terça-feira, 28 de setembro de 2021

de Jara a Waters

 

Em 1971 o cantor, compositor e ativista político chileno Victor Jara compôs a bela canção pacifista El derecho de vivir en paz, gravada em seu disco homônimo.

Composta em plena Guerra do Vietnã, a letra fala que “Nenhum canhão apagará / o sulco de teu arrozal / o direito de viver em paz”, e se a “Indochina é o lugar / além do mar largo / onde estouram a flor / com genocídio e Napalm”, o poeta com o coração olha para a noite e diz que “A Lua é uma explosão / que funde todo o clamor / o direito de viver em paz”.
Victor Jara tinha 40 anos de idade em 1973 quando as tropas de Pinochet invadiram o Palácio de La Moneda, assassinaram o presidente Salvador Allende e o Chile mergulhou por 17 anos numa das mais cruéis ditaduras da América Latina.
Cinco dias depois o cantor foi preso, torturado, fuzilado e o corpo jogado na rua de uma favela de Santiago.
Hoje 89 anos de nascimento de Victor Jara. Seu hino de paz foi relembrado ano passado por outro pacifista, o cantor e compositor Roger Waters. Dentro de seu estúdio caseiro, em Nova Iorque, em isolamento social pelo que o mundo está passando, o ex-Pink Floyd fez uma versão da canção de Jara, intitulada Ratos, citando na letra algumas almas sebosas que estão no poder, do atual presidente chileno, Sebastian Piñero, ao então Trump, passando pelo pústula genocida que ocupa o Palácio do Planalto, sem esquecer a Guido Fawkes, site da extrema direita inglesa, e o premiê indiano Narendra Modi. “Todos os ratos malditos têm o mesmo cheiro”, diz Waters na canção adaptada aos dias sombrios que vivemos, de vírus e pestes de carne e osso.
Acima, Roger Waters revivendo Victor Jara. Aos 2 minutos e 20 segundos, quando cita o abjeto daqui, dá uma merecida cusparada.

segunda-feira, 27 de setembro de 2021

então eu escuto


A cantora, compositora, instrumentista e escritora carioca Luli é uma das mais autênticas artistas da música brasileira. Autenticidade que se manifestava pelo comportamento, pensamento e escolha de vida pessoal, em plena década de 70, quando os costumes mais avançados e libertadores eram vistos de viés pelo conservadorismo de uma elite afinada com o regime militar vigente.

Luli, que se destacou na dupla com Lucina, gravando ótimos discos independentes e conceituais, não só rompeu padrões de pressões de gravadoras e amarras estéticas da música, como ousou na prática o ideário da contracultura, ao viverem um casamento a três com o fotógrafo Luiz Fernando Borges (falecido em 1990) e os quatro filhos da relação.
É autora de mais de 800 canções, entre elas Fala e O vira, compostas com João Ricardo, e cristalizadas como mais tocadas do clássico disco do Secos & Molhados, 1973. Aliás, Ney Matogrosso tornou-se um intérprete particularmente emblemático, identificado com as canções da dupla. Pedra de rio, do seu primeiro disco solo, Água do Céu – Pássaro, de 1975, e Bandolero, do álbum Feitiço, 1978, dizem bem dessa alquimia entre intérprete e compositoras.
Em 2015 foi lançado Yorimatã, filme documentário biográfico em longa-metragem sobre as cantoras, dirigido por Rafael Saar, selecionado em mais de vinte festivais e premiado em cinco.
A natureza do mar, dos rios e das matas, é a matéria-prima, orgânica, das músicas de Luli, ou Luhli, como passou assinar nos anos 90. O sítio perto do mar em Filgueiras, em Mangaratiba, RJ, abrigou por muito tempo o coração e as composições da artista.
Luhli partiu para outros sítios no final da tarde do dia 26 de setembro de 2018, aos 73 anos, depois de internada por um mês, tratando-se de um quadro crônico de asma complicado por pneumonia.
Abaixo, uma das mais belas homenagens que o cinema fez a uma canção e sua autoria: o ator pernambucano Irandhir Santos interpreta, coreografa, dubla Ney Matogrosso em Fala, numa sequência do ótimo A história da eternidade, que Camilo Cavalcante dirigiu em 2014.
Na cena, as atrizes paraibanas Marcélia Cartaxo e Zezita Matos e a cearense Débora Ingrid.


domingo, 26 de setembro de 2021

o ovo rompeu a casca

 

...e, portanto, pensar nele como um ovo de serpente, que incubado, deverá, em sua espécie crescer perigoso; e matá-lo na casca.

