quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

o penúltimo dia


Na vasta e riquíssima obra de Belchior encontramos nas letras citações de Dante Alighieri (“viver a divina comédia humana / onde nada é eterno”, em Divina comédia humana, do disco Todos os sentidos, 1978) ao cordelista paraibano Zé Limeira (“ano passado eu morri / mas esse ano eu não morro”, em Sujeito de sorte, do seu segundo disco, Alucinação, 1976).

A intextualidade algumas vezes é diretamente referenciada, como fez com Caetano em
- “Veloso, o sol não é tão bonito / para quem vem do norte e vai viver na rua” e “mas trago de cabeça uma canção do rádio / em que um antigo compositor baiano me dizia / ‘tudo é divino, tudo é maravilhoso’”, respectivamente em Fotografia 3x4 e Apenas um rapaz latino-americano;
John Lennon e Paul McCartney em
- “agora ficou fácil / tudo mundo compreende aquele toque Beatles / ‘I wanna hold your hand’” e “John, eu não esqueço (ohno! ohno!) / a felicidade é uma arma quente”, de Medo de avião e Comentário à respeito de John, ambas gravadas no disco de 1979, Era uma vez um homem e o seu tempo;
Edgar Alan Poe em
- “como Poe, poeta louco americano / eu pergunto ao passarinho / blackbird, assum preto” (aqui sampleando com Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira), em Velha roupa colorida, do LP Alucinação;
Fernando Pessoa em
- “e lágrima nos olhos de ler o Pessoa e ver o verde da cana”, e também, sem mencionar, “a pedra no sapato / de quem vive em linha reta”, de Fotografia 3x4 e Objeto direto, do disco homônimo, de 1980;
Federico Garcia Lorca em
Era um vez um homem e o seu tempo / (botas de sangue nas roupas de Lorca) / olho de frente a cara do presente / e sei que ouvir a mesma história porca”, no citado disco que tem o título do verso.
A relação entre fonte (o autor) e a criação, por vezes está de forma implícita, nem sempre identificada entre aspas, como fez com o filósofo romano Caio Plínio Cecílio Segundo e Carlos Drummond de Andrade em um mesmo verso:
- “A verdade está no vinho / (in vino veritas) / que me faz gauche, anjo torto”, na referida Objeto direto; e somente o poeta em “no congresso do medo internacional / ouvi o segredo do enredo final” em Populus, do disco Coração selvagem, 1977;
Castro Alves em
- “Companheiro que passas pela estrada / seguindo pelo rumo do sertão / quando vires a casa abandonada / deixei-a dormir em paz, na solidão” (e aqui troca “cruz” por “casa”), na canção “Aguapé”, gravada também em “Objeto direto”, e antes no LP duplo e coletivo “Soro”, de 1979;
Lamartine Babo em
“como o mar não está pra peixe / ai! mulata! não nega o teu cabelo”, na letra “Depois das seis, de Objeto direto;
Camões em
“eu quero que a minha voz / saia do rádio e no alto-falante / que Inês possa me ouvir / posta em sossego a sós / num quarto de pensão / beijando um estudante", em Voz da América, do disco Era uma vez um homem e o seu tempo;
Manuel Bandeira em
- “teu corpo é meu coro, oh! Irene, e eu quero ir, Irene Preta” (citando também Caetano), em Bel-prazer, do disco Todos os sentidos, 1978.
Belchior dialoga com a mesma destreza com referências cinematográficas, como fez com a cineasta italiana Lina Wertmüller em
- “e, com amor e anarquia, goza que enrosca e arrepia / rock-and-rollando em você”, uma citação a Film d'amore e d'anarchia... de 1973, na letra de Seixo rolado, de Objeto direto;
e, entre outros, Alain Resnais em
“para quem pensava que Hirosmina, meu amor / tinha sido exemplar / há a bomba N a de hidrogênio”, em Cuidar do homem, de Objeto direto.
É volumosa a quantidade as menções corporificadas em 13 discos autorais de Belchior, material para estudos acadêmicos. E há desdobramentos que me fascinam nessa dissecação em seu processo criativo. No caso específico dos versos não creditados de Zé Limeira (“Eu já cantei no Recife / perto do Pronto Socorro: / ganhei duzentos mil-réis / comprei duzentos cachorro; / ano passado eu morri / mas esse ano eu não morro”), que datam da década de 50, segundo o livro de Orlando Tejo, Zé Limeira, o poeta do absurdo, 1980, há um curioso encontro com a poeta norte-americana do final do século 19, Emily Dickinson: seu poema, que tem o título do primeiro verso, “Twas just this time, last year, I died”, publicado em Complete Poems of Emily Dickinson, numa edição de 1955, em tradução livre diz que “Foi exatamente nesta época, no ano passado, eu morri”.
Três anos e oito meses hoje que Belchior ficou encantado como uma nova invenção, numa madrugada no sul do país, distante do seu sertão às margens do rio Acaraú, para onde voltou de uma forma que nos entristeceu.
Neste penúltimo dia deste ano tosco, no contexto de dissertação de referências, cito a canção Antes do fim, sintomática última faixa do lado B do clássico Alucinação. Belchior se despede dizendo que “quero desejar antes do fim / pra mim e os meus amigos / muito amor e tudo mais”, e como cá estivesse na página infeliz da história que estamos vivendo, pede que fiquemos “sempre jovens / e tenham as mãos limpas e aprendam o delírio com coisas reais”. Fecha a composição dizendo que “o canto foi aprovado e Deus é seu amigo / não tome cuidado, não tome cuidado comigo / eu não sou perigoso / viver é que é o grande perigo.”
O verso final é uma alusão à fala recorrente do personagem-narrador Riobaldo, de “Grande Sertão: Veredas”, do mestre Guimarães Rosa, 1956: “Viver é muito perigoso... Porque aprender a viver é que é o viver mesmo.”
Acima, o cantor em seu exílio voluntário em Passa Sete, RS, fotografado por Ingrid Trindade, 2016.
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Texto para o meu livro em preparação Crônicas do Olhar,
Editora Radiadora
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terça-feira, 29 de dezembro de 2020

