segunda-feira, 31 de julho de 2023

incompletudes da memória


Trem da memória, de Nirton Venancio (Editora Radiadora 2022), sinto-o como escrita pulsátil. Cheio de vida, cada palavra pulsando em cada verso projeta um caminho (imperfeito, porquanto memória) que é, a um só tempo, procura e encontro, escavação, via passado, e edificação, por ele, para o agora que pode ser hoje no momento do depois. O "trem" proposto no título é de uma felicidade tão grande, enquanto expressividade de ideia, que, ao lê-lo, somos levados a saber estarmos diante de uma escrita que se teceu como movimento e que, por isso, nos faz trafegar por trilhos, ligando tempos de ontem aos tempos de agora. Via memória.
A cada verso de cada página, nós, leitores, nos deparamos com um “cascaviar” poético intenso e desafiador. Nesse processo, o eu lírico declara, já próximo do final da escrita feita:
O que escrevo são incompletudes:
há sempre quem lembro
e volto a sua casa
peço água e pergunto se sabe de mim
- o neto da costureira, o filho do bodegueiro.
Há sempre quem deslembro
e bate a minha porta
nada pede e pergunta se conhece quem foi
- o pai de lourim, o avô de fransquim.
Incertezas. Sim, o lidar com a memória causa o encontro com questões nem sempre possíveis de serem respondidas.
- Trecho do artigo Poesia que se eterniza, de Chico Araujo, poeta, professor do Centro Universitário Christus, publicado no jornal O Povo, Fortaleza, 23/6/2023
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O livro concorre ao 65º Prêmio Jabuti, Oceanos – Prêmio de Literatura em Língua Portuguesa e IX Prémio Nacional de Poesia António Ramos Rosa, Faro, Portugal.
À venda com o autor e pelo site www.radiadora.com.br

sexta-feira, 28 de julho de 2023

alinhamento dos astros



Na foto acima, Caetano Veloso, José Saramago, Jorge Amado.
Registro astronômico da jornalista e fotógrafa Maria Sampaio, na casa de Caetano, em Salvador, 1996.
Naquele ano, Caetano preparava o disco Livro, lançado em 1997, juntamente com a autobiografia Verdade Tropical. O álbum é um de seus trabalhos mais conceituais e provocativos. Estão lá Onde Rio é mais baiano, Manhatã, Não enche, uma magistral regravação de Na baixa do sapateiro, de Ary Barroso... O trecho inicial da especulativa faixa-título parece uma legenda inversa para a foto: “Tropeçavas nos astros desastrada / quase não tínhamos livros em casa / e a cidade não tinha livraria / mas os livros que em nossa vida entraram / são como a radiação de um corpo negro”.
Saramago lançara Ensaio sobre a cegueira um ano antes, possivelmente o livro do escritor que melhor simboliza a imagem de um mundo imundo e bárbaro. Na Bahia ele descansava do trabalho que dizia ao ter escrito “um livro brutal e violento e é simultaneamente uma das experiências mais dolorosas da minha vida.”
Jorge Amado preparava o que veio a ser sua última obra em vida, O milagre dos pássaros, uma fábula ambientada em Alagoas. Conta a história de Ubaldo Capadócio, trovador popular, amante de muitas mulheres, típico galanteador irresistível. Mesmo fora do céu da Bahia, personagens da constelação jorgeamadiana numa deliciosa narrativa temperada com dendê.
O alinhamento desses astros visto “nas sacadas dos sobrados / da velha São Salvador” tornou-se um fenômeno raro. 

sábado, 22 de julho de 2023

mapa do coração


Nos demais – eu sei,
qualquer um o sabe –
o coração tem domicílio, no peito.
Comigo, a anatomia ficou louca.

