sábado, 30 de abril de 2022

o termo saudade


Saudade, essa bela palavra substantiva feminina, essa expressão tão única na língua da última flor do Lácio, essa raiz em nosso coração do latim “solitatem” que desfolha no significado solidão, esse sentimento de nostalgia, essa ‘sodade’ a caminho de São Tomé na voz de Cesária Évora, essa delimitação do vazio que Olavo Bilac dizia que “é a presença dos ausentes”.

E assim,
"saudade" em Camões
é
“te extraño” em Cervantes,
“mi mancate” em Alighieri‎,
“I miss you” em Shakespeare,
“tu me manques” em Baudelaire,
“sehnsucht” em Goethe,
“tocka” em Dostoiévski,
“koishii” em Mishima,
“wo shiang ni” em Yu Xiang,
“brakujący” em Szymborska...
Em cearês saudade é Belchior: cinco anos hoje que na parede da memória é o quadro que dói mais...

quinta-feira, 28 de abril de 2022

mais saudade


Com o violão ainda chorando a partida de Tarcísio Sardinha, a cultura cearense ficou ontem sem o escritor Natalício Barroso, e hoje a saudade tem mais um nome: Luizinho Duarte, baterista fundador da Maribanda.

Oh, "Indesejada das gentes", pisa devagar. Tu, com essa mania infalível, trazendo "a noite com seus sortilégios", como pranteou Manuel Bandeira, nos deixes mais tempo no garimpo da vida, e possamos começar cada dia como começa o romance de Saramago, As intermitências da morte: "No dia seguinte ninguém morreu."

terça-feira, 26 de abril de 2022

tudo a ver


A inauguração da famigerada TV Globo, há 57 anos, foi precedida por vários testes de transmissão.

No dia 31 de março de 1965, quando o golpe militar completava um ano, todas as emissoras deveriam exibir um pronunciamento em cadeia nacional em comemoração à fatídica data.
As dificuldades foram muitas para que a novata e manipuladora Globo estreasse no dia combinado, 5 de abril daquele ano. A data precisou ser adiada, para que tudo saísse tecnicamente perfeito.
A dopante TV Globo estreou oficialmente às 11h de 26 de abril de 1965, ao som do Hino Nacional, enaltecendo o governo estabelecido.
Como se vê, sempre teve tudo a ver mesmo.

sábado, 23 de abril de 2022

o Santo Guerreiro

 

"Eu estou feliz porque eu também / sou da sua companhia..."

- Jorge Benjor em Jorge de Capadócia, gravada no disco Solta o pavão, 1975.

Imagem de São Jorge em azulejo no Morro da Providência, Gamboa, RJ, 2011.
Autor: ® Cesar DuarteA

quinta-feira, 21 de abril de 2022

Brasília, 62 anos


 foto ©René Burri / Magnum Photos, 1960


Quando vim, se é que vim
de algum para outro lugar,
o mundo girava, alheio
à minha baça pessoa,
e no seu giro entrevi
que não se vai nem se volta
de sítio algum a nenhum.
(...)
Quando vim da minha terra,
não vim, perdi-me no espaço,
na ilusão de ter saído.
- Versos de A ilusão do migrante, de Carlos Drummond de Andrade, publicado em Farewell, livro póstumo, 1996.

terça-feira, 19 de abril de 2022

Bandeira do Brasil


foto Arquivo Diário de Pernambuco 

“O melhor da pátria, quem sabe, são os poetas, a quem se fecham todas as portas, para que eles sejam mais livres e vejam mais longe. Sonham Pasárgada.”

