quarta-feira, 13 de abril de 2022

o tempo que virá

 

"Mesmo que não possamos adivinhar o tempo que virá, temos ao menos o direito de imaginar o que queremos que seja".

- Trecho do longo texto reflexivo sobre a utopia, de Eduardo Galeano, publicado no livro Patas arriba: la escuela del mundo al revés, página 191, de 1998. O escritor uruguaio mirava o novo milênio, a virada para os esperados anos 2000.
Galeano escreveu o texto inspirado na fala do amigo Fernando Birri, cineasta argentino. Os dois estavam em uma palestra numa universidade em Cartagenas das Índias, cidade portuária na costa caribenha da Colômbia, quando um estudante perguntou a Birri “para que serve a utopia?”, ao que respondeu com a famosa definição que mescla parábola com aforismo: “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.”
As redes sociais, com sua superficialidade da pressa, creditam e replicam como sendo de Eduardo Galeano. O escritor citou o texto, com a devida menção a Birri, no livro Las palabras andantes, pág. 310, publicado cinco anos antes do citado "Pata arriba" e pouco depois do encontro na universidade.
Em 2011 Galeano deu uma entrevista ao programa Singulars, da TV3, emissora espanhola. Contou a história com o amigo cineasta. E depois, a pedido do apresentador, leu um fragmento do seu texto inspirado que mencionei no início.
A foto abaixo é um flagrante do argentino Ezequiel Scagnetti, feita em 2013. O escritor era um frequentador assíduo do Café Brasilero, um dos bares mais tradicionais do Uruguai, localizado no aprazível bairro da Cidade Velha, em Montevidéu. Assim como Galeano, diversos outros clientes famosos, como Mario Benedetti, Idea Vilariño, José Enrique Rodó, Carlos Gardel, tornaram o local patrimônio cultural. As primeiras páginas do ótimo primeiro romance de Juan Carlos Onetti, El Pozo, de 1939, foram escritas numa das mesas do Café Brasilero.
O bar, que imanta tranquilidade quando se entra, mantém sua decoração original, os desenhos de art nouveau nos artefatos, as cadeiras italianas, o atendimento convidativo a ficar para vários cafés, inclusive um saboroso Café Galeano, incluído no cardápio em homenagem ao frequentador de mais de duas décadas.
Galeano tinha afeto e proximidade com o Brasil, além do bar. Esteve aqui em 2014, exatamente um ano antes de falecer, na manhã de 13 de abril, aos 74 anos, depois de três dias internado na capital uruguaia, vitimado por um câncer no pulmão. Veio para a abertura da 2ª Bienal do Livro de Brasília. Vendo e ouvindo sua cativante palestra, não imaginei que seria a última vez. Nem sempre se imagina o tempo que virá.
Mas nestes tempos de veias abertas em nosso país e vírus ainda no ar, nos damos o direito de imaginar o tempo urgente que queremos que seja.
“Vamos fixar o olhar num ponto além da infâmia para adivinhar outro mundo possível”, diz Galeano noutro trecho do seu texto. Como o olhar dessa foto.

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