quarta-feira, 31 de maio de 2023

o tempo de Eastwood

Foto Tom Stern, 2008

Em meados de 2017 o cantor country Toby Keith jogava golfe com o ator e cineasta Clint Eastwood, em Pebble Beach, California. O evento era um torneio beneficente promovido pelo famoso astro do clássico do spaghetti western Três homens em conflito, de Sergio Leone, 1966. Eastwood é o exemplo de como o cinema industrial estadunidense soube projetar o talento de atores ícones, do star-system. A filmografia de Clint, com mais de 100 títulos, comporta sua atividade de ator e diretor, com impressionante expressividade tanto na câmera enquanto diretor quanto à frente dela como personagem.
Naquela tarde californiana Toby Keith olhava com admiração para o alto dos 87 anos do amigo Eastwood, demonstrando bem menos idade. E num momento em que se deslocavam no carrinho de golfe, perguntou-lhe qual era o segredo para permanecer ativo e brilhante.
- Não deixo o velho entrar – respondeu Clint, com a destreza e tranquilidade do pistoleiro (Il Buono) naquela sequência do cemitério Sad Hill, no citado filme de Leone, em confronto coreografado com Lee Van Cleef (Il Bruto) e Eli Wallach (Il Cattivo). E como um desses personagens dominados, Toby Keith franziu um silêncio na testa com o que ouviu. Clint sacou com mais agilidade a resposta desenhada na simetria do tempo:
- Quando acordo todos os dias não deixo o velho entrar. Meu segredo é o mesmo desde 1959: me manter ocupado. Nunca deixo o velho entrar em casa. Tive que arrastá-lo porque o cara já estava confortavelmente instalado, me chateando o tempo todo, sem me deixar espaço para nada além da saudade. Você tem que se manter ativo, vivo, feliz, forte, capaz. Está em nós, na nossa inteligência, atitude e mentalidade. Somos jovens independentemente. É preciso aprender a lutar para não deixar o velho entrar.
Dessa conversa Toby Keith compôs Don’t Let the Old Man In, que está na trilha sonora de A mula (The mule), que Eastwood dirigiu e protagonizou em 2018. No filme, com roteiro baseado em um artigo do The New York Times, ele vive um octogenário veterano da Segunda Guerra Mundial que se tornou uma "mula" de drogas do Cartel de Sinaloa.
Hoje Clint Estwood completa 93 anos. Como um Highlander do Oeste, atravessa o tempo sem deixar o velho entrar.

terça-feira, 30 de maio de 2023

Santa Joana


Baseado nos documentos históricos do julgamento, A Paixão de Joana D’Arc (La Passion de Jeanne D'Arc), foi o segundo filme produzido, em 1928, sobre a jovem camponesa de 19 anos, modesta e analfabeta, que conduziu o exército francês contra o inglês durante a Guerra dos Cem Anos, acusada pela Igreja Católica porque teria recebido de Deus a tarefa de libertar a França. Presa e torturada, a moça foi queimada viva, em bárbaro auto-de-fé, que eram os eventos de penitência realizados em praça pública pela tal Santa Inquisição.
Dirigido pelo dinamarquês Carl Theodor Dreyer, o filme é considerado praticamente o primeiro, por ser superior ao de Cecil B. DeMille, Joana D’Arc – A donzela de Orléans (Joan, the woman), de 1916.
Ainda na era do cinema mudo, a direção de Dreyer se destaca em seu pioneirismo pela fidelidade dos fatos, inovação estética e ausência de glamour dramático.
Os perfeitos enquadramentos de câmera fazem parte da construção da linguagem cinematográfica que nascia. O diretor não usou maquiagem nos atores, para que na composição dos planos fechados sobressaíssem as expressões faciais.
Banido à época da Inglaterra, para não mostrar a heroína atormentada por soldados ingleses, os negativos do filme foram misteriosamente “sumidos”. Mais de cinquenta anos depois, o que se tem hoje são cópias remasterizadas a partir de uma cópia encontrada curiosamente em um hospício em Oslo, na Noruega, na década de 80.
A atriz Marie Falconetti (foto) é reconhecida como a melhor interpretação de Joana D'Arc, superior a outras como a de Ingrid Bergman por duas vezes, em 1948 no filme de Victor Fleming, Joana D'Arc, e em 1954 no de Roberto Rossellini, Giovanna d'Arco al rogo; Jean Seberg em Saint Joan, 1957, sob a direção de Otto Preminger; Florence Delay no filme de Robert Bresson, O processo de Joana d'Arc; e a composição pop-andrógina da ucraniana Milla Jovovich em Martírio de Joana D'Arc, de Luc Besson, 1999.
A Igreja Católica canonizou a jovem em 30 de maio 1920, instituindo o dia em sua homenagem, em reparação à brutalidade cometida em 1491. 

