A narrativa cinematográfica ocorre de maneira diametralmente oposta a do teatro. Enquanto na tela a ilusão a 24 quadros por segundos cria uma “realidade” que do espectador se apodera - e até manipula, como observava o roteirista Jean-Claude Carrière -, no palco a realidade tridimensional cria uma ilusão do real para falar do real. No cinema o personagem morre e estamos “convencidos” disso. No teatro, o personagem morre, nos padecemos, mas sabemos que é uma exterioridade – tanto que o ator ao final se levanta para os agradecimentos.
Unir essas duas linguagens no palco, por exemplo, foi, é e sempre será um desafio. A bifurcação das duas narrativas para uma terceira via de descrição cênica praticamente não existe, porque sempre estará ao lado da outra referenciada. Mas uma definição alude ao outro relato dramático, e assim se manifestam merecida e dignamente no mesmo espaço.
O ator Adeilton Lima expressa com perfeição esse diegese no monólogo Glauber Rocha – O profeta do delírio, que estreou ano passado no Espaço Pé Direito, em Brasília. O pensamento e a obra do cineasta são reverenciados com a importância que tem na nossa cultura, trazendo à reflexão a complexidade do ser brasileiro, politicamente, afetivamente. A estética do Cinema Novo, do qual Glauber foi um dos mais fortes ideólogos, é o desenho dramatúrgico que o ator discorre em uma hora de apresentação, sob a cumplicidade da direção afinada de Abaetê Queiroz.
Com textos de Murilo Mendes, Glauber e Luiz Carlos Maciel, o monólogo saúda, honra e consagra o delírio do cineasta com a verdade e lucidez devidas. Adeilton com sua pesquisa apurada, roteiro preciosamente delineado e interpretação anímica, disseca a alma de um dos maiores artistas brasileiros, singular em sua genialidade, autêntico em sua coragem de pensamento, profeta em seu delírio. A concepção poética e teatral de Adeilton Lima coloca esse arrebatamento numa única pulsação e ao mesmo tempo em várias, um preto-e-branco na mesma moldura cênica colorida, como um caleidoscópio agreste. Com cenas de filmes, trechos de programas de televisão, imagens icônicas de ídolos, projetados numa tela ao fundo do palco, o cinema está presente em coexistência narrativa muito mais do que apressada e equivocadamente se possa apontar como recurso ilustrativo. A mensagem da memória do sertão dentro de uma garrafa em direção ao mar. A terra que é do homem, não é de Deus nem do governo. Corpo e alma. Glauber e Brasil. Delírio e razão. Poesia e sertão. Cidade e prosa. Áudio e visual. O teatro que virou cinema que é teatro.
Em nenhum momento estamos diante somente de uma peça teatral: estamos com o coração interativamente no pensamento cinematográfico glauberiano que está no palco. Em nenhum momento estamos somente diante da luz de um filme do cineasta, estamos com o olhar interativamente no delírio do ator que está no palco. Adeilton não interpreta Glauber, não é esse o propósito. Adeilton reflete Glauber, é esse o foco. O ator não encarna o cineasta. O ator ouve o cineasta. E assim os escutamos.
O desenho gráfico que segue a condução do monólogo, moldado pela cenografia discreta de Cyntia Carla e trilha sonora adequada de Jorge Brasil, é de uma precisão onde nada falta nem vaza pelas bordas do palco. Tudo na apresentação é coerente sem ser didático e careta. No início, Adeilton Lima surge no palco saindo de dentro da tela, não como um personagem de filme ou uma rosa púrpura de Vitória da Conquista, mas como um Macunaíma parido do cinema novo brasileiro. E assim como do branco da tela apareceu, volta ao útero dela no final, no momento de uma imagem do cineasta com a boca aberta em um grito. O ator acolhido antropofagicamente pelo cineasta. A volta como ao ventre do cinema. A tela é por onde entra e sai o mundo. O palco é o mundo. Evoé, Glauber!
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