ainda sou uma garotinha


Em 1999, o baterista João Barone, do Paralamas do Sucesso, idealizou e organizou o projeto Submarino Verde e Amarelo, para arrecadar fundos para a Associação dos Amigos do Instituto Nacional do Câncer – AMINCA.

O show, realizado em 14 de julho, no Teatro da Lagoa, Rio de Janeiro, reuniu várias cantoras e cantores brasileiros interpretando canções emblemáticas dos Beatles, Zélia Duncan, Flávio Venturini Zizi Possi, Beto Guedes, Zé Ramalho, Fernanda Takai, Frejat, Samuel Rosa... a participação de Cássia Eller foi um dos destaques. A eterna garotinha cantou Golden slumbers, Carry that weight e The end, as três penúltimas faixas (a última é Her Majesty) do lado B do álbum “Abbey Road”, que em setembro daquele ano comemorou 30 anos do lançamento.
Acompanhando Cássia, o auxílio luxuoso de Barone, Vinícius Sá no baixo, Marçalzinho na percussão, Luizinho Avellar no piano, Cyro Telles nos teclados, Fernando Vidal na guitarra, Filipe Freire no violão e guitarra e Cecília Spyer, Suzana Bello e Matias Corrêa nos vocais. O evento foi lançado em CD e DVD em 2000.
19 anos hoje que Cássia não morreu.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

a voz das palavras


foto Edward Kaprov, 2015

Em 2007, o escritor, ativista e pacifista israelense Amós Oz, escreveu a autobiografia Um conto de amor e trevas, onde 120 anos de memória de sua família, com suas dores, vitórias e paradoxos, alinham-se à turbulenta história de seu país.