segunda-feira, 29 de maio de 2023

o profeta do cinema

Foto Sesc Arsenal

“A noite com seus sortilégios”, como dizia Manuel Bandeira, levou o cineasta Maurice Capovilla há dois anos, no anoitecer de um sábado, 29 de maio. Capô, como todos carinhosamente o chamávamos, tinha 85 anos e não resistiu às complicações de uma doença pulmonar.
Paulista de Valinhos, Capovilla tem seu nome ligado a diversos filmes significativos na história do cinema brasileiro, não somente como diretor, também como roteirista, produtor e ator.
Destaco o sempre bom de rever O profeta da fome, de 1970. Na configuração de um circo pobre, Capô mostra, de forma inteligente e corajosa, a simbologia do país naquela virada de década sob recrudescimento da ditadura com o AI-5: o povo representado na figura de um faquir que é crucificado como parte do espetáculo, e ao ser preso descobre que seu sucesso é passar fome de verdade. E no contraponto, sob o mesmo ambiente da lona rasgada e empoeirada, o domador malvado, estigma do poder e controle. Curiosamente, interpretados por José Mojica Marins e Maurice do Vale, icônicos atores que viveram em filmes daquela década do golpe militar os personagens do mito do horror tupiniquim Zé do Caixão e o caçador de cangaceiros Antonio das Mortes, contratado por latifundiários.
No cinema de Maurice Capovilla o Brasil é o grande personagem.
No final dos anos 90 morou em Fortaleza, e junto com Orlando Senna, trabalhou no projeto original do Instituto Dragão do Mar, núcleo cinematográfico de formação criado pelo governo do estado. Convivi com ele nessa época. Na imagem daquele homem sempre atencioso, seguro e convicto de seus conhecimentos e ensinamentos como cidadão e artista, o personagem de um Brasil do tempo da delicadeza.  

sábado, 27 de maio de 2023

apenas uma parte do Trem da Memória


Partir voluntariamente é doce: o exílio ė amargo e uma chaga que não fecha nunca. O cearense Nirton Venancio é um exilado que já viveu 3/4 de sua vida e essa ferida não sara.
A vida, o estudo e a arte - apesar do trauma do exílio - foram formando Nirton um cidadão, um gentleman, um humanista, um ser humilde, um ente sensível, acima de tudo. Como poeta, é um brunidor: trabalha os poemas até fazer brilhar o coração das palavras.
Para sorte minha, Nirton, aqui e acolá, à surdina, me enviava pedaços dos originais de Trem da memória (Editora Radiadora, 2022), que vinha escrevendo há 30 anos. Aqueles textos me deixavam encantado. E para maior felicidade minha, convidou-me para o prefácio. Assim o fiz, como lá está.
Para quem ainda não viu o livro, nem teve o prazer sensitivo de cheirar suas folhas, vou aqui dar um spoiler, em prosa, do que Nirton escreveu maravilhosamente em 76 páginas inteiriças e em belíssima poesia.
A história é assim: o pai de poeta, um bodegueiro conceituado de Crateús, interior do Ceará, ativista político, que fazia reuniões clandestinas contra a Ditadura Militar de 1964, perseguido pelo Golpe, tem de deixar sua cidade às pressas para se esconder no formigueiro humano de Fortaleza.
Por conta disso, o menino Nirton e sua irmã pequena tiveram que ficar sob os cuidados da avó e tias-avós. Até que numa madrugada fria foram acordados às pressas por uma delas para irem à estação onde o trem esperava. Iriam juntar-se a seus pais na capital, de onde só sabia do mar por ouvir dizer, por imaginar.
Poucos anos depois, Nirton retorna à Crateús em busca do passado que não encontra nas interrogações que faz: “peço água e pergunto se sabe de mim / o neto da costureira, o filho do bodegueiro.”. Só a indiferença responde.
Ninguém se interessava pelo passado de um menino que brincara em frente ao casarão avoengo (“Tudo foi tão de repente / diante dos meus olhos / que não houve tempo / para retornar ao corpo do menino / que brincava na calçada”); que comera com sua irmã Bibia as hóstias fabricadas numa casa para serem consagradas na Igreja Matriz (“O rei dos reis nu em nosso estômago / e os farelos pelo chão / sem patena / sem novena”); não sabiam do menino que não perdia uma sessão de domingo do cine Poty (“como disseram que caminhava assim / o meu bisavô / de bengala e chapéu para a tela muda”) e que levava para trocar as revistas de bang bang e apostar figurinhas na calçada do cinema (“o suor vespertino nas axilas / molhava a máscara do Zorro / nas páginas do gibi”); muito menos de um menino que tomava banho nu no rio ("onde as águas são barrentas e as lavadeiras tristes"), deixando o calção em cima da pedra (“longe do corpo / e dentro deste o mesmo coração / ao sol”).
Quem queria saber? "A cidade ontem era outra / foi Crateús / quando volto crescido / no expresso rápido do zé arteiro / e procuro a asa que fui / na casa que foi", diz o poeta, num lamento de saudade.
O menino crescido volta à Fortaleza, pois, como o autor mesmo confessa em sua saga que "foi lá / onde o menino se fez adolescente (...) que o jovem se fez adulto (...) onde as vogais do interior / encontraram as consoantes das ruas”. Foi lá, nas cadeiras do colégio Liceu e dos cines Moderno, Diogo e São Luiz, que o intelectual se fez poeta e cineasta.
Trem da memória não é apenas aquele trem que trouxe Nirton pela primeira vez à cidade grande, senão um utilitário sentimental de que ele se vale para retornar, quantas vezes quiser, ao seu chão sagrado, em busca das estrelas pelas frestas das telhas (“e / caíam / lentas / em / minha / rede / de / brim...”); dos “personagens desse mundo lá de trás”; ler, como da primeira vez, o poema de “mãos dadas com Drummond”, que lhe fez descobrir o mundo.
O livro de Nirton Venancio é uma medula emotiva que acelera e sobe e desce e range em seu peito todas as noites quando vai dormir, partindo o homem em dois e o poeta em tantos…
Leiam!
- Valdi Ferreira Lima, poeta (Sobral, CE)
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O livro concorre ao Oceanos – Prêmio de Literatura em Língua Portuguesa 2023 e ao IX Prémio Nacional de Poesia António Ramos Rosa, Faro, Portugal.
À venda com o autor e pelo site www.radiadora.com.br 

