domingo, 3 de outubro de 2021

domingo despedaçado


- Guarda rancor de mim?
- Não.
- Por que?
- Ele se transformou.
- Em quê?
- Numa lembrança imóvel.
- Você sempre inventa expressões que não compreendo.
- Algumas lembranças se movem e nos ajudam a viver. Outras ficam estagnadas. São muito poderosas. Se não as puser em movimento de novo, elas o perturbam.

Diálogo entre os personagens Anabel e Mathieur no filme espanhol O vazio do domingo (La enfermedad del domingo), de Ramón Salazar, 2019.
Com argumento e roteiro do diretor, numa narrativa densa e poética, o filme discorre um processo, quase minimalista, de catarse familiar no reencontro da filha de 30 anos abandonada pela mãe aos 8 anos de idade, interpretadas, respectivamente, por Barbara Lennie e Susi Sánchez. As atuações precisas das atrizes dão à narrativa a forma mais completa da força e fragilidade de duas mulheres, ligadas por um passado revisitado, para desfazer lembranças estagnadas que as perturbam.
O diálogo acima é entre a mãe e o pai, separados, também numa cena de reencontro depois de um hiato
dolorido de vários anos. Mas a fala de cada um aplica-se fielmente ao conflito e sentimentos represados das duas mulheres, mãe e filha, de dois corações que precisavam irrigar sangue do passado para o desfecho, surpreendente e chocante, que filme apresenta.
O cinema reflete num enredo ficcional verdades que existem em cada um de nós. A arte inventa expressões, dá movimento às lembranças para que nos ajude a viver.

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