Na vasta e riquíssima obra de Belchior encontramos nas letras citações de Dante Alighieri (“viver a divina comédia humana / onde nada é eterno”, em Divina comédia humana, do disco Todos os sentidos, 1978) ao cordelista paraibano Zé Limeira (“ano passado eu morri / mas esse ano eu não morro”, em Sujeito de sorte, do seu segundo disco, Alucinação, 1976).
A intextualidade algumas vezes é diretamente referenciada, como fez com Caetano em
- “Veloso, o sol não é tão bonito / para quem vem do norte e vai viver na rua” e “mas trago de cabeça uma canção do rádio / em que um antigo compositor baiano me dizia / ‘tudo é divino, tudo é maravilhoso’”, respectivamente em Fotografia 3x4 e Apenas um rapaz latino-americano;
John Lennon e Paul McCartney em
- “agora ficou fácil / tudo mundo compreende aquele toque Beatles / ‘I wanna hold your hand’” e “John, eu não esqueço (ohno! ohno!) / a felicidade é uma arma quente”, de Medo de avião e Comentário à respeito de John, ambas gravadas no disco de 1979, Era uma vez um homem e o seu tempo;
Edgar Alan Poe em
- “como Poe, poeta louco americano / eu pergunto ao passarinho / blackbird, assum preto” (aqui sampleando com Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira), em Velha roupa colorida, do LP Alucinação;
Fernando Pessoa em
- “e lágrima nos olhos de ler o Pessoa e ver o verde da cana”, e também, sem mencionar, “a pedra no sapato / de quem vive em linha reta”, de Fotografia 3x4 e Objeto direto, do disco homônimo, de 1980;
Federico Garcia Lorca em
“Era um vez um homem e o seu tempo / (botas de sangue nas roupas de Lorca) / olho de frente a cara do presente / e sei que ouvir a mesma história porca”, no citado disco que tem o título do verso.
A relação entre fonte (o autor) e a criação, por vezes está de forma implícita, nem sempre identificada entre aspas, como fez com o filósofo romano Caio Plínio Cecílio Segundo e Carlos Drummond de Andrade em um mesmo verso:
- “A verdade está no vinho / (in vino veritas) / que me faz gauche, anjo torto”, na referida Objeto direto; e somente o poeta em “no congresso do medo internacional / ouvi o segredo do enredo final” em Populus, do disco Coração selvagem, 1977;
Castro Alves em
- “Companheiro que passas pela estrada / seguindo pelo rumo do sertão / quando vires a casa abandonada / deixei-a dormir em paz, na solidão” (e aqui troca “cruz” por “casa”), na canção “Aguapé”, gravada também em “Objeto direto”, e antes no LP duplo e coletivo “Soro”, de 1979;
Lamartine Babo em
“como o mar não está pra peixe / ai! mulata! não nega o teu cabelo”, na letra “Depois das seis, de Objeto direto;
Camões em
“eu quero que a minha voz / saia do rádio e no alto-falante / que Inês possa me ouvir / posta em sossego a sós / num quarto de pensão / beijando um estudante", em Voz da América, do disco Era uma vez um homem e o seu tempo;
Manuel Bandeira em
- “teu corpo é meu coro, oh! Irene, e eu quero ir, Irene Preta” (citando também Caetano), em Bel-prazer, do disco Todos os sentidos, 1978.
Belchior dialoga com a mesma destreza com referências cinematográficas, como fez com a cineasta italiana Lina Wertmüller em
- “e, com amor e anarquia, goza que enrosca e arrepia / rock-and-rollando em você”, uma citação a Film d'amore e d'anarchia... de 1973, na letra de Seixo rolado, de Objeto direto;
e, entre outros, Alain Resnais em
“para quem pensava que Hirosmina, meu amor / tinha sido exemplar / há a bomba N a de hidrogênio”, em Cuidar do homem, de Objeto direto.
É volumosa a quantidade as menções corporificadas em 13 discos autorais de Belchior, material para estudos acadêmicos. E há desdobramentos que me fascinam nessa dissecação em seu processo criativo. No caso específico dos versos não creditados de Zé Limeira (“Eu já cantei no Recife / perto do Pronto Socorro: / ganhei duzentos mil-réis / comprei duzentos cachorro; / ano passado eu morri / mas esse ano eu não morro”), que datam da década de 50, segundo o livro de Orlando Tejo, Zé Limeira, o poeta do absurdo, 1980, há um curioso encontro com a poeta norte-americana do final do século 19, Emily Dickinson: seu poema, que tem o título do primeiro verso, “Twas just this time, last year, I died”, publicado em Complete Poems of Emily Dickinson, numa edição de 1955, em tradução livre diz que “Foi exatamente nesta época, no ano passado, eu morri”.
Três anos e oito meses hoje que Belchior ficou encantado como uma nova invenção, numa madrugada no sul do país, distante do seu sertão às margens do rio Acaraú, para onde voltou de uma forma que nos entristeceu.
Neste penúltimo dia deste ano tosco, no contexto de dissertação de referências, cito a canção Antes do fim, sintomática última faixa do lado B do clássico Alucinação. Belchior se despede dizendo que “quero desejar antes do fim / pra mim e os meus amigos / muito amor e tudo mais”, e como cá estivesse na página infeliz da história que estamos vivendo, pede que fiquemos “sempre jovens / e tenham as mãos limpas e aprendam o delírio com coisas reais”. Fecha a composição dizendo que “o canto foi aprovado e Deus é seu amigo / não tome cuidado, não tome cuidado comigo / eu não sou perigoso / viver é que é o grande perigo.”
O verso final é uma alusão à fala recorrente do personagem-narrador Riobaldo, de “Grande Sertão: Veredas”, do mestre Guimarães Rosa, 1956: “Viver é muito perigoso... Porque aprender a viver é que é o viver mesmo.”
Acima, o cantor em seu exílio voluntário em Passa Sete, RS, fotografado por Ingrid Trindade, 2016.
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Texto para o meu livro em preparação Crônicas do Olhar,
Editora Radiadora
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