Como diz o título do artigo de Larissa Drigo Agostinho, mestra e doutora em literatura, publicado na Folha de São Paulo em 16 de agosto de 2019, Maiakovski cantava o amor como quem escrevia a revolução.
O texto analisa, por ocasião do relançamento de Sobre isto, pela Editora 34, o livro-poema que Vladimir Maiakovski escreveu em estado de dilaceramento do coração, recluso em seu pequeno apartamento em Moscou, entre os angustiantes meses de dezembro de 1922 a fevereiro do ano seguinte. Ele se separara de Lília Brack, seu grande amor, depois de uma grave discussão, quando se viu ferido justo na garganta pela flecha preta do ciúme, como diz Caetano Veloso em sua caudalosa canção. Tudo sempre esbarra embriagado de seu lume.
Sem você eu paro de existir”, escreveu o poeta em uma carta à amada, concordando com o pacto de silêncio e distanciamento entre ambos. E partiu para o exílio entre quatro paredes.
Político e lírico ao mesmo tempo, Maiakovski entregou-se a esse livro na mesma proporção que se entregava a uma causa do mundo. Se odiava a mesmice da vida burguesa, a inércia e a imobilidade, o poeta canta e desencanta o amor porque esse é também doído e corroído pela miséria de todos os dias.
Morto em 1930, desfazendo-se em ato extremo, aos 36 anos, Maiakovski considerava o livro, um manifesto sobre graça e sortilégios do amor, sua melhor obra. "Quero viver até o fim o que me cabe!", preconizou em verso-lápide no poema.
Sobre isto inspirou Caetano Veloso a compor O amor, fragmento adaptado, gravado pela interpretação magnífica de Gal Gosta no disco Fantasia, 1981. Nos versos mais cortantes Maiakovski pede que “Ressuscita-me, / nem que seja só porque te esperava / como um poeta, / repelindo o absurdo quotidiano!”, ao que o compositor baiano arrematou com um risco de esperança: “Ressuscita-me ainda que mais não seja / porque sou poeta / e ansiava o futuro”.
Entre o mundo lá fora e o quarto cá dentro, entre as causas de dores externas e os causos de horrores internos, entre os amores e tantos outros precipícios, entre o cubofuturismo russo e o barroco recôncavo de Santo Amaro, os poetas auscultam os corações dos poetas.
O trecho no início da postagem é do poema Adultos, que Maiakovski escreveu antes, publicado em Antologia poética, no início de 1922.
Mas o mapa do coração é o mesmo, sempre. O mesmo domicílio no mesmo peito. A anatomia ficou louca, como mostra acima a reprodução de um postal português de 1904, com relevo em almofada, postado por um amante a bordo do navio Congo, para que a amada além-mar pudesse apalpar a geografia da saudade ao recebê-lo.

sexta-feira, 21 de julho de 2023

Maikovski no caminho

Foto ©Rogério Cassimiro

Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.

Trecho do longo poema, quatro páginas, No caminho, com Maiakovski (assim mesmo, com a vírgula), do niteroiense Eduardo Alves da Costa, 87 anos.
Erroneamente atribuído ao poeta russo mencionado no título, e também a Bertold Brecht, o poema está publicado no segundo livro de Alves da Costa, Poesia Viva, 1968, editado pela Civilização Brasileira, e posteriormente em No caminho, com Maiakovski, pela Nova Fronteira, 1985, onde reúne toda sua poesia até essa década.
O autor escreveu nos conturbados anos pós-64, como manifestação de revolta à intolerância e violência impostas pela ditadura militar.
O equívoco da autoria começou na época da campanha das Diretas Já, com os versos estampados em camisetas, pôsteres e até em cartões postais, declamados em protestos nas ruas, assembleias de estudantes e sindicatos, sempre creditados a Vladimir Maiakovski ou ao dramaturgo alemão. Um primeiro alguém achou que fosse, os 'alguéns' seguintes não confirmaram e deu-se a largada ao erro.
A Internet, através das sempre apressadas redes sociais, no fast-food tópico das postagens, só fez aumentar a confusão, assim como fazem com textos atribuídos a Clarice Lispector, Mário Quintana, Jorge Luis Borges...
.
Muitos duvidaram que os versos de Alves da Costa, que têm na narrativa uma força e a beleza da vanguarda soviética, pudessem ser de um brasileiro. No máximo ele seria um tradutor de Maiakovski.
O autor, que tem 24 livros publicados entre poesia, contos e romances, em entrevista à revista ÉPOCA em 2014, com alegria e lamento disse que a atribuição ao famoso poeta foi “uma maldição, ajudou a chamar a atenção para minha poesia, mas ocultou toda a minha obra.” 