Celebridades materializam-se em personagens autênticos, de David Ben-Gurion, um dos fundadores do estado de Israel, ao lendário líder das organizações clandestinas e primeiro-ministro Menahem Begin, passando pela grandeza da poesia hebraica moderna.
Amós Oz, homenageado na FLIP em 2007, foi um dos responsáveis pelo movimento Paz Agora, em que advogava pela solução de dois estados Israelense-Palestino. Faleceu em 28 de dezembro de 2018, aos 79 anos. Enfrentava outra luta, contra um câncer.
Mesmo acusado de “traidor” por Israel, Oz mantinha-se contra invadir territórios e bombardear civis em nome do que o país chama de “seu Deus”. Humanista, dizia que sua qualificação para discutir política era ter ouvido para palavras, e que “eu ergo minha voz e grito sempre para combater uma linguagem corrompida.”
Seus livros são apaixonantes, admiráveis, como A caixa preta, 1987, Pantera no porão, 1999, o último, de 2014, Judas, onde através do amor entre um jovem estudante e uma bela e misteriosa garota, questiona as guerras e a fundação de Israel.
A citada autobiografia possivelmente tenha a densidade mais definida e reflexiva de toda sua obra. A atriz Natalie Portman estreou na direção, em 2015, com o tocante De amor e trevas, baseado no livro. A diretora surpreende com a literalidade narrativa do compromisso de Amós Oz com as palavras, com a história.
Livro e filme traduzem bem o sobrenome que o escritor adotou (ao deixar o de batismo, Klausner): força e coragem, o significado de Oz em hebraico.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

quem


Não foi o deus do alto da matriz
quem deu asas à minha imaginação

nem foi o padre bomfim
(com sua mão branca de pelos escuros
que me obrigavam a beijar
quando ele apontava no começo da rua)
muito menos o padre irismar
(com seu rosto largo de pele vermelha
que me abrigava o olhar
quando desapontava no fim da rua)
não foram eles
a quem nunca deixei meus pecados
atravessarem as treliças do confessionário:
os seios
das tias de perto
que o menino via
refletidos no espelho do provador
as coxas
das cutruvias de longe
que o menino ouvia
espelhadas no reflexo dos homens
(mentia que a culpa-minha-máxima-culpa
era ter mentido
para a avó
- três padres-nossos deles
- três ave-marias minhas
:
ato de contrição cabisbaixo
genuflexo
postulado
em frente aos gessos santificados)
não, não foram eles
seres comuns de batinas pretas
reles atravessadores de minha fé
não foram
foram as mãos dadas com drummond
as folhas finas da seleções
as curiosidades do capivarol
foram as fitas do cine poty
as canções da radiadora
a hora do brasil nas válvulas do abc
foram as notícias do tio da capital
as conversas na calçada alta
os trancosos da prima gorda
foi o olhar sem fim de tanto imaginar
que me deu asas
sobre
os telhados
os algodões
as carnaúbas
e me fez ver o mar.
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Trecho do meu livro inédito Trem da memória - um poema
Editora Radiadora
Coordenação editorial
Alan Mendonça
Prefácio
Valdi Ferreira Lima
Lançamento adiado desde março. Aguardando quando for possível a aglomeração de afetos.
foto ilustrativa para esta postagem: Daniella Puente.

as últimas luzes de Carlitos


O ator e diretor Charles Chaplin tem em sua vasta filmografia obras que se tornaram clássicas. O circo, Em busca do ouro, O garoto, Luzes da cidade, Tempos modernos, O grande ditador, são títulos que se incorporam na própria história do cinema.

