quinta-feira, 2 de setembro de 2021

o chão sagrado da feira


foto Rubens Venâncio

Nos dias 15, 16, 17 e 18 de março de 1979, frequentei todas as noites o Theatro José de Alencar, em Fortaleza, ouvindo os sons, vendo as imagens, acompanhando o movimento, no meio da gente do Massafeira Livre, evento criado por Ednardo e Augusto Pontes, que reuniu mais de 200 pessoas da cena artística, cultural e musical do estado.

Cantores, compositores, artistas plásticos, poetas, jornalistas, cineastas, fotógrafos, atores, dançarinos, artesãos... gente por todos os lados, palcos, corredores e jardins do centenário teatro, apresentando suas músicas, expondo seus trabalhos, conversando, abraçando-se, falando da vida.
Iniciando na fotografia, eu pendurava minhas cópias em preto e branco nos barbantes entre duas colunas bem ao estilo dos livrinhos de cordéis. Eram fotos que eu chamava de “artísticas”: flagrantes das ruas, pessoas que iam, umas que ficavam, outras que não voltavam, paisagens que me olhavam, e também de shows de cantores que me encantavam, inclusive dos que se apresentaram no palco naquelas quatro intensas noites. Quieto no meu canto naquele espaço aberto e saudavelmente barulhento, eu era tão tímido que era invisível.
Do meu anonimato e acanhamento de menino sertanejo dos Inhamuns, observava tudo e todos. Mais do que o obturador da minha simples Olympus Pen de lente fixa 50mm, o tato de minhas retinas captava a paisagem humana, a efervescência cultural que acontecia no teatro.
José de Alencar escritor foi, a partir dali, além da trilogia indianista Ubirajara, Iracema e O Guarani que li no curso Científico do Colégio João Pontes. Na Massafeira passei a ver naquela multidão diária os perfis femininos de Lucíola, de Emília Duarte de Diva, de Carolina de A viuvinha, os regionalismos pra lá de Messejana de O tronco Ipê, Til e O gaúcho, e tudo mais que a arte proporciona na imaginação o horizonte de quem escreve, lê, compõe, canta, pinta, borda, dança, atua... O Theatro José de Alencar, na alma do romancista que o nome estampa, acolheu livremente uma nova geração de artistas de sua cidade e sertão.
No largo e profundo palco do Theatro, da música do Cariri ao rock e blues da cidade, a Massafeira apresentou uma legião de personagens que o romancista Alencar aplaudiria sentado no camarote lá da torre do terceiro andar do teatro que o homenageia desde quando foi inaugurado em 1910.
Nesse mês de agosto voltei ao Theatro 42 anos depois para gravar algumas entrevistas para o documentário Pessoal do Ceará - Lado A Lado B. O encabulado rapaz das fotos no varal adentra agora o sacro local com uma câmera 4K e claquete. O anônimo fotógrafo disfarça a timidez no cineasta e dar ação a Ednardo, Francisco Casaverde, Pachelly Jamacaru, Calé Alencar, Chico Pio, Jorge Mello e Vicente Lopes, artistas que ali se apresentaram. Cenas e encontros que jamais imaginei naqueles verdes anos. Ídolos do circuito afetivo da minha aldeia agora imprimem na película digital do meu filme suas memórias, histórias, falas e pausas de uma saudade analógica do 35mm das fotografias, do 16mm e super-8 dos filmes, dos ecos de suas canções captadas na mesa de som nas águas de março de 1979. Nada tão bom como uma década depois da outra e uma Massafeira no meio do Theatro.
A equipe do documentário agradece a afetuosa receptividade da coordenação do Theatro José de Alencar, abrindo as salas e os sorrisos: o diretor Pedro Domingues, Socorro Amarante, Nilda Maciel, Francisco Diniz e Ineuma Lima.
As locações que foram escolhidas para as entrevistas em 2021 fundem-se no mesmo chão sagrado dos quatro dias de 1979.

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