segunda-feira, 17 de julho de 2023

encontro num lugar comum

Foto: Ekaterina Bashkinova, 2014

“Eu não sou Bossa Nova, eu não sou samba, eu não sou jazz, eu não sou rumba, eu não sou forró. Na verdade eu sou isso tudo ao mesmo tempo.”
No final dos anos 90 cruzei com o compositor João Donato em um shopping em Brasília. Eu entrava, ele saía. Diminuí os passos, a porta automática voltou a fechar, e fiquei ali admirando aquela figura alta e belamente vistosa com uma camisa florida. Sorriu para mim e cumprimentou: “Oi, tudo bem?”. Inocente, puro e besta, surpreendi-me com sua simplicidade e generosidade. Aproximei-me para abraçá-lo e naturalmente abriu os braços. Aquelas folhas de coqueiro – acho – da estampa da camisa envolveram-me. O grande João Donato abraçou-me, e eu mais ainda o apertei em meu peito. Ele não me conhecia, nem sequer teria me visto em alguma de suas apresentações a que assisti, ali anônimo no enlevo coletivo da plateia. Eu era apenas um fã diante seu ídolo na entrada de um shopping center no planalto central do país.
João Donato à época morou em Brasília, num curto espaço de tempo, quando conheceu a jornalista Ivone Belém, com quem casou em 2001.
E no rápido e eterno enquanto durou o meu encontro naquela tarde, disse-lhe de minha admiração, de seus discos que me marcaram, dos shows que aplaudi. Ele só sorria, “Obrigado, obrigado. Que bom ouvir isso”. Estendeu mais um sorrisão sobre o colorido da blusa quando lhe disse que ele é samba, Bossa Nova e jazz num só fôlego em suas canções. Justamente o que falou, em melhor proporção, tempos depois, em julho de 2014, em uma entrevista ao jornal O Globo, que reproduzo acima.
Essa sua definição já está naturalmente sedimentada em suas criações, na vasta discografia de quase 40 álbuns, do estreante Chá dançante, de 1956, ao último, lançado ano passado, Serotonina. Eu apenas expressei o óbvio. Olha-se e ouve-se João Donato e vê-se a Música.
Despedimo-nos. Ele seguiu para o estacionamento, e eu, sentindo-me abençoado e mágico, fiz a porta do shopping abrir-se novamente só com o sensor da alegria em meu corpo. Ouvi-me cantar por dentro sua famosa canção de 1975, Lugar comum: “Tudo isso vem, tudo isso vai / pro mesmo lugar / de onde tudo sai”.
João Donato partiu nesta madrugada de começo de semana, aos 88 anos. Deixou samba, jazz, rumba e forró em acordes de saudade em todos nós.

domingo, 16 de julho de 2023

o tempo de Jane Birkin


Em novembro de 2019 a atriz, cantora e modelo inglesa Jane Birkin, foi matéria de capa da Revista ELA, do jornal O Globo. Na ótima entrevista, falou de temas marcantes em sua vida, como o casamento com o cantor Serge Gainsbourg; as fotos na Playboy; a polêmica e proibição pelo Vaticano da canção de furor erótico, de sensualidade explícita e gemidos lúbricos, Je t’aime... moi non plus, em 1969, (também interditada no Brasil pelo governo militar); a criação, com seu nome, da bolsa da marca Hermes; sua longa batalha vencida contra leucemina; sua participação em ajuda humanitária a vítimas de guerras e desastres naturais; sua militância pela legalização do aborto.
Dois trechos se destacam na matéria: como sobreviveu à extrema dor da morte da filha, a fotógrafa Kate Barry, de 46 anos, em 2013, que caiu do quarto andar do prédio onde morava, em Paris, incidente considerado suicídio; e como passou a lidar com a idade, a passagem implacável do tempo.
Para o caso da tragédia, Birkin coloca como fundamental a presença e o apoio de suas filhas, Charlotte Gainsbourg, atriz, e Lou Doillon, cantora. “Elas me socorreram quando não tinha mais forças”, diz, emocionada. Também aponta como imprescindível para esse período, ter voltado a cantar, fazendo releituras da obra de Gainsbourg, sempre acompanhada de orquestras filarmônicas nos países em que se apresentava.
O outro ponto relevante, sobre a idade, Jake Birkin diz que quando viu em Londres a atriz Glenda Jackson no palco, em 2017, aos 82 anos, interpretando Rei Lear, foi significativo para saber viver com tranquilidade e sem queixas com a velhice: “Ela estava magnífica em cena, com o rosto marcado pelo tempo, similar a um joelho de elefante. E, de repente, passamos a amar os joelhos de elefante. Mas não somos só isso. Por trás, há a inteligência e o talento de grandes mulheres, de pessoas muito habilitadas. E para quem a vida foi mais divertida, porque eram curiosas. Talvez, no fundo, a curiosidade seja o que há de mais sedutor.”.
Glenda Jakson faleceu em 15 de junho passado. Jane Birkin partiu hoje, aos 76 anos. Curiosamente, nessas artimanhas do tempo.
Foto: Marcus Brandt, dezembro de 2022, em um hotel em Hamburgo, Alemanha, durante a apresentação de um dos últimos shows da cantora.
 