Fala de Brutus, na peça Julio Cesar, de Shakespeare, escrita em meados do século 16.
A trama gira em torno da conspiração contra o personagem título, que aparece somente em três cenas. Com perfil de psicodrama, patriotismo, amizade e traição, a peça é uma atualíssima reflexão sobre sucessão de liderança e poder, despertando preocupante hipótese de guerra civil .
Da fala de Brutus, o cineasta Ingmar Bergman escolheu o termo “ovo de serpente” para o título de seu único filme de coprodução Alemanha e Estados Unidos, rodado em 1977, fora de seu país, pois o diretor estava exilado em território alemão por problemas com o fisco sueco.
Ambientado logo após a I Guerra Mundial, o filme é terrivelmente premonitório em seu enredo, ao contar a trajetória de um judeu norte-americano em uma Berlim dos anos 20, arrasada em pobreza e violência, com o caos econômico e político, e um horizonte apavorante nos escombros do que viria na próxima guerra.
O título é apropriadíssimo e apavorante, Das schlangenei”/The serpent’s egg, pois
trata em toda a narrativa dos contornos do nascente movimento fascista e surgimento do nazismo.
De Skakespeare a Bergman, o ovo incubado rompeu a casca e continua apavorando a humanidade. Por aqui no lado debaixo do Equador, no Ano III da Era Bozolítica, o ainda pandemônio no meio da pandemia que ainda não acabou.

sábado, 25 de setembro de 2021

a letra de uma canção


“Venancio, só não me peça para cantar. Estou com soluços e não vou conseguir, não vai ficar bom”, pediu-me o cantor e compositor Wagner Costa ao me receber quinta-feira passada em sua casa no bairro Cidade 2000, em Fortaleza.
Na etapa de edição do documentário Pessoal do Ceará - Lado A Lado B, a produção agendou algumas entrevistas que não foram possíveis no mês de agosto. Wagner Costa, no caso, estava internado, cuidando da saúde, num processo a que periodicamente recorre.
Tinha 17 anos e assinava Tazo Costa quando participou dos quatro dias de som, imagem, movimento e gente que fizeram o evento Massafeira Livre em março de 1979 no Theatro José de Alencar. Sua beleza física e voz potente encantavam no palco ao interpretar sua canção Isopor, a que eu esperava ver, ouvir e gravar na entrevista 42 anos depois.
Durante uma hora conversamos com as câmeras ligadas, o microfone lapela aceso no peito, a claquete recortando a realidade. Oscilando entre a surpreendente reflexão e o delírio cogitativo, Tazo considera, olhando para trás, que “a Massafeira foi um despontar de ideias, de política, de revolução, e de uma geração que unificava, pelo Ednardo, a música do Ceará”, pisa no chão do presente com a convicção de que “não estou com plano de fazer show, não estou com plano de ir pra estúdio, a saúde já não está boa”, vislumbra um futuro onde “na minha cabeça, atualmente, está mais para o mundo do céu do que do sucesso”.
E olhando-me com o mesmo sorriso adolescente nos olhos que conheci no palco e nos bastidores da Massafeira, disse que não sente mais frustração, que a gravação de sua música no disco coletivo de 1980 “é o meu registro, a música de sucesso do meu coração, ela não aconteceu, mas é a música que representou toda a minha trajetória."
Não cantou, mas quis ao final dizer a letra da canção. Disse com uma pronúncia gutural que emocionou toda a equipe. Disse como quem declama um poema e espanta uma dor:
Eu vou sair desse jogo malvado
você só quer me ganhar
um homem triste, sentado, roubado
pensa em suicidar-se.
Um pombo voou, voou, e um indivíduo matou
ai, ai, grita o pombinho caindo
eu não sou de isopor
fechando os olhos, ele morre
e tudo acabou.
Um prisão coberta de espinhos
não pode brilhar
liberdade, sim, é preciso
para melhor pensar.

