voz inabalável daquela mulher atriz fizeram aqueles “machos brancos sempre no comando” acatarem a decisão e assistirem ao espetáculo sem darem um pio e recolherem as lâminas cretinas em suas pastas. Não à toa o título de sua biografia é "Cacilda Becker – fúria santa", 650 páginas com uma preciosa pesquisa feita por Luís André do Prado, lançada em 2002 pela Geração Editorial.
No primeiro semestre de 1969 Cacilda Becker atuava em Esperando Godot, no TBC, com direção de Flávio Rangel. O clássico do irlandês Samuel Beckett, um exemplar do teatro do absurdo, retrata sintomaticamente nas entrelinhas o absurdo do recrudescimento em que o país mergulhava – tema tão atual neste Brasil desgovernado por um despresidente alma sebosa. A atriz interpretava o personagem principal, Estragon (foto). Ela substantivo feminino retira o pronome masculino e veste com alma o corpo do personagem, aquela que personifica a esperança, aquela que espera God(ot), aquela que aguarda Deus, aquela que é o caminho em seu nome, como na rubrica que divide a peça em três atos-mulheres: Estrada, Árvore, À Noite.
Numa apresentação em maio, justo no intervalo entre o primeiro e o segundo ato, Cacilda Becker sente-se mal, sofre um derrame cerebral. Às pressas, é levada ao hospital e é internada ainda com as roupas do personagem. Leva Estragon, mas o deixa na história do teatro brasileiro. Foi a primeira montagem profissional da peça no Brasil, depois de duas amadoras, uma da Escola de Arte Dramática de SP, com direção de Alfredo Mesquita, e outra de Luiz Carlos Maciel, em Porto Alegre, ambas na década de 50.
Depois de 38 dias, na manhã de 14 de junho, falece, aos 48 anos. Aliás, faleceram, pois como disse Carlos Drummond de Andrade num trecho do poema Atriz, a ela dedicado, “A morte emendou a gramática. / Morreram Cacilda Becker. / Não era uma só. Era tantas.”
Cacilda não retornou ao palco naquela noite. Como num parentesco longínquo nos sobrenomes do dramaturgo e da atriz, o diálogo final da peça, entre os personagens Estragon e Vladimir, parece fazer uma conexão entre sentido e despedida:
- Vladimir: Então, devemos partir?
- Estragon: Sim, vamos.
Eles não se movem. Apagam-se as luzes. Fecham-se as cortinas.
Abrem-se as cortinas: 100 anos hoje de seu nascimento. Acendem-se as luzes em sua homenagem. Parafraseando Drummond, em 1921 nasceram Calcida Bercker.
foto Acervo Dedoc/VEJA
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Com acréscimos para esta postagem, texto do meu livro em preparação ©Crônicas do Olhar, a ser lançado pela
Editora Radiadora
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domingo, 4 de abril de 2021

a ressurreição de uma obra


Na fé cristã, a Páscoa é a comemoração do fundamento e da crença que Jesus morreu e ressuscitou no terceiro dia.

A Igreja Católica, lá nos primórdios, preocupada em tornar o Cristianismo mais atraente para os ditos não-cristãos, misturou a ressurreição de Jesus com rituais de fertilidade que ocorriam na primavera, e ovos e coelhos simbolizam a fecundidade, multiplicação, abundância.
A reprodução abaixo é da belíssima obra do pintor renascentista Rafael Sanzio, Ressurreição de Cristo, criada na passagem de um século para outro, entre 1499 e 1502, no nascimento de um novo tempo.
É curioso como na grandiosidade de uma peça estejam marcados em suas cores, o símbolo, a história e significados de transformação, de mudança, de renascimento.
Um terremoto na cidade Tolentino, Itália, por volta do final do século 18, atingiu a Basílica de São Nicolau, onde estava o quadro, por detrás do altar. Foi recuperado, renascido, elevado aos céus para a humanidade. A obra ressuscitada.
Em 1947, o historiador e colecionador Pietro Maria Bardi criou, junto com o jornalista Assis Chateaubriand, o Museu de Arte Moderna de São Paulo. Bardi, que nasceu na mudança de um século, 1900, e faleceu na passagem de outro, 1999 – mais uma vez, o renascimento - foi diretor da instituição por dedicados 45 anos. Em 1954 adquiriu, através de leilão, o quadro de Rafael Sanzio para o Museu.
O belo e magnetizante óleo sobre madeira, de pouco mais de 50 cm de dimensão, exposto em cavalete de cristal, é a única obra do pintor italiano não somente no Brasil, mas em todo o hemisfério sul. Outra vez renascida em nova casa.
Rafael Sanzio nasceu em um 6 de abril, e na simetria e renascimento do tempo, faleceu também em um 6 de abril, de 1520, aos 37 anos. Cinco séculos e um ano este mês de sua passagem.
Neste domingo de Páscoa são 2.844.807 mortes por Covid-19 ao redor do planeta. No Brasil, na página infeliz de nossa história, desgovernado por uma alma sebosa negacionista e genocida, 330.193 famílias enlutadas, chorando seus parentes, amigos e vizinhos que não voltam mais.
Ressurreição de Cristo de Rafael reflete mudança, renascimento, transcurso no tempo e no espaço. O quadro está ali na parede do Museu na capital paulista, aguardando a mudança do tempo para visitas e contemplação da beleza. E continuemos em casa, cuidando de si e dos outros. Que a fertilidade da fé ilumine multiplique a sabedoria da ciência na cabeça dos homens. Renasceremos desse caos.

sexta-feira, 2 de abril de 2021

Cidadão do Cinema


Luiz Geraldo de Miranda Leão foi um dos seletos e genuinamente críticos de cinema deste país. E crítico entenda-se como um verdadeiro estudioso da sétima arte. Jornalista, professor e escritor, Miranda é autor de importantes livros sobre o tema que dominou tão bem por mais de 60 anos. Entre eles, destaco Ensaios de Cinema, lançado em 2010 pelo Programa Cultura da Gente, do Banco do Nordeste.