 

sexta-feira, 26 de maio de 2023

todos os acordes

Foto Acervo Arquivo Nacional


Severino Dias de Oliveira, paraibano de Itabaiana, o Sivuca, o maestro, o compositor, o cantor, o multi-instrumentista... o sanfoneiro.
No seu fole os acordes do choro e música clássica ao frevo e xote, do forró e baião ao blues e jazz.
Falecido em 2006, aos 76, 93 anos hoje do nascimento do "cabelo de milho", apelido que ele adorava tanto que colocou como título de uma cancão que compôs com Paulinho Tapajós, gravada no LP homônimo em 1980, pela Discos Copacabana: "Se pudesse o sol chover / só a metade do que chove no meu coração / dava um lago pra beber / e o chão virava neve de tanto algodão". É o álbum que tem, em tantas outras belezas, Feira de Mangaio (praticamente o roteiro de um filme com a narrativa de imagens), que compôs com sua esposa Glorinha Gadelha, e No tempo dos quintais, também parceria com Tapajós, e dueto com Fagner: "Só sei que enquanto houver os corações / nem mesmo mil ladrões podem roubar canções". Uma preciosidade de versos com aliteração.
Acima, Sivuca no Festival de Vozes da TV Tupi, anos 60.

 

quinta-feira, 25 de maio de 2023

por que você faz cinema?

