quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

o homem que amou o Brasil


“Os escritores, segundo Darcy Ribeiro, dividiam-se em dois grupos: os áulicos e os iracundos. E ele com alegria se alistava no segundo grupo. Os áulicos eram aqueles que viviam à sombra do poder, produzindo ideias verdadeiras, mas irrelevantes, ideias ou planos que não deixavam nenhuma marca no mundo ou se limitavam a ilustrar com exemplos do Hemisfério Sul as teorias importadas do Hemisfério Norte. E os iracundos eram os intelectuais indignados, desafiadores, como o poeta português Gregório de Matos, em cuja obra, segundo Darcy, o Brasil foi brasileiro pela primeira vez.”

- Juca Ferreira, quando ministro da Cultura do governo Lula, na apresentação do livro Meus índios, minha gente, coletânea de alguns textos do grande antropólogo e educador brasileiro.
Organizado pelo jornalista Eric Nepomuceno, os artigos relatam suas impressões sobre o tempo em que conviveu com diversas etnias indígenas no Brasil.
(Uma observação sobre o texto acima: Gregório de Matos, nascido em 1636 em Salvador, Capitania da Baía do Brasil Colonial, era de nacionalidade portuguesa como todo cidadão nascido antes da independência no século XIX).
Sobre esse bravo e indignado iracundo, vale lembrar uma resumidíssima linha do tempo - porque Darcy é imenso - de sua trajetória logo após o golpe militar de 1964, que destituiu o governo João Goulart, quando foi ministro da Educação e ministro-chefe da Casa Civil.
Com seus direitos políticos cassados e obrigado a se exilar em 1968, Darcy estava em Portugal em 1974 quando foi diagnosticado com câncer no pulmão. O governo Geisel autorizou seu retorno ao Brasil para fazer tratamento. “Eles imaginavam que eu voltaria para morrer'', dizia Darcy sobre o desejo dos militares. O antropólogo enfrentou a doença, foi eleito vice-governador do Rio de Janeiro na chapa de Leonel Brizola, em 1982, iniciou seu mandato como senador pelo PDT em 1991, e no ano seguinte imortal na Academia Brasileira de Letras.
Sua vasta bibliografia de mais 30 títulos inclui obras sobre etnologia, educação, antropologia, romances e ensaios, muitas delas traduzidas em diversas línguas, do inglês ao hebraico.
O lento processo canceroso que se agravou nos anos 90 comoveu o país. Darcy sempre altivo, resistente, polêmico que encantava com sua oratória, um ardoroso defensor de suas ideias. Cruzei com ele uma vez pelos corredores do Congresso bradando que o presidente Fernando Henrique tomasse uma decisão digna e não privatizasse a Vale do Rio Doce. Outro momento marcante que vi foi quando, já debilitado, apareceu em uma cadeira de rodas no plenário do Senado, no dia 4 de fevereiro de 1997, para a eleição do presidente da Casa. Com a urna vindo até ele, declarou seu voto ao medebista Iris Rezende, que perdeu para Antonio Carlos Magalhães, então filiado ao DEM.
Uma semana depois da votação, no dia 13, Darcy foi internado no hospital Sarah Kubitschek, em Brasília, apresentando fortes sinais de anemia, dores no corpo e problemas respiratórios. Dois dias depois de fazer exames, pediu que viesse ao seu quarto a diretora da recém-criada Fundação Darcy Ribeiro, escritora Vera Brandt, e a orientou sobre a manutenção do Projeto Caboclo, estudo que desenvolve experiências em biotecnologia, unindo pesca, extrativismo, caça e agricultura junto aos povos da floresta amazônica. Lembrou a ela que também desse uma olhada nos direitos autorais de seus livros. Lançara dois anos antes uma obra que se tornou imprescindível para a compreensão das matrizes culturais e dos mecanismos de formação étnica do Brasil, O povo brasileiro. O sertanejo, o criolo, o caboclo, o caipira, o sulino, tudo ali numa precisa cartografia das classes sociais, livro que, como diz na apresentação, durou 30 anos para concluir.
Nesse mesmo dia, após o encontro com Brandt, chamou a médica que lhe assistia e disse: "Doutora, estou com uma vontade de dar uma aula, a senhora me traz uma criança pra eu dar a aula?“. Horas depois, ali no leito, Darcy deu aula a uma criança de 9 anos. Falou sobre o Brasil, sobre a importância de respeitar todas as culturas. Falou sobre escolas e sambódromos. Era o testamento que ele queria deixar.
Era madrugada do dia 17 de fevereiro quando o antropólogo disse à enfermeira que queria fazer a barba, vestir-se e participar do seminário do Projeto Caboclo que acontecia num hotel da Capital. Diante a lucidez de seu amor pelo Brasil e o delírio de atravessar as limitações de suas forças físicas, a equipe médica o convenceu o contrário. Não tinha condições para tanto. O sol batia de leve na janela do seu quarto, amanhecendo a segunda-feira e a semana ainda de ressaca de carnaval, quando Darcy Ribeiro foi levado às pressas a um leito da UTI. Faleceu poucas horas depois, aos 74 anos. Falência múltipla de órgãos provocada por uma neoplasia maligna da próstata, que gerou metástases ósseas, certificou o boletim do hospital.
Nunca o Brasil foi tão amado por um homem só. Nunca o Brasil foi tão brasileiro na existência de Darcy Ribeiro. Hoje 24 anos que ele não morreu.
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Texto para o meu livro em preparação ©Crônicas do Olhar, a ser lançado pela
Editora Radiadora
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2022 será o ano do seu centenário. O Brasil que segue até lá não é o Brasil que Darcy imaginou. Ele dizia que tinha fracassado em tudo na vida, em alfabetizar as crianças, salvar os índios, fazer uma universidade séria, fazer o Brasil desenvolver-se autonomamente, mas tinha os fracassos como vitória, pois detestaria estar no lugar de quem venceu. Diria o mesmo agora, no ano III da Era Tosca em que vivemos, diante o desgoverno da mais abjeta coisa que surgiu na história da política brasileira: um ser nefasto, uma alma bissexta, uma cara de cão - parafraseando a canção de Gil.
Na imagem ilustrativa para esta postagem, o antropólogo com rosto pintado por índios Kadiwéu, em Matogrosso do Sul, 1947, fotografado por Berta Gleizer Ribeiro, também antropóloga e etnóloga, esposa de Darcy, falecida aos 73 anos, nove meses depois dele.

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