sexta-feira, 14 de julho de 2023

o azul da memória


Agora
nas páginas deste livro
o poeta pergunta
onde andará a cor azul
que se não era azul dos meus olhos miúdos
era da tarde
do dia
e da noite com sua toalha de linho
e suas estrelas de papel.

De tudo era azul
o que de passado guardo avante nos cadernos
na arquitetura das primeiras letras
caligrafia que anunciava um poema
e no silêncio do menino curioso
personagem que descrevia uma cena
às vezes de riso pequeno
devagar sempre divagando
com os brinquedos traçados pela mão do pai.

Ah, meu pai!
O pêndulo de minhas pernas
em sua cacunda
caminhando do casarão
à casa pequena sem rotunda
o menino ainda sem irmãos.

- Fragmento de Trem da memória, Editora Radiadora, 2022

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O livro concorre ao IX Prémio Nacional de Poesia António Ramos Rosa, Faro, Portugal, 65º Prêmio Jabuti e Oceanos – Prêmio de Literatura em Língua Portuguesa.
À venda com o autor e pelo site www.radiadora.com.br

quinta-feira, 13 de julho de 2023

o ousado perfume do rock


Fotos: Arquivo Nirton Venancio

Na sequência da primeira foto acima, Ronald de Carvalho (baixo), Milton Rodrigues, o Mocó (bateria), Lucio Ricardo (voz), Siegbert Franklin (guitarra) Nélio (guitarra): eles formavam o Perfume Azul, a seminal banda de rock de Fortaleza. Som, pauleira, ousadia, nos anos nada dourados, 1976 e 1977.

Não gravaram LP, não registraram shows, mas estão cristalizados na lembrança de muitos que, como eu, não perdia uma apresentação.
A cantora, compositora e jornalista Mona Gadelha, que é igualmente importante desse período, hoje e sempre na história da música cearense, escreveu O Perfume Azul, artífice da ruptura: transgressão na cena rock de Fortaleza nos anos 70, dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal do Ceará, requisito à obtenção do título de Mestre, em 2018.
Pelo valor da pesquisa, registro e conhecimento de todos, o trabalho será lançado hoje, em livro, no Centro Cultural Banco do Nordeste, em Fortaleza, às 19h, com uma conversa com a autora, o jornalista Marcos Sampaio e a fotógrafa Lila Almeida. E num arremate ilustrativo da beleza do que foi contado, um pocket show com Lúcio Ricardo, Mona, o guitarrista Mimi Rocha e o baixista Edmundo Vitoriano Jr. Editado pela Fundação Waldemar Alcântara, a publicação faz parte da Coleção Estante Ceará.
Não à toa, este 13 de julho tem tudo a ver com o tema do lançamento, quando se comemora o Dia Mundial do Rock, data escolhida em referência ao histórico evento Live Aid, em 1985, criado por Bob Geldof, ex-vocalista da banda Boomtown Rats, que teve como objetivo chamar a atenção para a miséria no continente africano, a partir da Etiópia. O acontecimeto reuniu nomes famosos não somente do rock, também do blues e figuras emblemáticas da contestação política nos anos 60, como Joan Baez.
A pesquisa de Mona Gadelha, guiada pela arqueologia do coração, e também pelo olhar lúcido e crítico, analisa e reflete o conceito do rock como música e comportamento marcantes, a partir das ruas da aldeia, batendo na porta para aperrear os bons costumes do lugar – aqui parafraseando trecho de Terral, de Ednardo.
Mona e Perfume Azul é o encontro orgânico no mesmo chão da alegria, nas tramas que o universo propicia. Tanto ela quanto o cantor Lúcio Ricardo são expressões modernistas na música, na escrita, nas posições políticas, feministas, na reinvenção dos costumes, na costumização da ousadia, na diversidade de pensamento e gênero, nesse gesto antropofágico de resistência na via contrária da caretice institucionalizada. 

