Foto: Acervo Alexander Filipowicz, 1985
O escritor morreu e deixou seu gato sozinho na vastidão do apartamento. O gato caminha entre livros, papeis, sobe na mesa, salta em direção ao corredor, olha em volta o que não mais volta. Tudo está igual, mas tudo está mudado, porque à noite a lâmpada não se acende mais. O gato ouve passos nas escadas, vieram lhe trazer comida. Mas aquela mão que coloca um peixe no pratinho não é a mão com as mesmas veias. As coisas deixaram de ser na hora e no olhar costumeiros. O cotidiano desapareceu, outro se modela.
O escritor morreu e o gato se revolta. Mia dizendo “Morrer – isso não se faz a um gato. / Pois o que há de fazer um gato / num apartamento vazio.”. O gato espera o escritor aparecer. “Vai aprender / que isso não se faz a um gato.” O gato caminha devagarinho, “sobre patas muito ofendidas.” Que se pode fazer agora? “Dormir e esperar”.
Com imaginação e personificação, a poeta polonesa Wislawa Szymborska escreveu o poema Gato num apartamento vazio, publicado no livro Fim e começo, de 1993. É dedicado ao romancista nascido na Áustria Kornel Filipowicz. Foi o grande amor de Szymborska durante quase três décadas. Conheceram-se no final dos anos 40, reencontram-se em 1967. Ela divorciada, ele separado. Não se casaram, não moraram juntos. Não precisava. “Éramos cavalos galopando um ao lado do outro", dizia ela. Trocaram uma imensidão de cartas, entre 1967 e 1985, que a editora espanhola Las Afueras compilou em livro, Escribe si vienes, inédito no Brasil.
O escritor faleceu no final de fevereiro de 1990, aos 80, seis anos antes de Szymborska ganhar o Nobel de Literatura, que ela dizia ter sido “o terremoto de Estocolmo” em sua vida, referindo-se em comparação de impacto à ausência do amado.
Hoje, 12 anos que Szymborska dormia em sua casa, em Cracóvia, quando não mais acordou. Tinha 88 anos.
Assim como o gato órfão de Filipowicz, um sentimento vagueia pelos livros em minha estante. Esses passadiços horizontais em que se guardam dorsos verticais de tempo. Olho. Como o felino antes do salto. Szymborska em minhas mãos. O tato de minhas retinas pelos corredores de cada página. E releio o poema. É o que se pode fazer agora.
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