sexta-feira, 24 de setembro de 2021

o cais de seu destino


foto Alex Meira

Em sua fala para o meu documentário Pessoal do Ceará - Lado A Lado B, o cantor Lucio Ricardo conta do perfil transgressor de sua banda Perfume Azul na década de 70, o convite de Ednardo e Augusto Pontes para o show Massafeira Livre em março de 1979, os dois dias de viagem de ônibus de Fortaleza para o Rio de Janeiro para gravar o disco coletivo, as reuniões e ensaios no hotel em Santa Teresa, a emoção de entrar no estúdio onde gravavam Roberto Carlos, Renato e Seus Blue Caps, Jerry Adriani, as batidas da polícia nas redondezas que implicava com os cabeludos e as substâncias engolidas queimando goela abaixo para evitar o flagrante, a alegria de ver duas músicas suas no vinilzão duplo, a perspectiva de projeção da carreira artística naquela virada de década, e com tranquila e lúcida sinceridade, o lamento de ainda, a essa altura da sua idade, o não reconhecimento de seu trabalho como cantor no objeto direto de um disco.

À parte um CD ao vivo gravado na Feira da Música em 2002, e Notas da memória, de 2016, onde interpreta composições de Joaquim Ernesto e Silvio Barreira, Lucio Ricardo com mais 40 anos de carreira, não tem um disco para chamar de seu, "que realmente mostre o meu potencial de cantor", diz olhando no foco da câmera: um olho no retrovisor do passado, outro no painel do presente, e os dois olhos no que virá, se virá.
Ou como diz um trecho de Aviso aos navegantes, canção sua e de Siegbert Franklin gravada no disco Massafeira, 1980:
Sendo o cais o seu destino,
eterno nunca chega.
Dando aviso aos navegantes
que é preciso despertar com o Sol

quarta-feira, 22 de setembro de 2021

começaria tudo outra vez


foto Geraldo Guimarães

76 anos de nascimento de Gonzaguinha.

A súbita morte do cantor, aos 45 anos, em 1991, deixou um vazio na música brasileira, insubstituível como tudo que é uma só vez na vida.
Um dos mais fortes contestadores do regime militar, o cantor tem em sua obra o exemplo de resistência e poética nas canções.
Nestes tempos temerosos, sombrios, fascistas, com certeza ele bradaria "a gente quer viver uma nação / a gente quer é ser um cidadão".
foto Geraldo Guimarães

segunda-feira, 20 de setembro de 2021

o primeiro Pessoal


"Considero o disco 'I Festival de Música Popular Aqui no Canto', de 1969, o primeiro disco do Pessoal do Ceará. O LP 'Pessoal do Ceará - Meu Corpo Minha Embalagem Todo Gasto na Viagem', de 1973, é a consolidação."
- Wagner Castro, historiador, em um recorte de sua fala para o documentário.
Em 2008 Wagner lançou o livro No Tom da Canção Cearense - Do rádio e TV, dos lares e bares, na era dos festivais (1963-1979), Edições UFC.
Na foto, o editor Rui Ferreira.

domingo, 19 de setembro de 2021

ler e ser

 

“Não basta saber ler que 'Eva viu a uva'. É preciso compreender qual a posição que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir a uva e quem lucra com esse trabalho.”

