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Vacas que pastam. Vacas que
passam. Vacas que mastigam o tempo. O tempo é o sólido personagem de “Mãe e
filha”, segundo longa-metragem de Petrus Cariry. As vacas, que num segundo de percepção
podemos fazer uma analogia ao cinema de Apichatpong Weerasethakul, ouso tranquilamente
dizer que o cearense Petrus é bem mais um talhador do tempo no cinema do que o
cineasta tailandês. E trago agora a
referência de Andrei Takovski e seu cinema esculpindo o tempo. Petrus sabe
igualmente com maestria o movimento do cinzel na tela, desde seu primeiro
longa, “O grão”, desde seus primeiros grãos germinados nos curtas-metragens.
Depois de uma longa separação,
mãe e filha se encontram no sertão, entre ruínas e lembranças. O destino da
filha nega o sonho da mãe. O passado é um círculo que aprisiona os vivos e os
mortos. A filha quer romper, mas as sombras espreitam – é o que diz a
sinopse. E quando se mergulha nos 80
minutos do filme, vê-se que até no resumo em que o cineasta abrevia a história,
ele consegue proporcionar o tempo nas palavras certas. “Mãe e filha” é somente
isso e muito mais.

O tempo que se alonga nos planos
da filha pelo corredor da casa é o mesmo tempo da mãe caminhando pelas ruas da
cidade deserta. O tempo que se molha na
chuva é o mesmo tempo que se queima nas velas que iluminam a solidão da casa e
o silêncio das pessoas. O tempo metálico que range no cata-vento que puxa a
água do ventre seco do sertão, é o mesmo tempo do dolorido cacarejo final da
galinha sangrada pela velha mãe. O tempo aparentemente estático nas fotos
antigas dos familiares é o mesmo tempo dos vaqueiros parados logo após o
batismo do menino morto. O tempo das luzes que entram pelas frestas das portas
e janelas, pelas réstias dos telhados, é o mesmo tempo dos raios de sol
cortados pelas lâminas do cata-vento. O tempo que a filha reclama da ausência
do pai em sua vida, é o mesmo tempo em que não se sabe do pai do rebento morto.
O tempo em que a filha pergunta incerta para mãe se acredita em Deus é o mesmo
tempo em que a mãe responde incerta em seu politeísmo “qual Deus?”. O tempo em
que a avó batiza o netinho morto na pia encardida é a mesma pia do tempo amarelado
em que a filha molda o barro que destinará ao filho. O tempo em que o menino se
chama Antonio é o mesmo Antonio que se denomina o avô que se foi há tempos. O
tempo que a avó pergunta pra filha “como está” o menino morto, é o mesmo tempo
em que ela trata a “indesejada das gentes” como vida. O tempo que a filha sobe
numa cadeira para afagar as estátuas santas num armário, é o mesmo tempo que a
avó lava e acaricia o corpo da criança morta.
O tempo que a filha junta cacos na igreja, é o mesmo tempo em que ela
une e desune os pedaços da fé em ruínas. O tempo em que num belíssimo plano a
imagem da avó surge num espelho como um fantasma, é o mesmo tempo em que a
filha volta evanescente para casa depois de muitas estações. O celular que a
filha tenta ligar e não funciona, é o mesmo tempo moderno que está no passado inútil
na camiseta com a estampa de Marylin Monroe.
Em “Mãe e filha” o cineasta
Petrus Cariry supera-se sem delimitar-se (ao mesmo tempo) com relação ao longa
anterior. Fica difícil apreciar lúcida e criticamente um filme sem observar
elementos de outro, porque o diretor não faz filmes: faz Cinema. Nada falta no centro de “Mãe e filha”, como
nada sobra pelas laterais dos enquadramentos. O domínio narrativo no filme tem
a precisão de quem sabe recortar o espaço e moldar o tempo com o equilíbrio da
razão e a harmonia do coração – ou o contrário, se a destreza é a mesma.

Não há a chamada química entre as
atrizes Zezita Matos e Juliana Carvalho: há uma alquimia na interpretação das
duas, respectivamente a mãe Laura e a filha Maria de Fátima. Uma vez o diretor mencionou que seu plano
preferido no filme é o da rede em que a avó embala o corpo do neto, numa
belíssima composição fotográfica de contraluz na porta da casa. Eu tentei escolher um de tantos que me
agradam, inclusive o citado, e me perdi em vários, e me encontrei no filme por
inteiro. A beleza e grandiosidade dos
planos estão em consonância no filme completo, tanto é que parece ser encenação
na própria história a inclusão do quadro “Ophelia”, de John Everett Millais. A obra mais famosa do pintor inglês, do século
19, retrata romanticamente a imagem idealizada da mulher trágica: o amor de
Hamlet que se suicida, flutua num lago, de semblante petrificado, emoldurada
por uma vegetação melancólica. O clima renascentista da pintura entra no sertão
metafísico de Petrus em composição simbólica de forte ressonância com o que se
viu em sequências anteriores. E com o que virá.

Um filme bom nunca termina: ele
continua pulsando em nossos olhos, encantando e provocando. Depois da
fortíssima cena da mãe enterrando o filho, ela anda pela estrada de volta a
algum lugar no futuro de si mesma. Solta os cabelos como para libertar-se de
alguma expiação. E segue. Com sua mochila nas costas e Marilyn na camisa, a
câmera a acompanha pelo chão sagrado. E
depara-se com os quatro vaqueiros (do apocalipse?) barrando-lhe a estrada. E ela
dispara em confronto. Escurece a tela. O filme acaba aí, mas não termina lá.