Mas é com Luzes da ribalta (Timelight) que Chaplin atinge o ponto alto da essência em sua rica cinematografia. O personagem Carlitos é o espelho e efígie do ser humano, com sua alegria, dores e esperança. O riso de Carlitos é a gargalhada da alma. A tristeza de Carlitos é a lágrima da alma. O abraço de Carlitos é o aconchego da alma.
O crítico francês Jean Mitry disse uma vez que com o mito Carlitos, o ator criou um estilo de mímica que se refere mais ao conteúdo do que ao comportamento.
Realizado em 1952, Luzes... sedimenta essa definição. É o mais puro, original e, sobretudo, o mais profundamente pessoal filme de Charles Chaplin.
Ambientado em Londres no começo do século passado, às vésperas da I Guerra Mundial, a história conta a trajetória de um famoso palhaço, Calvero, uma espécie de Carlitos envelhecido, e em conflito com seu alcoolismo, com autoestima e outras encucações. Mesmo assim, salva uma bailarina amargurada, desiludida com sua arte, preste a cometer suicídio. Salva e lhe repõe a autoconfiança, fazendo-a voltar à dança. Uma relação amorosa começa a se delinear, a diferença de idade entre ambos assusta, e Calvero some, vivendo como um artista de rua. Ao voltar à ribalta, por insistência da bailarina, o palhaço sofre um infarto em cena, aos pés de sua protegida.
O filme é cheio de simbologia em todos os sentidos:
- O personagem Calvero é baseado no próprio pai de Chaplin, que faleceu vítima da bebida.
- A jovem bailarina é uma alusão à esposa e atriz Oona O’Neill, 36 anos mais nova, e uma menção da preferência de Charles Chaplin por mulheres mais jovens. Oona e quatro de seus onze filhos estão no elenco, em papéis secundários.
- O cineasta não somente ambientou o enredo em sua terra natal como datou no mesmo ano, 1914, quando começou sua carreira circense na Inglaterra.
- Chamou para contracenar o seu rival da época do cinema mudo, Buster Keaton, como uma forma de “fazerem as pazes”, embora se diga que foi para subestimá-lo mesmo, fato que levantou suspeita pela afirmação dos estudiosos da obra de Keaton, apontando que Chaplin cortou as melhores cenas entre os dois.
- Foi o último trabalho de Chaplin nos Estados Unidos, pois ao viajar para Londres para o lançamento, decidiu não retornar. Por suas posições políticas de esquerda, era visado pelo macarthismo, e diretamente perseguido pelo chefão do FBI, Edgar Hoover.
Depois de Luzes... Charles Chaplin dirigiu apenas dois filmes na Inglaterra, o irônico Um rei em Nova Iorque e o crepuscular A condessa de Hong Kong, onde faz apenas uma aparição, como mordomo, deixando o papel principal para Marlon Brando.
Chaplin apagou as luzes da ribalta, definitivamente, enquanto dormia, na noite de Natal de 1977, aos 88 anos.
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Texto para o meu livro em preparação "Crônicas do Olhar", pela
Editora Radiadora
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quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

os excluídos


 

chega!


Em 1995 a cantora Simone gravou o CD 25 de dezembro com doze faixas com temas natalinos. É um disco cheio de versões de clássicos como de Irving Berlin, White Christmas e Silent Nights de F. Gruber, respectivamente Natal branco e Noite feliz, além de Jesus Cristo, de Roberto e Erasmo Carlos, e Boas Festas, do grande Assis Valente.