quarta-feira, 12 de julho de 2023

poemas no sereno

 


74 poemas sem título compõem Libro de las preguntas, uma obra singular no universo deslumbrante de Pablo Neruda, publicado pela Editorial Losada, Buenos Aires, em 1974, um ano após sua m.
No Brasil, a L&pm Pocket lançou edições em formato pequeno nas décadas seguintes. Há uma bela publicação da Cosac Naify, de 2008, com tradução de Ferreira Gullar e ilustrações do ótimo artista plástico espanhol Isidro Ferrer, que criou um diálogo com os textos através de reproduções fotográficas de colagens e instalações.
Hoje 119 anos de nascimento do poeta. Ele que modestamente questiona em um dos poemas: "Tem coisa mais boba na vida que chamar-se Pablo Neruda?". E respondo-lhe com outra pergunta do livro: "E que devo dizer aos cravos agradecendo-lhes o perfume" de sua poesia, Neruda?

segunda-feira, 10 de julho de 2023

já que sou brasileiro


Foto: Acervo Memorial Jackson do Pandeiro, Alagoa Grande-PB

A música não é dele, foi composta por sua esposa Almira Castilho e seu amigo Gordurinha, mas Chiclete com banana ficou como uma espécie de marca registrada de Jackson do Pandeiro.
O simpático e franzino paraibano já fazia sucesso no rádio e em shows, nas décadas de 40 e 50, com Sebastiana, A mulher do Aníbal, O canto da ema, e outros forrós aloprados, mas foi quando começou a mascar chiclete com banana que estourou definitivamente, e, pode-se dizer, criando de uma forma avessa e brincalhona o primeiro samba-rock.
Gravada em 1959, a composição expressa em letra bem-humorada e irônica a necessidade de manter a pureza da nossa música, sem influência de ritmos estrangeiros, mais exatamente da terra do Tio Sam, que só vai botar o bebop em nosso samba "quando ele tocar o tamborim / quando ele pegar no pandeiro e no zabumba / quando ele aprender que o samba não é rumba". Eles têm chiclete, e nós, yes! temos banana, que engorda e faz crescer. Então, patativamente, cante lá, que eu canto cá.
O rock'n'roll reverberava pela América Latina e Ocidente, refletindo não somente um gênero, também como comportamento de uma geração pós-Segunda Guerra, que veio explodir como um caleidoscópio cultural na década 60. As influências eram inevitáveis. Tanto é que o próprio Jackson do Pandeiro, batizado José Gomes Filho, logo no início da carreira adotou o "Jack" em homenagem a um ator de faroeste que ele adorava, Jack Perrin. O acréscimo do "son" foi ideia de um produtor, o Pandeiro, por ser o instrumento que ele começou a tocar, presente de sua mãe, dona Flora Mourão, uma cantadora de coco.
Alceu Valença costuma dizer que Luiz Gonzaga é o Pelé da nossa música, e Jackson, o Garrincha. E faz sentido essa analogia: os dribles e o domínio que ele tem com os ritmos, ao longo de mais de trinta discos, é impressionante. Ele vai do forró ao samba, passando com a mesma verve de interpretação e personalidade, pelo baião, xote, xaxado, coco, arrasta-pé, quadrilha, marcha, frevo... Não à toa, ficou conhecido como "O Rei do Ritmo".
Em 1982, após um show em Brasília, Jackson sentiu-se mal no momento do embarque no aeroporto. Era diabético. Passou uma semana internado, faleceu aos 63 anos, em decorrência de embolia cerebral, no dia 10 de julho, em um hospital na W3 Sul.
E nosso samba ficou assim: "tururururururi bop-bebop-bebop / tururururururi bop-bebop-bebop / tururururururi bop-bebop-bebop..."