Otto Lara Resende em uma crônica sobre Manuel Bandeira, de 1976, publicada no livro póstumo O príncipe e o sabiá, 1994.
O poeta pernambucano foi da geração de 1922 do Modernismo, mas teve desavenças com Oswald de Andrade. Recusou-se a assinar o Manifesto da Poesia Pau-Brasil e chegou a escrever um artigo detonando. Oswald, notório piadista, arriscava perder um amigo, mas não a oportunidade de uma brincadeira. E no embate entre os gênios, teria dito que “um poeta é sempre bem-vindo, e mais bem-vindo se é Manuel, Bandeira do Brasil”. Chiste ou não, já saudara com distinção o que Lara Resende escreveu com louvor em sua crônica.
Bandeira tinha 82 anos quando faleceu em 1968, dezesseis anos depois que escreveu Consoada, um poema que é todo corpo-narrativo eufemístico sobre a morte. O mais longe que vai é denominá-la maiusculamente de “a Indesejada”. Manteve a reverência pessoal na pronúncia da recusa humana, pois sabe-se lá como é do outro lado. O eu-lírico aceita os sortilégios da dita cuja, e sereno a trata como uma refeição leve, natalina, como define o título. Mas “a iniludível”, por ser pontual sem data marcada, veio-lhe dura, abatendo-lhe com uma hemorragia gástrica. Mesmo assim, não teve medo, o poeta sorriu uma carinhosa e consoante evocação, “o meu dia foi bom, pode a noite descer”.
136 anos hoje de nascimento do poeta que coroou a literatura brasileira com o itinerário rumo à Pasárgada. Mais longe, mais livre.

segunda-feira, 18 de abril de 2022

ainda não é poesia


Carlos Drummond de Andrade não entendia como alguns poetas tornavam um poema definitivo logo na primeira escrita, impulsionado pela inspiração, sem conviver mais com os versos, com a ideia, com a construção.

Um poema precisa de um tempo para moldar um corpo, o espaço necessário para o abstrato recém-chegado nele se estruturar e permanecer vivo.
Em Procura da poesia (trechos acima), uma espécie de metapoema, Drummond questiona o eixo fundamental do poeta sobre a criação. A narrativa em metalinguagem, aparentemente “professoral”, é uma reflexão sobre o fazer-poético, onde o eu-lírico não pode se precipitar na pessoalidade, no peremptório conduzido pela ingenuidade dos sentimentos. A matéria-prima é a palavra, e esta, não lapidada, em “estado de dicionário”, corre o risco de um sentido apenas denotativo, frio, sem graça e encanto - efêmero.
Publicado em 1945 em A Rosa do Povo, é um dos mais belos poemas da língua portuguesa, significativo na obra do autor e do modernismo brasileiro, por sua essência de cartilha poética, e, sobretudo, confessional, ao contrário de imperativo como se possa deduzir.
Imagino a perplexidade de Drummond vendo hoje o que se "comete" como poesia nas redes sociais.

domingo, 17 de abril de 2022

a ressurreição de uma obra

 Na fé cristã, a Páscoa é a comemoração do fundamento e da crença que Jesus morreu e ressuscitou no terceiro dia.

A Igreja Católica, lá nos primórdios, preocupada em tornar o Cristianismo mais atraente para os ditos não-cristãos, misturou a ressurreição de Jesus com rituais de fertilidade que ocorriam na primavera, e ovos e coelhos simbolizam a fecundidade, multiplicação, abundância.