Admirável pensamento do mestre Paulo Freire, no raciocínio da simplicidade de uma fábula, em A Educação na cidade, 1991, coletânea com entrevistas após ter assumido a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, de 1989 a 1990.
O sociólogo e pedagogo, patrono da Educação brasileira, ameaçado nestes tempos sombrios de fascismo, nos mostrou as uvas e que não estariam verdes.
Acima, painel Paulo Freire, autoria de Luiz Carlos Cappellano, 2009, exposto no Centro de Formação, Tecnologia e Pesquisa Educacional Prof. Milton de Almeida Santos, SME, Campinas, SP.
Hoje, 100 anos de seu nascimento.

terça-feira, 14 de setembro de 2021

do Pessoal do Ceará ao Massafeira

 

Entre o AI-5 e a conquista da Anistia se desenvolveu e manifestou publicamente a moderna música popular cearense. Enquanto ocorriam o chamado milagre brasileiro e a inversão demográfica, com a população brasileira se tornando majoritariamente urbana, e se intensificava cruelmente a repressão da ditadura, com torturas, prisões, assassinatos e exílios, se consolidava no Ceará uma nova geração de criadores, num movimento contemporâneo e distinto do baiano e mineiro. Seus marcos culturais são o disco Pessoal do Ceará - Meu Corpo Minha Embalagem Todo Gasto na Viagem (1973), embora o movimento que o gerou viesse de antes (1969/70), e o evento Massafeira Livre (1979).

No próximo sábado, vamos conversar com o pesquisador e cineasta NIRTON VENANCIO, que atualmente finaliza um longa documentário sobre esse tema, Pessoal do Ceará - Lado A Lado B. Na conversa vamos tratar dos aspectos históricos, poético-estéticos e políticos dessa década em que nasce e se consolida a música popular cearense.
- Emiliano Aquino, professor de Filosofia da Universidade Estadual do Ceará.

transversal do tempo

 

Amy bebê e sua mãe, Janis Winehouse.

Amy Winehouse e sua mãe, Janis.

Hoje, 38 anos de nascimento da cantora.
O tempo atravessando o coração de cada uma.
10 anos sem uma na saudade de outra. She died a hundred times.

sábado, 11 de setembro de 2021

outro 11 de setembro


Em plena Guerra Fria, com os Estados Unidos enviando centenas de garotos que amavam os Beatles e os Rolling Stones morrerem no Vietnã, países importantes da América Latina, como Brasil, Argentina, Paraguai, Bolívia, Peru, Equador e Uruguai sob sanguinários regimes militares, o império norte-americano não admitia no Chile o nascimento do governo socialista de Salvador Allende na sua área de influência, após Cuba.

Às 11h52 de 11 de setembro de 1973, depois de uma manhã inteira de cerco, aviões Hawker Haunter da Força Aérea Chilena e tropas sob o comando do fascista general Augusto Pinochet bombardeiam o Palácio de La Moneda e a residência do presidente Allende, assassinando-o, com total apoio da Casa Branca e aplausos de Richard Nixon.
A data é um marco no terrorismo de Estado.

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

pessoal e intransferível

    

Esta manhã, ao dispor numa de minhas estantes, neste gabinete, uma fileira de velhos livros devolvidos pelo encadernador, lembrei-me de uma frase de Álvaro Moreyra, num de nossos últimos encontros na Academia:

- Pior do que ter saudade é não ter do que ter saudade.
E é verdade. A saudade é também um patrimônio que se acumula na memória para as horas de solidão. Não pesa. Não ocupa espaço. E é de uso privativo. As melhores saudades são aquelas a que está associada a pessoa amada. Pedem silêncio. Silêncio de nós mesmos. E silêncio à nossa volta.

- Josué Montello em Diário da tarde, 1998, segundo volume da trilogia Diário completo. No livro, que abrange o período de 1957 a 1967, o escritor maranhense discorre com uma escrita prazerosa acontecimentos que viveu, além de, entre pensamentos e reflexões, narrar breves peculiaridades de amigos e escritores.

porque cantar


 
"O Bar do Anísio foi o lugar onde a gente foi também um pouco chorar nesse período, e também para cantar."