Foto Agência O Globo, 1972

"Para chatear os imbecis.
Para não ser aplaudido depois de sequências, dó de peito.
Para viver à beira do abismo.
Para correr o risco de ser desmascarado pelo grande público.
Para que conhecidos e desconhecidos se deliciem.
Para que os justos e os bons ganhem dinheiro, sobretudo eu mesmo.
Porque de outro jeito a vida não vale a pena.
Para ver e mostrar o nunca visto,
o bem e o mal, o feio e o bonito.
Porque vi Simão no deserto.
Para insultar os arrogante
e poderosos quando ficam como 'cachorros dentro d'água' no escuro do cinema.
Para ser lesado em meus direitos autorais."
Em 1987 o jornal francês Libération fez a pergunta ao cineasta brasileiro Joaquim Pedro de Andrade. A resposta foi esse ótimo texto, refletindo as dificuldades e garra de filmar os roteiros do Terceyro Mundo, como dizia Glauber Rocha.
Publicado posteriormente no catálogo da mostra retrospectiva que o CCBB, no Rio de Janeiro, fez em 1994, no mesmo ano a cantora e compositora Adriana Calcanhotto musicou o texto e gravou no CD Fábrica do poema.
Joaquim Pedro, que faleceu em 1988 aos 56 anos, não teve tempo de realizar o que considerava seu grande projeto: adaptar Casa-Grande & Senzala”, obra-prima do sociólogo Gilberto Freyre, de 1933, um dos livros mais importantes sobre a formação da sociedade brasileira, ao lado de Raízes do Brasil, do historiador Sérgio Buarque de Holanda, 1936, e O povo brasileiro – a formação e o sentido do Brasil, do antropólogo Darcy Ribeiro, publicado em 1995.
Com exceção do primeiro filme, o documentário Garrincha, alegria do povo, de 1962, sua filmografia é fundamentada em obras pontuais da nossa literatura:
- O padre e a moça, do poema de Carlos Drummond de Andrade;
- Macunaíma, do livro homônimo de Mário de Andrade;
- Os Inconfidentes, baseado em O romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles;
- Guerra conjugal, filme de episódios do livro que reúne vários contistas, entre eles Dalton Trevisan;
- Contos eróticos, roteirizado a partir de histórias publicadas na revista Status;
- O homem do Pau Brasil, seu último trabalho, uma cinebiografia sobre um dos ícones do modernismo brasileiro, Oswald de Andrade, que tem roteiro do próprio escritor.
91 anos hoje de seu nascimento.

sábado, 20 de maio de 2023

o poema não acaba nunca



fortaleza seria logo ali

depois da bica do ipu
passando o arco de sobral
chegando nas bananeiras de caucaia
fortaleza seria logo além
da saudade do quintal de ibiapaba
da lembrança da cancela da fazenda
da memória da casa de oitão
fortaleza seria logo aquém
do meu pai que esperava
de minha mãe que guardava
do irmão que me olhava
(...)

O trem chegou à estação João Felipe
e continua nos trilhos de minha vida.
Na capital
as bancas com suas notícias
a Cruzeiro com a miss na capa
os cowboys destemidos da EBAL.
Puxo os vagões da memória até quando?
O poema não acaba nunca.
O que escrevo são incompletudes.


- Trechos de Trem da memória, Editora Radiadora, 2022
Prefácio: Valdi Ferreira Lima
Posfácio: Mailson Furtado
O livro concorre ao Oceanos – Prêmio de Literatura em Língua Portuguesa 2023 e ao IX Prémio Nacional de Poesia António Ramos Rosa, Faro, Portugal.
À venda com o autor e pelo site www.radiadora.com.br
Vídeo: Oitoemeio Filmes
Música, fragmento: Rain, in your black eyes, Ezio Bosso, 2016

segunda-feira, 15 de maio de 2023

o melhor dos temporais aduba o jardim


Quando ele nasceu, um anjo torto, desses que viviam entre as serras do seu pequeno Cachoeiro, disse “vai, Sérgio, ser gauche na vida”. Parafraseio o trecho do clássico Poema de sete faces, de Drummond, porque todos os dândis enviesados cabem neste mundo, vasto mundo, e mais vasto é o coração dos poetas.

Sérgio Sampaio, de certa forma, foi ofuscado pelo próprio sucesso de Eu quero é botar o meu bloco na rua, involuntariamente lançada como uma moderna marcha-rancho de carnaval, em 1973, e por outro lado, sem muito interesse da mídia que o via como um magrelo esquisito, largado na vala comum dos malditos em plena ditadura militar, mais condescendente ao romantismo nem bossa nova nem rock-and-roll do epônico rei da juventude, seu conterrâneo.
De 1982, quando lançou seu último disco de estúdio, Sinceramente, até os anos 90, Sérgio Sampaio viveu totalmente afastado da mídia, em autoexílio reflexivo, quieto em suas perplexidades, morando nesse período crepuscular entre Brasília, Bahia, Espírito Santo e Rio de Janeiro. Uma de suas mais belas composições, Ninguém vive por mim, penúltima faixa do lado B do seu segundo disco, Tem que acontecer, de 1976, é uma espécie de manifesto íntimo, uma cartografia de seu perfil, um mapeamento do coração como artista neste país sempre ameaçado pelo memoricídio.
Em 1993 o cantor realizou um dos seus últimos shows no palco do Cine Metrópolis da Universidade Federal do Espírito Santo. Sozinho, num banquinho e violão, acompanhado em três músicas pelo amigo Zé Moreira, apresentou dezessete canções de seu rico repertório. Gravado em mídia VHS pelo cinegrafista Talmom Jr., é um dos mais importantes registros de Sérgio Sampaio.
Animado com uma certa repercussão de seu trabalho, regravações por outros cantores, preparava o retorno com um disco de canções inéditas, que seria gravado pela paulista Baratos Afins, em 1994. Mas no dia 15 de maio daquele ano, com a saúde agravada por pancreatite, o cantor faleceu aos 47 anos.
Acima, um trecho do show. O “boêmio cantor da lua / doido que não se situa” e a sintomática canção que citei. “Fui procurar viver além de mim”, diz em um dos versos.
Íntegro, não se entregou. Foi o melhor dos nossos temporais.