A reprodução acima é da belíssima obra do pintor renascentista Rafael Sanzio, Ressurreição de Cristo, criada na passagem de um século para outro, entre 1499 e 1502, no nascimento de um novo tempo.
É curioso como na grandiosidade de uma peça estejam marcados em suas cores, o símbolo, a história e significados de transformação, de mudança, de renascimento.
Um terremoto na cidade Tolentino, Itália, por volta do final do século 18, atingiu a Basílica de São Nicolau, onde estava o quadro, por detrás do altar. Foi recuperado, renascido, elevado aos céus para a humanidade. A obra ressuscitada.
Em 1947, o historiador e colecionador Pietro Maria Bardi criou, junto com o jornalista Assis Chateaubriand, o Museu de Arte Moderna de São Paulo. Bardi, que nasceu na mudança de um século, 1900, e faleceu na passagem de outro, 1999 – mais uma vez, o renascimento - foi diretor da instituição por dedicados 45 anos. Em 1954 adquiriu, através de leilão, o quadro de Rafael Sanzio para o Museu.
O belo e magnetizante óleo sobre madeira, de pouco mais de 50 cm de dimensão, exposto em cavalete de cristal, é a única obra do pintor italiano não somente no Brasil, mas em todo o hemisfério sul. Outra vez renascida em nova casa.
Rafael Sanzio nasceu em um 6 de abril, e na simetria e renascimento do tempo, faleceu também em um 6 de abril, de 1520, aos 37 anos. Cinco séculos e dois anos neste mês de sua passagem. O quadro está ali na parede do Museu na capital paulista, sob a estranheza destes tempos de vírus ainda no ar, de verme ainda no planalto central do país.
Ressurreição de Cristo exprime mudança, renascimento, transcurso no tempo e no espaço. Que a fertilidade da fé ilumine e multiplique na prática a sabedoria na cabeça dos homens. Precisamos urgentemente renascer deste caos sanitário e político em que vivemos.

quarta-feira, 13 de abril de 2022

o tempo que virá

 

"Mesmo que não possamos adivinhar o tempo que virá, temos ao menos o direito de imaginar o que queremos que seja".

- Trecho do longo texto reflexivo sobre a utopia, de Eduardo Galeano, publicado no livro Patas arriba: la escuela del mundo al revés, página 191, de 1998. O escritor uruguaio mirava o novo milênio, a virada para os esperados anos 2000.
Galeano escreveu o texto inspirado na fala do amigo Fernando Birri, cineasta argentino. Os dois estavam em uma palestra numa universidade em Cartagenas das Índias, cidade portuária na costa caribenha da Colômbia, quando um estudante perguntou a Birri “para que serve a utopia?”, ao que respondeu com a famosa definição que mescla parábola com aforismo: “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.”
As redes sociais, com sua superficialidade da pressa, creditam e replicam como sendo de Eduardo Galeano. O escritor citou o texto, com a devida menção a Birri, no livro Las palabras andantes, pág. 310, publicado cinco anos antes do citado "Pata arriba" e pouco depois do encontro na universidade.
Em 2011 Galeano deu uma entrevista ao programa Singulars, da TV3, emissora espanhola. Contou a história com o amigo cineasta. E depois, a pedido do apresentador, leu um fragmento do seu texto inspirado que mencionei no início.
A foto abaixo é um flagrante do argentino Ezequiel Scagnetti, feita em 2013. O escritor era um frequentador assíduo do Café Brasilero, um dos bares mais tradicionais do Uruguai, localizado no aprazível bairro da Cidade Velha, em Montevidéu. Assim como Galeano, diversos outros clientes famosos, como Mario Benedetti, Idea Vilariño, José Enrique Rodó, Carlos Gardel, tornaram o local patrimônio cultural. As primeiras páginas do ótimo primeiro romance de Juan Carlos Onetti, El Pozo, de 1939, foram escritas numa das mesas do Café Brasilero.
O bar, que imanta tranquilidade quando se entra, mantém sua decoração original, os desenhos de art nouveau nos artefatos, as cadeiras italianas, o atendimento convidativo a ficar para vários cafés, inclusive um saboroso Café Galeano, incluído no cardápio em homenagem ao frequentador de mais de duas décadas.
Galeano tinha afeto e proximidade com o Brasil, além do bar. Esteve aqui em 2014, exatamente um ano antes de falecer, na manhã de 13 de abril, aos 74 anos, depois de três dias internado na capital uruguaia, vitimado por um câncer no pulmão. Veio para a abertura da 2ª Bienal do Livro de Brasília. Vendo e ouvindo sua cativante palestra, não imaginei que seria a última vez. Nem sempre se imagina o tempo que virá.
Mas nestes tempos de veias abertas em nosso país e vírus ainda no ar, nos damos o direito de imaginar o tempo urgente que queremos que seja.
“Vamos fixar o olhar num ponto além da infâmia para adivinhar outro mundo possível”, diz Galeano noutro trecho do seu texto. Como o olhar dessa foto.

domingo, 10 de abril de 2022

domingo com Riobaldo

 

foto Cassandra Cury

“A noite que houve, em que eu, deitado, confesso, não dormia; com dura mão sofreei meus ímpetos, minha força esperdiçada, de tudo prostei. Ao que veio uma ânsia. Agora eu queria levar meu corpo debaixo da cachoeira branca dum riacho, vestir terno novo, sair de tudo que eu era, para entrar num destino melhor.”