- Ieda Estergilda Abreu, poeta e jornalista, parceira em composições com Petrúcio Maia, em um recorte de sua fala para o documentário.
O período a que ela se refere foram os tempos de chumbo pós-golpe de 64. A calçada do Bar do Anísio como local de consolo e esperança.
Na etapa presente da edição, refletindo o passado, lapidando o futuro do filme.
Na foto, o editor Rui Ferreira.

terça-feira, 7 de setembro de 2021

a canção numa mesa de bar

 

"Se nós estamos alegres, isso assusta o inimigo. O inimigo nos quer mortos de tristeza."

- Alba Gomes de Paiva, em um recorte de sua fala no documentário, sobre a turma de cantores e compositores que frequentava o Bar do Anísio no período de repressão com a decretação do AI-5. A arte como resistência.
Na etapa presente da edição, refletindo o passado, lapidando o futuro do filme.
Na foto, o editor Rui Ferreira.

segunda-feira, 6 de setembro de 2021

Belmondo no Brasil


Brasília tinha 4 anos de idade, um golpe militar a caminho e Jean-Paul Belmondo equilibrando-se nos prédios em construção.

A cena é do filme O homem do Rio (L’Homme de Rio), de Philippe de Broca.
Além das locações na Capital Federal, Belmondo equilibrou-se como numa “Missão impossível” analógica, nos prédios de Copacabana e nos cipós da selva amazônica.

domingo, 5 de setembro de 2021

lirismo

 

O lirismo do poeta paulista arrudA (assim mesmo a grafia).

O afeto de mãos dadas, a força oceânica e calma do olhar vespertino.

Do livro A representação matemática das nuvens, Editora Patuá, 2010.

quinta-feira, 2 de setembro de 2021

o chão sagrado da feira


foto Rubens Venâncio

Nos dias 15, 16, 17 e 18 de março de 1979, frequentei todas as noites o Theatro José de Alencar, em Fortaleza, ouvindo os sons, vendo as imagens, acompanhando o movimento, no meio da gente do Massafeira Livre, evento criado por Ednardo e Augusto Pontes, que reuniu mais de 200 pessoas da cena artística, cultural e musical do estado.

Cantores, compositores, artistas plásticos, poetas, jornalistas, cineastas, fotógrafos, atores, dançarinos, artesãos... gente por todos os lados, palcos, corredores e jardins do centenário teatro, apresentando suas músicas, expondo seus trabalhos, conversando, abraçando-se, falando da vida.
Iniciando na fotografia, eu pendurava minhas cópias em preto e branco nos barbantes entre duas colunas bem ao estilo dos livrinhos de cordéis. Eram fotos que eu chamava de “artísticas”: flagrantes das ruas, pessoas que iam, umas que ficavam, outras que não voltavam, paisagens que me olhavam, e também de shows de cantores que me encantavam, inclusive dos que se apresentaram no palco naquelas quatro intensas noites. Quieto no meu canto naquele espaço aberto e saudavelmente barulhento, eu era tão tímido que era invisível.
Do meu anonimato e acanhamento de menino sertanejo dos Inhamuns, observava tudo e todos. Mais do que o obturador da minha simples Olympus Pen de lente fixa 50mm, o tato de minhas retinas captava a paisagem humana, a efervescência cultural que acontecia no teatro.
José de Alencar escritor foi, a partir dali, além da trilogia indianista Ubirajara, Iracema e O Guarani que li no curso Científico do Colégio João Pontes. Na Massafeira passei a ver naquela multidão diária os perfis femininos de Lucíola, de Emília Duarte de Diva, de Carolina de A viuvinha, os regionalismos pra lá de Messejana de O tronco Ipê, Til e O gaúcho, e tudo mais que a arte proporciona na imaginação o horizonte de quem escreve, lê, compõe, canta, pinta, borda, dança, atua... O Theatro José de Alencar, na alma do romancista que o nome estampa, acolheu livremente uma nova geração de artistas de sua cidade e sertão.
No largo e profundo palco do Theatro, da música do Cariri ao rock e blues da cidade, a Massafeira apresentou uma legião de personagens que o romancista Alencar aplaudiria sentado no camarote lá da torre do terceiro andar do teatro que o homenageia desde quando foi inaugurado em 1910.
Nesse mês de agosto voltei ao Theatro 42 anos depois para gravar algumas entrevistas para o documentário Pessoal do Ceará - Lado A Lado B. O encabulado rapaz das fotos no varal adentra agora o sacro local com uma câmera 4K e claquete. O anônimo fotógrafo disfarça a timidez no cineasta e dar ação a Ednardo, Francisco Casaverde, Pachelly Jamacaru, Calé Alencar, Chico Pio, Jorge Mello e Vicente Lopes, artistas que ali se apresentaram. Cenas e encontros que jamais imaginei naqueles verdes anos. Ídolos do circuito afetivo da minha aldeia agora imprimem na película digital do meu filme suas memórias, histórias, falas e pausas de uma saudade analógica do 35mm das fotografias, do 16mm e super-8 dos filmes, dos ecos de suas canções captadas na mesa de som nas águas de março de 1979. Nada tão bom como uma década depois da outra e uma Massafeira no meio do Theatro.
A equipe do documentário agradece a afetuosa receptividade da coordenação do Theatro José de Alencar, abrindo as salas e os sorrisos: o diretor Pedro Domingues, Socorro Amarante, Nilda Maciel, Francisco Diniz e Ineuma Lima.
As locações que foram escolhidas para as entrevistas em 2021 fundem-se no mesmo chão sagrado dos quatro dias de 1979.