domingo, 9 de julho de 2023

do maior encanto


43 anos hoje que Vinicius de Moraes não morreu.
No culto afetivo e memorial deste domingo, "...em seu louvor hei de espalhar seu canto..."
Ele é infinito em nossa literatura, posto que é chama.

sábado, 8 de julho de 2023

letra bem escrita sem papel *

foto ©Tiago Santana

Patativa, sua poesia é "ispinho e fulô" no meu roçado. Você canta lá e eu escuto cá.
Hoje, 21 anos sem o passarim.
* verso da canção Passarim de Assaré, letra de Fausto Nilo, musicada por Fagner, gravada no disco Soro, 1979.

 

quinta-feira, 6 de julho de 2023

Evoé, Exu Senhor das Artes Cênicas

Foto: Carl de Souza, 2019

"Eu não sou de resistir, eu sou de reexistir."
- José Celso Martinez Corrêa em entrevista à revista Sesc TV São Paulo, edição 123, junho de 2017.
O nosso mais belo e visionário Xamã passou a reexistir hoje aos 86 anos.
Ele, que dizia que o teatro era o seu corpo e o levava para qualquer lugar; corpo que tem a função de virar tudo pelo avesso, comunicar-se com toda a humanidade.
Corpo que tudo na alma incorpora, as ciências, as artes plásticas, a literatura, as religiões, a bruxaria e nenhuma igreja.
Corpo-teatro-terreiro sacro, profano, desfazendo a ditadura da lógica e da cultura ocidental capitalista cristã, e fez, desde 1958, um vento forte para o seu papagaio subir nos céus de sua Araraquara.
Ele, como na obra do pintor William-Adolphe Bouguereau, do século 19, O jovem Baco e seus seguidores, reproduziu no corpo-teatro os rituais em homenagem a Dioniso, deus do vinho, dos grãos, da fertilidade e da alegria.
Para ele peço salamaleikum, carinho, bênção, axé, shalom, e ficar pensando em tudo que é bom que ele viu, fez e nos deixou pra trilha clara do Brasil, apesar da dor.