Manhã de domingo, caminho sob o sol seco do cerrado. Chego ao verde de Minas. Bato à porta da página 296 de Grandes Sertões: Veredas, do imenso Guimarães Rosa e revisito Riobaldo. Isolado entre os jagunços, não se sente um deles. Está lá pelo amor que Diadorim lhe despertou. Riobaldo sente desconforto no bando. Sente falta do lado lá de fora, de música, das pessoas, de festas. “Eu queria era um divertimento de alívio”, diz ele para ele mesmo no isolamento, diz ele para mim. Riobaldo olha-me compartilhando o sentimento, como cúmplice do que também sinto. Pela fresta da janela ele estende os olhos na vastidão lá fora. Sofreia os ímpetos e espera. Viro a página e ele baixa o rosto acompanhando meu gesto e meu olhar. “Esperei a escuridão passar. Mas quando o dia clareou de todo, eu estava diante do buritizal”, diz-me.
Assim, saído há meses e aos poucos do isolamento, esperei a escuridão passar, pelo amor de Diadorim da vida em mim. Buriti é uma planta da arecácea também do planalto central. Organizei o movimento do meu silêncio para estar diante do buritizal de Rosa que se alonga quando o dia com mais segurança clareasse.
Sento-me ao lado de Riobaldo diante o buritizal. Ele olha para o céu, ele olha adiante. “Ainda há algumas nuvens cinzas e jagunços nos arredores do palácio, no planalto. Cuidemo-nos”, alerta. É preciso cautela para entrar num destino melhor.

domingo, 3 de abril de 2022

a alegoria dos roedores


Ratos, temerosos roedores, com seus músculos miúdos, olhinhos amedrontadores luzindo nas trevas dos esgotos... invadem as casas, as cidades, o país. Numa longe localidade, restaurada do nada, eles promovem o VII Seminário dos Roedores, evento onde reúne os burocratas, sob a coordenação do Secretário do Bem-Estar Público e Privado, sempre ladeado do seu Chefe de Relações Públicas.

Aquele país cada vez mais atravancado pelos mecanismos, os expedientes de papelocracia que invertem a proporção dos roedores em relação ao número de homens: cem por um.

Esse é o resumo de Seminário dos ratos, um dos quinze magníficos contos no livro homônimo de Lygia Fagundes Telles, lançado em 1977.
Com uma narrativa alegórica que mescla realidade e fantasia, o fantástico e a lógica racional, a escritora apresenta uma reflexão política e social do que vivemos em períodos de contenção de liberdade, de domínio pela força, de aniquilamento dos nossos direitos pela mentira e adestramento. O livro foi escrito em uma das décadas mais cruéis da ditadura militar no Brasil, a era Geisel herdada de Médici e entregue a Figueiredo.
Todos os textos, na simbologia do horror e do asco, exprimem a distopia, a perplexidade, o poder na mão dos homens sem alma.
Tenho a primeira edição e a de 1984, com outra capa, da Nova Fronteira. A de 1977, da José Olympio Editora, é mais impactante e ilustra melhor o contéudo alegórico: dois ratos erguem estandartes com bandeiras, à frente de uma figura estilizada, uma espécie de monstro-rei. A imagem sugere que será tanto protegido quanto retirado do trono pelos roedores. É da natureza a vilania de quem se merece. E no conto-título, Lygia coloca como epígrafe os versos finais de Edifício Esplendor, de Carlos Drummond de Andrade, “– Que século, meu Deus! diziam os ratos. / E começavam a roer o edifício.”, um dos doze poemas publicados no pequeno-grande livro José, o quarto do itabirano, 1942.
A abertura do conto, o conto, o livro, tudo é como um aplicativo atualizado no Brasil de agora, nestes tempos pandêmicos com a praga da era do pandemônio, a peste no trono do planalto central e seus ratos seguidores infectando as casas, as cidades, o país.
Lygia Fagundes Telles, que no próximo dia 19 completaria 99 anos, faleceu hoje. Ainda mapeio e choro a ausência do meu amigo e genial escritor Carlos Emílio Corrêa Lima, que partiu ontem aos 66 anos, vitimado pela infecção generalizada oriunda do Brasil em que vivemos.
Que século, meu Deus! - diremos os homens.

