No final de 2018 encontrei meu amigo Carlos Emílio Corrêa Lima na praça da Gentilândia, em Fortaleza. Junto a outros amigos sentamos a uma mesa para conversar, tomar umas cervejas. Naquele momento em que ameaçava se instalar o desgoverno do presigárgula, o mais abjeto que ocupa o Palácio do Planalto, decidimos todos não sucumbirmos por algumas horas, “não deixar o cigarro se apagar pela tristeza”, como cantou o eterno Belchior, e que era “preciso entender que a vida quer um jeito de resistir”, como lapidou tão bem o poeta Brandão.
Carlos Emilio, lindamente vulcânico, como sempre não parava de falar. A sua genialidade naturalmente incontrolada. Admirável. Falou da alegria que seu conto O barco, publicado no livro seu Ofos, de 1984, seria adaptado para o cinema, sob direção de Petrus Cariry. Lembrou num misto de comprazimento e nostalgia, o Grupo Siriará de Literatura, que com mais 22 escritores fundamos na alvorada resoluta que se fazia em 1979 em Fortaleza.
De repente, olhou-me doce e fixamente, com um olhar atlântico, medindo naquele curto espaço ao meu lado, a longa distância do tempo e do tema: “Você precisa fazer um filme sobre o Siriará”, e começou a esboçar o roteiro, “a gente começa a ler aqui, aqui mesmo nesta praça – você escolhe uns bons ângulos – os nossos textos... o que acha?”, numa proposta de happening que espantasse a taciturnidade do passado e mantivesse no presente uma “cachoeira das eras” para o futuro, entendi, referindo-se ao título de seu primeiro livro, lançado em 1979 pela Editora Moderna.
Todos à mesa, em conversas paralelas, trincados de copos e garçons repondo cervejas, olhavam os desenhos no ar que ele fazia, literal e compulsivamente escrevendo as cenas. Eu, pasmo, surpreso e de certa forma sem saber como reagir diante a proposta entre o delírio, o encanto e o tentador, disse que ia pensar, sim.
“E você, o que tá escrevendo, algum livro novo?”, perguntou-me num corte repentino, seco. Disse-lhe que estava com um de poesia para lançar no começo de 2019, pela Editora Radiadora. “Qual o título?”. E ao ouvir minha resposta foi direto, deixando-me encabulado como sempre fico com meu banzo sertanejo dos Inhamus: “’Poesia provisória’?! Mas sua poesia não é provisória, é permanente. Já tem prefácio? Eu escrevo o prefácio. Me mande os originais que escrevo. Você é um puta poeta. Eu escrevo o prefácio. Me mande. Mas mande os originais impressos, encadernados, não leio em computador.” Ufa! A oferta foi dita ali, num corrediço de afeto, sem as pausas e as vírgulas que coloquei aqui. Eu que não tinha prefaciador, que ia saltar sem rede proteção, dei um sorriso de alegria e brindamos com mais um copo de cerveja e sorrisos de cumplicidade e sonho.
Acordo neste sábado de começo de abril com a notícia que você faleceu, meu querido amigo. Lembro de imediato da noite que relatei acima. Uma noite que reuniu todas as noites em que nos encontramos nesses mais de 40 anos de convivência. Em Fortaleza, no Rio de Janeiro, em todos os siriarás.
Depois daquela noite na Gentilândia, estivemos mais algumas vezes juntos, na Livraria Lamarca no lançamento do livro que você tão gentil e genialmente prefaciou, em outros eventos e por longos telefonemas quando a pandemia caiu com sua nuvem pesada.
Sua partida repentina, causada por motivos tão inusitados, parece uma página ficcional de um de seus maravilhosos livros. De sua literatura que você ultimamente, e com muita legitimidade, reclamava do descaso que sentia por não conseguir publicar. A tragédia da sobrevivência em todos os sentidos. Você não morreu da causa tão banal de uma infecção dentária que evoluiu para uma sepsemia, você morreu da infecção generalizada oriunda do Brasil em que vivemos.
Ontem à noite, depois que soube que seu estado de saúde era “estável, mas grave”, fui deitar precisando ser esperançoso. Comecei a ler o novo livro de Mia Couto, O mapeador de ausências, e a cada página você não saía de minha cabeça, confuso entre lembranças de nossa vivência literária, de nossas conversas, e a volta ao passado e à infância do personagem Diogo Santiago, alter ego no romance do escritor moçambicano, que tem também a sua idade. As coisas como convergindo aos traços das estranhas coincidências.
Mapeio a sua ausência nessa cachoeira de saudades, caro amigo.
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