Mas o que ficaria mesmo marcada é a indefectível versão de Happy xamas/Was is over, de John Lennon e Yoko Ono, lançada em 1971 como single do grupo Plastic Ono Band, cometida por Cláudio Rabello, por aqui intitulada Então é Natal, trilha sonora de shoppings e supermercados nesta época de Menino Jesus e presépios piscando lampadinhas led.
São 25 anos ad nauseam.
O disco vendeu mais de um milhão de cópias, chegou ao mp3 e todas as plataformas digitais.
A música do ex-Beatle é sobre a guerra do Vietnã, e usa o Natal como uma representação de final de ano, quando todos se mostram alegres e cordatos (o tal "espírito natalino"!), mas, na verdade, fica a pergunta que não quer calar em um dos versos, "and what have you done?".
Formata-se o aspecto comercial, molda-se um adestramento religioso, mas não a essência da mensagem de resistência pacífica daquele Cristianismo com o qual John, mesmo sendo ateu, se identificava.
O título do disco de Simone, além de referenciar o homenageado que nasceu há mais de dois mil anos, a cada dezembro é um presente da cantora para ela mesma: amanhã completará 71 anos.
(O áudio original é de A felicidade não se compra / It's a Wonderful Life, de Frank Capra, 1946, um dos clássicos filmes natalinos hollywoodianos.
Na cena, a personagem de Dona Reed, depois de uma discussão com o namorado interpretado por James Stewart, quebra o disco que havia colocado para recebê-lo naquela noite.
Há vários natais que o recorte da cena virou meme nas redes sociais.
Aqui uma cópia remasterizada e colorizada).
Protejam-se. Cuidem de si e dos outros. O vírus continua. Ainda não temos vacina. Ainda temos um desgoverno genocida.

Natal Maravilha


 A versão iconoclasta de Elke.
Trecho da entrevista ao programa Amaury Jr., Rede TV, dezembro de 2010.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

e o que você fez?


Um jovem casal com o casamento em crise, um pai cheio de ressentimentos vivendo com uma mulher em perturbado estado alcoólico, garotos saídos da adolescência em permanente conflito e cobranças, carentes de afeto... E um homem de meia idade, sobrevivido de um passado complicado, empregado de um ferro-velho, tentando refazer sua vida. Ele chega a esse seu núcleo familiar em plena noite de Natal, e o que seria uma confraternização, mostra-se um desfilar de escamações. Troca de mágoas, queixas, dissabores em vez de troca de presentes. À mesa, um cardápio de pesares, compunções e desconsolos dá lugar à tradicional ceia de boas festas. Não há o ritual de amigos secretos, e sim, de inimigos íntimos.
Com esses personagens, situações e ambientações, desenvolve-se o roteiro de um filme denso, sombrio e verdadeiro: Feliz Natal, longa-metragem de estreia como diretor do ator Selton Mello, em 2008.
A construção narrativa é claramente influenciada por cineastas “contraventores” dos bons costumes de filmes que não fazem concessão à mesmice, não compactuam com o lugar-comum de um cinema dopante, como fazem a argentina Lucrecia Martel e os norte-americanos Paul Thomas Anderson e John Cassavetes. Selton Mello segura firme na direção, demonstra o mesmo talento que tem à frente das câmeras, anuncia-se como um cineasta que não vai usar o seu nome, talento e reputação com filmes de dramaturgia televisiva, o que se confirmou com os ótimos O palhaço, 2011, e "O filme da minha vida", 2017.
“Feliz Natal”, com destaque para as atuações de Darlene Glória e Lúcio Mauro, ganhou apenas um prêmio em festivais, o de fotografia para Lula Carvalho, em Paulínia, e não teve grandes números em bilheteria. Apesar do reconhecimento de parte da crítica, é um filme lamentavelmente subestimado, errônea e apressadamente visto como uma exposição da condição humana sem saída, através da célula familiar, quando é exatamente a sinceridade do discurso que se propõe à reflexão, e que estejamos sempre atentos. Essa é a função sagrada da arte: espelharmo-nos para nos repararmos. A arte não condena, esmiúça nossas vísceras para que continuemos juntos, talhando e aprimorando nossa convivência neste mistério chamado vida.
Selton Mello ambienta seu filme justamente no contexto de uma noite onde a hipocrisia tem seu formato mais acabado, descrevendo uma conjuntura do cerne familiar como personificação de todas as relações humanas. Afinal, as grandes guerras começam entre quatro paredes, entre marido e mulher, entre irmãos, entre amigos. O amor também.
E por falar em amor, protejam-se. Cuidem de si e dos outros. Ainda não temos vacina. Ainda temos um desgoverno.
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Texto para o meu livro em preparação Crônicas do Olhar, com adaptações para esta postagem.

