quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

o brasileiro que se descobriu na Bahia


foto Acervo Instituto Moreira Salles

Em 1929 o compositor mineiro criado no Rio de Janeiro Ary Barroso concluiu a duras penas o curso de Direito, especializando-se em Ciências Jurídicas e Sociais. Desde 1921 que tentava conciliar os estudos com o trabalho como pianista em orquestras e salas de cinema acompanhando os filmes mudos. A boemia o fez perder dois anos de faculdade e render suas primeiras composições.

Nesse mesmo ano do diploma, Ary faz sua primeira viagem à Bahia, que o marcou profundamente. Encantado com a riqueza histórica, cultural e religiosa, voltou ao Rio de Janeiro munido de inspiração para compor o que se tornaram clássicos do nosso cancioneiro. Quando escreveram que ele teria descoberto musicalmente a Bahia, rebateu em uma entrevista à revista Manchete, numa edição de 1962: “Não é verdade. Eu é que me descobri na Bahia. Os seus ritmos, os seus candomblés, suas capoeiras, sua gente em geral, foram uma revelação para mim. Fiquei de tal modo impressionado que o jeito foi exteriorizar a minha admiração através da música.”.
O biógrafo Sérgio Cabral em No tempo de Ary Barroso, publicado em 1993 pela Lumiar Editora, diz na página 47 que “Nenhuma viagem foi tão importante para o compositor do que a de janeiro de 1929. Ary Barroso ficou, literalmente, apaixonado pela Bahia. Tão apaixonado que nenhum autor – nem o baiano Dorival Caymmi – fez tantas músicas exaltando a boa terra.”. A colocação de Cabral ressalvo como mais cronológica do que de conteúdo e importância, pois as praias, os coqueiros, os pescadores, a Lagoa de Itapuã, a geografia afetiva e os costumes do povo baiano que fazem a riqueza da obra de Caymmi, vieram a partir da década de 50.
O samba-batuque No tabuleiro da baiana, que Ary Barroso compôs em 1936, seu primeiro grande sucesso consagrado na voz de Carmen Miranda, retrata o reconhecimento pela cultura e, particularmente, pela cidade soteropolitana, a constelação da beleza sintetizada na figura da quituteira negra, ofertando as tradições culinárias africanas. No tabuleiro tem vatapá, caruru, mungunzá, umbu, e no coração da baiana subindo e descendo ladeiras tem sedução, cangerê, ilusão e candomblé pra você. Ary criou para um musical de teatro de revista interpretado por Grande Otelo, que repetiu no filme Carnaval Atlântida, de José Carlos Burle, em 1952, numa cena maravilhosa ao lado de Eliana Macedo.
Tantas outras composições expressam a paixão do compositor pela cultura baiana, como Na baixa do sapateiro, de 1938, Os quindins de Iaiá, 1942, até mesmo no samba-exaltação Aquarela do Brasil, de 1939, a Bahia está mapeada nos versos que mostram o mulato inzoneiro, o vestido rendado nos salões arrastando, o rei Congo no congado, o Brasil brasileiro lindo e trigueiro com a rede amarrada no coqueiro que dá coco. À propósito das críticas que fizeram sobre essas redundâncias na letra, o compositor defendia-se dizendo que as expressões são efeitos poéticos indissolúveis da composição. Mais chateado ele ficava quando o acusavam de ter feito uma música ufanista, alinhada ao governo ditatorial de Getúlio Vargas. Aliás, antes de ser lançada, Ary Barroso teve que ir ao famigerado Departamento de Imprensa e Propaganda conversar com os censores para liberarem o verso "terra de samba e de pandeiro", carimbado como “depreciativo” aos valores nacionais.
E na lista de suas músicas que enaltecem a Bahia, Faixa de cetim, de 1942, gravado por Orlando Silva, é a mais emblemática como forma de gratidão. Uma das coisas que o impressionou foi o sentimento de religiosidade que emanava no vento tropical da cidade, os semblantes de fé em cada rosto devoto, o silêncio das rezas que corporifica a alma das 372 igrejas. A letra cuja inspiração sugere a visita que fez à Basílica de Senhor de Bomfim, é uma oração em forma de samba em que o autor deixa sua original Ubá nos prados de Minas e renasce nas ladeiras da Bahia (“Quando eu nasci / na cidade baixa / me enrolaram numa faixa / cor de rosa de cetim”), passa agora sua infância nos adros que margeiam as catedrais (“Quando eu cresci / dei a faixa de presente / pra pagar uma promessa / ao meu Senhor do Bonfim”), e roga a bênção de todos dos santos ao partir para a cidade grande (“Pedi que me abrisse o caminho / da felicidade / pedi que me desse um carinho / pra minha mocidade”).
Sobre essa visita à igreja do Bomfim, Sérgio Cabral reproduz na página 48 da biografia, uma carta que Ary escreveu para a esposa Ivone. Um trecho diz que ficou “abismado de ver tanto milagre praticado. Mais de 200 muletas de paralíticos que se curaram ali; uma infinidade de retratos, com declarações das pessoas que foram beneficiadas pelo Senhor do Bonfim. Uma coisa formidável. Fiz ali uma fervorosa oração pela nossa felicidade – e pelo meu futuro.”. A composição resulta como uma peça de ex-voto que o autor coloca no mural da música brasileira pela graça recebida na vida artística. “Sou feliz, / ninguém mais feliz que eu, / Bahia! / Senhor do Bonfim me atendeu”, finaliza o laço de cetim do samba-oração.
Ary Barroso tinha problemas causados por cirrose hepática. Melhorou depois de um período internado numa Casa de Saúde no Rio em 1963, mas é novamente hospitalizado no começo do ano seguinte para uma cirurgia. No dia 9 de fevereiro, um domingo de Carnaval, minutos antes da escola de samba Império Serrano entrar na avenida com um samba-enredo em sua homenagem, o compositor falece aos 60 anos.
Hoje comemora-se o Dia Nacional do Samba. A data foi instituída a partir de um projeto de lei do vereador baiano Luís Monteiro da Costa, em 1963, em alusão a uma visita do compositor a Salvador em 1940.
Ary, o sambista inzoneiro que pintava o Brasil com a aquarela do choro, xote, marchinha e foxtrote.
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Texto para o meu livro em preparação Crônicas do Olhar, com adaptações para esta postagem.
foto Acervo Instituto Moreira Salles.

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