sábado, 2 de abril de 2022

a cachoeira das eras


No final de 2018 encontrei meu amigo Carlos Emílio Corrêa Lima na praça da Gentilândia, em Fortaleza. Junto a outros amigos sentamos a uma mesa para conversar, tomar umas cervejas. Naquele momento em que ameaçava se instalar o desgoverno do presigárgula, o mais abjeto que ocupa o Palácio do Planalto, decidimos todos não sucumbirmos por algumas horas, “não deixar o cigarro se apagar pela tristeza”, como cantou o eterno Belchior, e que era “preciso entender que a vida quer um jeito de resistir”, como lapidou tão bem o poeta Brandão.

Carlos Emilio, lindamente vulcânico, como sempre não parava de falar. A sua genialidade naturalmente incontrolada. Admirável. Falou da alegria que seu conto O barco, publicado no livro seu Ofos, de 1984, seria adaptado para o cinema, sob direção de Petrus Cariry. Lembrou num misto de comprazimento e nostalgia, o Grupo Siriará de Literatura, que com mais 22 escritores fundamos na alvorada resoluta que se fazia em 1979 em Fortaleza.
De repente, olhou-me doce e fixamente, com um olhar atlântico, medindo naquele curto espaço ao meu lado, a longa distância do tempo e do tema: “Você precisa fazer um filme sobre o Siriará”, e começou a esboçar o roteiro, “a gente começa a ler aqui, aqui mesmo nesta praça – você escolhe uns bons ângulos – os nossos textos... o que acha?”, numa proposta de happening que espantasse a taciturnidade do passado e mantivesse no presente uma “cachoeira das eras” para o futuro, entendi, referindo-se ao título de seu primeiro livro, lançado em 1979 pela Editora Moderna.
Todos à mesa, em conversas paralelas, trincados de copos e garçons repondo cervejas, olhavam os desenhos no ar que ele fazia, literal e compulsivamente escrevendo as cenas. Eu, pasmo, surpreso e de certa forma sem saber como reagir diante a proposta entre o delírio, o encanto e o tentador, disse que ia pensar, sim.
“E você, o que tá escrevendo, algum livro novo?”, perguntou-me num corte repentino, seco. Disse-lhe que estava com um de poesia para lançar no começo de 2019, pela Editora Radiadora. “Qual o título?”. E ao ouvir minha resposta foi direto, deixando-me encabulado como sempre fico com meu banzo sertanejo dos Inhamus: “’Poesia provisória’?! Mas sua poesia não é provisória, é permanente. Já tem prefácio? Eu escrevo o prefácio. Me mande os originais que escrevo. Você é um puta poeta. Eu escrevo o prefácio. Me mande. Mas mande os originais impressos, encadernados, não leio em computador.” Ufa! A oferta foi dita ali, num corrediço de afeto, sem as pausas e as vírgulas que coloquei aqui. Eu que não tinha prefaciador, que ia saltar sem rede proteção, dei um sorriso de alegria e brindamos com mais um copo de cerveja e sorrisos de cumplicidade e sonho.
Acordo neste sábado de começo de abril com a notícia que você faleceu, meu querido amigo. Lembro de imediato da noite que relatei acima. Uma noite que reuniu todas as noites em que nos encontramos nesses mais de 40 anos de convivência. Em Fortaleza, no Rio de Janeiro, em todos os siriarás.
Depois daquela noite na Gentilândia, estivemos mais algumas vezes juntos, na Livraria Lamarca no lançamento do livro que você tão gentil e genialmente prefaciou, em outros eventos e por longos telefonemas quando a pandemia caiu com sua nuvem pesada.