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

i'll sing you a song


Os sete minutos de Joe Cocker no filme Woodstock, de Michael Wadleigh, cantando With a little help from my friends, é um dos momentos mais marcantes do documentário sobre os três emblemáticos dias de paz, música e amor.

O vozeirão do cantor britânico, com essa mesma canção dos seus conterrâneos Beatles, do álbum Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, 1967, marcou igualmente pela abertura da série norte-americana Anos Incríveis (The Wonder Years), que a TV Cultura exibia nos anos 90.
Joe Cocker, com sua voz gutural, sua performance energética, e seu tipo de anti-herói viking, era doce na mesma proporção quando falava de canções, de sua vida, de sua infância na Inglaterra, e como conseguiu superar os problemas com álcool e drogas nos anos 70.
Em agosto passado, 51 anos de Woodstock.
Hoje, seis anos sem Joe Cocker.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

o anjo pornográfico


foto Arquivo Veja, 1973

"Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra coisa. Nasci menino, hei de morrer menino. E o buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica de ficcionista. Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico (desde menino)."

- Nelson Rodrigues em "Flor de Obsessão", antologia definitiva das melhores frases do dramaturgo, organizada por Ruy Castro, 1997.
Implacável cronista da mediocridade pequeno-burguesa, Nelson tinha um humor ferino em suas frases geniais. Contraditório, mas íntegro em seus pensamentos, ele veio para chacoalhar a obviedade ululante.
40 anos hoje sem o olho dele no buraco da fechadura.
foto Arquivo Veja, 1973.

domingo, 20 de dezembro de 2020

Nicette Bruno


"Ela ficou nesses 10 meses totalmente protegida, numa redoma. Mas às vezes acontecem coisas que saem do controle. Semana passada, ela recebeu a visita de um parente, ele não sabia que estava infectado e, infelizmente, transmitiu o vírus para ela".

- Beth Goulart, sobre a morte de sua mãe, a atriz Nicette Bruno, hoje pela manhã, aos 87 anos, por complicações decorrentes da covid-19.
Proteja-se. Cuide de si e dos outros. Ainda não temos vacina. Ainda temos um desgoverno.

postal de amor

 

"Eu todo cheiroso a Lancaster e você a Chanel..."

- Reginaldo Rossi, em A raposa e as uvas, gravada no disco homônimo, 1982.
O chamado "rei do brega" imitava Elvis Presley em Recife no começo dos anos 60, influenciado pelos Beatles criou The Silver Jets e abria os shows de Roberto Carlos na época da Jovem Guarda.
Mas foram as canções de apelo popular, diretas na veia dos excluídos pela mulher amada, que fizeram a marca e notoriedade do cantor, em quase quarenta discos, principalmente nos anos 70 e 80.
Depois de um tempo afastado do que se chamava "hit parade", o retorno nos anos 2000 veio com tudo, trazendo o sucesso de 1987, "Garçom", aquela canção que reverencia o santo paciente, que ouvia e consolava no confessionário do balcão de bar os bebuns apaixonados, os maiores abandonados, os chatos reincidentes.
A música além de ser trilha de uma novela na Record, foi regravada por cantores que deram uma aura "cult" na interpretação, como Otto, no álbum Reginaldo Rossi - Um Tributo, 1999, e Filipe Catto, no disco Fôlego, de 2011, que chegou a cantar no palco do Palácio das Artes, em Belo Horizonte, acompanhado pela Orquestra Sinfônica de Minas Gerais e Coral Lírico, na comemoração dos 45 anos da Fundação Clóvis Salgado, em 2015.
Reginaldo teria adorado ver e ouvir seu garçom em ambiente tão requintado, numa interpretação afinadíssima de Filipe Catto. Mas o cantor faleceu em 20 dezembro de 2013, aos 69 anos.
E no clima de requinte, Reginaldo merece esse postal francês dos anos 20, todo cheiroso a Lancaster.

sábado, 19 de dezembro de 2020

Caetano do Brasil


Parafraseando Guimarães Rosa em Grandes Sertões: Veredas, a live de Natal de Caetano Veloso foi muito mais do que um pouquinho de saúde nessa loucura em que estamos vivendo.