quarta-feira, 1 de setembro de 2021

aquela velha vontade de cantar


fotos Rubens Venâncio

Em outubro de 1977 o jovem cantor e compositor sobralense Vicente Lopes foi o vencedor do III Festival Musical do Mandacaru, certame estadual apresentado em sua cidade, com a canção Vira vento.

É na virada da década que o cantor com sua belíssima voz se destaca mais, participando dos quatro dias de som, imagem, movimento e gente Massafeira Livre, no Theatro José de Alencar, em Fortaleza, março de 1979. Vira vento entra na seleção das 24 faixas do disco duplo lançado no ano seguinte ao evento, pela CBS.
Em entrevista gravada sábado passado para o documentário Pessoal do Ceará - Lado A Lado B, Vicente Lopes falou da importância da Massafeira na história da música cearense, como “um movimento que se caracterizou pela diversidade, onde todos participaram com seus trabalhos”, e enfatiza que a “Massafeira foi realmente Livre, teve da música do Cariri ao rock, ao blues”, revelando artistas vindos depois do que se denominou Pessoal do Ceará a partir de 1973, com o lançamento do LP Pessoal do Ceará – Meu corpo minha embalagem todo gasto na viagem.
Autor de vários outras canções, parceiro também de Ednardo e Climério em Lagoa de aluá, 1979, Vicente Lopes falou sobre a inspiração para Vira vento. A composição é o mais fiel relato daquele momento, mostrando “no peito os moinhos da esperança” que “giram sem cessar”. O artista sabe que os caminhos não são fáceis, e que se um dia cansasse “dessa incerteza, dessa agonia” de não mais saber por qual afluente do destino desaguar seu sonho, diria que “eu mesmo serei o cigano a ler a minha própria mão” – e aqui manifesto a minha profunda admiração por um dos mais belos versos da música brasileira, de uma canção que é toda um poema de forte entonação lírica.
O trovador, persistindo em seu caminho, jogará “folhas secas no ar / para ver onde vai a ventania”, pois tem “sempre no peito a certeza / daquela velha vontade de cantar. ”
Vira vento dialoga nessa inquietação e sonho com outra canção do disco, Pelos cantos, de Graco. Mas, na essência do que move os moinhos da esperança, todas as faixas que giram nos dois vinis Massafeira expressam essa busca e essa vontade de cantar, de um novo cantar a velha vontade de cantar.
Se o disco não teve a merecida projeção nacional, se faltou um melhor trabalho de distribuição, se ficou restrito ao reconhecimento da aldeia cearense, essas e outras questões estão no documentário através das falas dos entrevistados, analisando com o distanciamento da linha do tempo. O tempo lendo a própria mão 40 anos depois.
fotos Rubens Venâncio