Sua partida repentina, causada por motivos tão inusitados, parece uma página ficcional de um de seus maravilhosos livros. De sua literatura que você ultimamente, e com muita legitimidade, reclamava do descaso que sentia por não conseguir publicar. A tragédia da sobrevivência em todos os sentidos. Você não morreu da causa tão banal de uma infecção dentária que evoluiu para uma sepsemia, você morreu da infecção generalizada oriunda do Brasil em que vivemos.
Ontem à noite, depois que soube que seu estado de saúde era “estável, mas grave”, fui deitar precisando ser esperançoso. Comecei a ler o novo livro de Mia Couto, O mapeador de ausências, e a cada página você não saía de minha cabeça, confuso entre lembranças de nossa vivência literária, de nossas conversas, e a volta ao passado e à infância do personagem Diogo Santiago, alter ego no romance do escritor moçambicano, que tem também a sua idade. As coisas como convergindo aos traços das estranhas coincidências.
Mapeio a sua ausência nessa cachoeira de saudades, caro amigo.

sexta-feira, 1 de abril de 2022

canções permanentes de uma poesia provisória

 

Não sou um letrista para canções. Sou apenas um poeta aprendiz e escrevo poemas para “dar coerência aos sonhos”, como disse Pirandello. Um trovador meramente provisório, de versos quebrados pelo sol que batia nos Inhamus e salpicou no meio da praia de Fortaleza, onde o meu sertão virou mar.

A poesia tem sua musicalidade. Mas quando um poema, já com seu corpo definido, ganha uma melodia, ele se engrandece, ganha uma alma, uma outra dimensão. O poema se duplica. E se triplica na audição do outro.
A melodia está lá, na extensão de cada verso, no fôlego de cada palavra, na rima de uma emoção. O poeta não se dá conta. A escrita é uma canção embutida. Vem o músico e encontra as notas, porque só a ele cabe o sol que ilumina dó-ré-mi-fá-lá-si.
Depois de Ricardo Augusto, que musicou Ventania, do meu primeiro livro, Roteiro dos pássaros, gravado por Mona Gadelha em 2013 em seu disco Cidade blues rock nas ruas, e desse mesmo livro também Calé Alencar, Bernardo Neto e Berto Mendes colocaram melodias em outros poemas, vários compositores cearenses desenharam músicas nos meus versos.
Do livro Poesia provisória, lançado em 2019 pela Editora Radiadora, os parceiros chegaram, sentando permanentes ao meu lado, numa espécie de sarau particular e cumplicidade poética, lapidando as características: Parahyba de Medeiros, Alan Morais, Zé Rodrigues, Charles Wellington, Gildomar Marinho, Evaristo Filho Freitas, Eugênio Leandro, o goiano-brasiliense Rubi Rubi e agora o 'caba' bom do Cariri Pachelly Jamacaru, que deu ao poema Esconde-esconde, um timbre de blues com pegada que faz do outro lado um riscado melódico com o jeito de Johnny Alf dizer ao piano “meu bemmm...”.
Folheio as páginas de minha poesia provisória do livro e me espanto com quase 20 poemas musicados. É sempre uma saudável perplexidade o encontro com a outra margem do rio.
E saber que Esconde-esconde, uns versos inspirados em brincadeiras à meia-luz e por inteiro numa alcova, quando são permanentes musas quem eternizamos no bem-querer, se tornaram letras de uma canção, é gratificante, muito. Há dias que a vida é esperança.
O vídeo abaixo está no canal no YouTube, do menestrel Pachelli Jamacaru, cheio de outras preciosidades.