1 hora e 40 minutos de uma profusão de paródias que encurtaram dores.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

o amor nos tempos da peste


“Os flagelos, com efeito são uma coisa comum, mas acredita-se dificilmente neles quando nos caem sobre a cabeça. Houve no mundo tantas pestes como guerras. E, contudo, as pestes, como as guerras, encontram sempre as pessoas igualmente desprevenidas.”

Trecho da primeira parte, página 24, de A peste, de Albert Camus, escrito durante a Segunda Guerra Mundial, publicado em 1947.
A história se passa em Oran, cidade no litoral mediterrâneo da Argélia, que é assolada por uma epidemia, devastando os habitantes progressivamente.
Filósofo, jornalista, ensaísta, dramaturgo, romancista, o franco-argelino Albert Camus (1913-1960) foi militante na Resistência Francesa assim como tomou posições decisivas na Guerra da Independência de seu país de origem.
Para escrever A peste, inspirou-se na pestilência de cólera em 1849 em Oran, ao mesmo tempo que faz uma analogia à ocupação nazista na Europa.
As duas leituras - o mal invisível da contaminação biológica e a maldade na concretude humana - convergem para a reflexão sobre a impotência, a exclusão da liberdade e, sobretudo, a ruminação sobre a solidariedade necessária entre os homens, a urgência do ser coletivo tomar forma, corpo e atitude em detrimento do particular, do individual, da peste do ego.
No livro vemos a morte se aproximar, invadir e alterar a rotina dos habitantes, encurralados pelo horror. Homens, mulheres, crianças, velhos, o juiz, o médico, o padre, todos se veem separados, isolados, sem comunicação exterior, e em suas inquietações interiores se conscientizam da importância que as pessoas tinham em suas vidas.
Do bacilo argelino em Oran do século 19 ao surto virótico na chinesa Wuran de 2020, “como no resto do mundo, por falta de tempo e de reflexão, é-se obrigado a amar sem o saber", como diz Albert Camus em outro trecho de sua obra máxima.

No Brasil, na data de hoje, 7.040.608 casos de contaminação por Covid-19, 6.239.192 pacientes recuperados, 183.735 mortos.

Protejam-se! Cada um por si e por todos! O vírus continua. Não temos vacina nem governo.

domingo, 13 de dezembro de 2020

luz dos olhos teus


Santa Luzia iluminava

                              a minha infância que dormia.

Nas manhãs quentes do interior:

      o facho de luz vindo da telha quebrada

                     (o menino na rede,

                      a parede azulada                   

                      a cenografia do quarto

                      :

                      o enquadramento que me guardava

                                                            no passado

                                                que vi do futuro). 

 

A jovem siciliana que minha tia-avó trouxe da feira

protegia meus olhos que acordavam

 

focava sua luz neorrealista

                     no quintal em mim

para o dia que começava

                     no sertão sem fim.

 

Cada manhã abençoada

        com a oferenda do par de olhos na bandeja.

 

Casa desfeita

        parentes idos

                           santa nas retinas.´

 

Na parede azulada,

esse recorte é o quadro que brilha mais

                                              no meu cinema paradiso. 

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Trecho do meu livro inédito ©Trem da memória - um poema

Editora Radiadora

Coordenação editorial Alan Mendonça

Prefácio Valdi Ferreira Lima

Lançamento adiado desde março. Aguardando quando for possível a aglomeração de afetos. 

Na foto, o quadro mencionado no poema.