terça-feira, 4 de julho de 2023

o doce bárbaro

Acervo do SESC-SP


"Panaméricas de Áfricas utópicas, túmulo do samba / mais possível novo quilombo de Zumbi”...
“Maurício Lucila Gildásio Ivonete Agrippino Gracinha Zezé / gente espelho da vida, doce mistério”...
Nesses versos, respectivamente trechos das músicas Sampa (1978) e Gente (1977), de Caetano Veloso, há homenagens explícitas ao escritor, dramaturgo e cineasta José Agrippino de Paula. Seu livro PanAmérica, publicado em 1967, praticamente deu uma guinada diferente na literatura brasileira naquela década de mudanças pelo mundo todo. De forte incidência pop, ou para ser mais preciso àqueles tempos, representativamente beat, narra as maluquices e casos amorosos de um cineasta enquanto tenta filmar nada mais nada menos do que A Bíblia Sagrada, colocando no elenco nomes como John Wayne, Marilyn Monroe, Burt Lancaster, Charles De Gaulle, entre outros, e eles próprios interferindo na construção das cenas. Viagem lisérgica total, situemos assim. Ou não. No mínimo, o suprassumo da estética tropicalista. A influência de Agrippino no movimento é inegável: Jorge Mautner lembra que "quando ele falava, todos silenciavam".
Essa mistura desvairada em sua criação, com personagens reais da cultura estadunidense, é, na verdade, uma crítica muito bem armada sobre a sociedade de consumo. Caetano Veloso dizia que o livro parecia Ilíada, do poeta grego Homero, narrada por Max Cavalera, ex-vocalista do Sepultura. É uma boa semelhança entre coisas diferentes. O fato é que Agrippino soube como pouquíssimos captar – e viver na pele – o século XX no que ele teve de mais representativo no ser humano e seus signos.
PanAmérica foi reeditado em 2001, pela Papagaio Editora, que relançou em 2005 o primeiro livro de Agrippino, Lugar público, originalmente publicado em 1965.
Agrippino foi diretor do muito comentado e pouco visto Hitler Terceiro Mundo, seu único longa-metragem, de 1968, um dos mais radicais do cinema alternativo que já vi. Goste-se ou não do filme ou do gênero, não dá para ficar indiferente a um trabalho que marcou época e influenciou outros diretores. O não menos original Carlos Reichenbach (1945-2012) dizia que suas obras "deflagraram uma revolução mental e sensível na minha geração". Os curtas rodados em Super-8 já traziam a linguagem inovadora de um artista inquieto e visionário.
Em 1976 Gilberto Gil musicou alguns trechos do livro PanAmérica e inseriu na canção Eu e ela estávamos ali encostados na parede, gravada no antológico Doces Bárbaros – Ao Vivo.
Agrippino vivia em Embu das Artes, na Grande São Paulo, desde o começo dos anos 80, esquecido do mundo, que tanto observou. Desde então teve uma vida difícil, principalmente depois da morte de sua filha, batizada Manhã, em acidente de carro em 1992, que teve com a bailarina e coreógrafa Maria Esther Stockler, de quem estava há muito tempo separado, mas nunca a esqueceu. “Maria Esther está lá na avenida Angélica falando com Caetano. Ela gosta de sair”, delirava de saudade.
Sua cabeça ficou mais em desordem quando soube da morte de Esther, por câncer, em 2006, na cidade de Paraty, onde residia, sucumbida à depressão e ao alcoolismo. A exímia criadora da coreografia imagética na dança brasileira tinha 67 anos e nunca se recuperou da perda da filha.
Um ano depois, na manhã de 4 de julho, Agrippino faleceu de um infarto fulminante, nove dias antes de completar 70 anos. Foi encontrado pelo irmão, que o visitava regularmente, levava as roupas lavadas, abraços demorados, e entre os itens necessários para sua manutenção, o arroz integral que ele comia diariamente desde os anos 60.
A cabeça de Agrippino não segurou a barra. O emaranhado do tempo aumentou a esquizofrenia que sofria nesta panAmérica de Áfricas utópicas. Espelho da vida, doce mistério.
Na foto da década de 80, o artista em frente à casa onde viveu seus últimos anos. 

sábado, 1 de julho de 2023

insumos da memória



Não foi o deus do alto da matriz
quem deu asas a minha imaginação
nem foi o padre Bomfim
(com sua mão branca de pelos escuros
que me obrigavam a beijar
quando ele apontava no começo da rua)
muito menos o padre Irismar
(com seu rosto largo de pele vermelha
que me abrigava o olhar
quando desapontava no fim da rua)
não foram eles
a quem nunca deixei meus pecados
atravessarem as treliças do confessionário.
Pecados: pecados: pecados:
os seios
das tias de perto
que o menino via
refletidos no espelho do provador
as coxas
das cutruvias de longe
que o menino ouvia
espelhadas no reflexo dos homens
e mentia que a culpa-minha-máxima-culpa
era ter fabulado para a avó
e isso não se faz
seja a última vez
e tomem intermináveis
três pais-nossos deles
três ave-marias minhas
:
ato de contrição cabisbaixo
genuflexo
postulado
em frente aos gessos santificados
e seus olhinhos punitivos.
Não, não foram eles
seres comuns de batinas pretas
atravessadores de minha fé
não foram
foram as mãos dadas com Drummond
as folhas finas da Seleções
as curiosidades do Capivarol
foram as fitas do cine Poty
as canções da radiadora
a Hora do Brasil nas válvulas do ABC
foram as notícias do tio da capital
as conversas na calçada alta
os trancosos da prima gorda
foi o olhar sem fim de tanto imaginar
que me deu asas
sobre os telhados
os algodões
as carnaúbas
e me fez ver o mar.
- Fragmento de Trem da memória, Editora Radiadora, 2022
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O livro concorre ao 65º Prêmio Jabuti, Oceanos – Prêmio de Literatura em Língua Portuguesa 2023 e ao IX Prémio Nacional de Poesia António Ramos Rosa, Faro, Portugal.
À venda com o autor e pelo site www.radiadora.com.br