Em quase 300 páginas ele disserta de forma preciosíssima análises sobre a Nouvelle Vague, destacando a importância de Os incompreendidos, 1959, obra-prima de François Truffaut, à reflexões sobre o cinema hollywoodiano contemporâneo. Faz considerações surpreendentes em quatro filmes de Martin Scorsese (Quem está batendo à minha porta, 1968, Caminhos perigosos, 1973, Alice não mora mais aqui, 1974, Depois de horas, 1985), passando antes pelo período marcante do macarthismo, pelo cinema subestimado de Edward Dmytryk nos anos 40 e 50, elabora observações acertadas e rigorosas sobre a estética da violência na narrativa inovadora dos filmes de Sam Peckinpah, releva a América sentida na pulsação da magnitude de Stanley Kubrick, vai ao cinema europeu e como desbravador do código da mente humana, disseca a alma da cinematografia de Ingmar Bergman, e evidencia o expoente de um novo cinema no trabalho do húngaro István Szabó.
E entre tantos outros gêneros, períodos e diretores estudados no livro, dedica um especial olhar as suas duas grandes paixões: Orson Welles e o cineasta brasileiro Walter Hugo Khouri, de quem se tornou amigo. Viu de perto o diretor de Cidadão Kane. Tinha 10 anos de idade em 1942 quando acompanhou na praia do Mucuripe, em Fortaleza, as filmagens de It’s all true, levado pela mão de seu pai, o cinéfilo e pediatra João Valente de Miranda Leão.
Miranda teve e tem uma importância fundamental na minha vida no cinema. Muito cedo comecei a ler seus artigos nos jornais. Posso dizer, sem erro, com orgulho e saudade desses tempos, que muito de teoria cinematográfica aprendi através dessas leituras, e adolescente fascinado ouvindo suas palestras no Clube de Cinema Fortaleza nos anos 70, em conversas antes e depois das sessões do Cinema de Arte do Cine Diogo, quando fui editor dos folhetos informativos que se distribuía na entrada de cada apresentação nas noites de sextas-feiras. Sua análise lúcida, criteriosa e apaixonada, serviu-me de estímulo para mergulhar cada vez mais no mundo das telas de cinema, como crítico no jornal O Povo, e depois como cineasta.
A última vez que estive com Miranda já faz tempo. Ele em Fortaleza, eu em Brasília, contatos por e-mail. Enviou-me um exemplar citado livro de ensaios. Em 2014, em um encontro com sua filha, jornalista
Aurora Miranda Leão
, na capital cearense, soube que ele estava adoentado. Hoje recebo a notícia de seu falecimento, aos 89 anos. Miranda partiu bem cedo, no começo da manhã desta atípica sexta-feira santa. Não acordou, continuou no sono de outra luz, por atrás da tela de cinema, onde deve existir uma dimensão que não alcançamos do lado de cá, de quem fica nesta sessão diante o filme da vida. Miranda foi ao encontro de sua esposa Marlene, falecida há uma semana, como Giulietta Masina foi logo atrás de Fellini.
Ele me dizia que desde quando assistiu às filmagens de It’s all true, o cinema não saiu mais dele. Ver Orson Welles dando ação ao movimento das imagens sob sol o cearense, deve mesmo ter marcado aquele menino. Sempre que eu ouvia seu relato dessas lembranças, conseguia ver também o cineasta através de seus olhos. E me sentia igualmente no set à beira-mar, como se então fosse ele meu pai levando-me pela mão ao cinema. Era tudo verdade. Passei a chamar meu mestre Miranda Leão de “Cidadão do Cinema”.

Sexta-feira Santa, 2021

 

o ano em que vivemos em perigo.

quinta-feira, 1 de abril de 2021

nada a comemorar


Hoje, quando se relembra na página infeliz da nossa história os 57 anos do golpe civil-militar de 1964, as décadas de arbitrariedades, de prisões, de “suicídios”, de corpos em valas comuns, sumidos, jogados ao mar, com pais que não tiveram seus filhos de volta e filhos que não conheceram seus pais, com centenas de brasileiros que perderam o passado em cárceres e ainda ecoam em seus ouvidos a ira de seus carrascos, com a tortura como instrumento do Estado, o novo ministro da Defesa deste desgoverno genocida em seu primeiro ato administrativo ao assumir a pasta, publica Ordem do Dia Alusiva à fatídica data.

Não há nada a comemorar, general, sobre o passado e suas manhãs cinzentas, muito menos celebrar em meio à barbárie cotidiana da pandemia, pisando sobre mais de 317 mil cadáveres e 3.688 mortes no intervalo das últimas 24 horas.