 

domingo, 14 de maio de 2023

segundo domingo de maio


Poema da polonesa Wislawa Szymborska, publicado originalmente em seu quinto livro, Sto pociech, Editora Państwowy Instytut Wydawniczy, 1967. No Brasil a Companhia das Letras lançou em 2011 Wislawa Szymborska [Poemas], onde reune 44 poemas, desse e mais sete livros, selecionados e traduzidos por Regina Przybycien, doutora em literatura comparada pela UFMG, que também assina o excelente prefácio.
Vietnã é um exemplar admirável de construção poética de enunciação, a identificação do eu lírico com personagens femininas, a fala que não se esconde no anonimato transcendental, como bem apontou Teresa Fernandes Swiatkiewicz, professora portuguesa de teoria literária, e também tradutora. A voz individual que fala de um lugar, o lugar do feminino.
Inspirada pelas notícias que chegavam da bestialidade da guerra no sudeste asiático, Szymborska escreve os mais belos e tocantes versos sobre o vínculo básico de amor e proteção, quando um ser sobrevive pelo outro.
Nobel de Literatura em 1996, a poeta nunca se colocou no papel de celebridade literária. Imensa em sua simplicidade, não gostava de dar entrevistas, dizia que "Minha vida está nos meus versos.". De Cracóvia ao Vietnã. 

sexta-feira, 12 de maio de 2023

a matriz do samba

foto Nilton Ribeiro

"Não sei quando volto, mas não estou triste."
Dois anos antes de falecer, em 2008, o cantor Jamelão assim se despediu em uma entrevista, depois de sofrer dois derrames em 2006.
O grande e elegante intérprete dos sambas-enredo da Mangueira estava com a saúde abalada, era diabético e hipertenso. Ainda tinha o vozeirão, sua marca registrada em canções dor-de-cotovelo, como a clássica Matriz ou filial, do santista Lúcio Cardim, mas sem forças para se apresentar em shows.
Carioca, batizado José Bispo Clementino dos Santos, foi criado no bairro Engenho Novo. Em 2001 o presidente Fernando Henrique Cardoso concedeu-lhe a medalha Ordem do Mérito Cultural.
Sabemos que não volta, por isso ficamos tristes nos 110 anos de seu nascimento hoje.

terça-feira, 9 de maio de 2023

Santa Rita de Sampa

Ilustração: Guilherme Samora, 2013.

Um dos maiores desejos da cantora Rita Lee quando criança era se encontrar com Peter Pan. Aliás, queria que o rapazinho que se recusava a crescer viesse lhe buscar, assumi-la e sumirem, tirá-la daquela vidinha sossegada ainda nada mutante.
E eis que em uma noite, do terraço do casarão onde morava em São Paulo, a ovelhinha negrinha da família avistou Peter no céu! A menina gritava eufórica. O pai apareceu esbaforido, preocupado:
- Rita, o que está acontecendo?
- Peter Pan! Peter Pan! Eu vi o Peter Pan!
- Onde?
- Logo ali no céu, pai!
- Me conta como era.
- Três luzinhas.
- Ok. De que cor?
- Coloridas.
- O que elas faziam?
- Uma dancinha.
- Ok. Como era essa dancinha?
- Mudavam de lugar uma com a outra.
- O que aconteceu depois?
- Sumiram de repente. Juro que eu vi, pai. Não é mentira!
- Rita, eu acredito em você e vou lhe contar uma verdade: Papai Noel, coelho da Páscoa, Deus e o diabo, céu e inferno, essas bobagens não existem, quem compra os presentes é sua mãe. O que você viu não foi o Peter Pan. Você viu um disco voador, minha filha!
Essa história Rita contou em Uma autobiografia (Editora Globo S.A., 2016).
Ela dizia, com sua graça e irreverência, que nascer no dia 31 de dezembro “é sacanagem”, pois levava um ano inteiro literalmente nas costas para no dia do aniversário ficar ouvindo logo cedo “hoje a festa é sua, hoje a festa é nossa, é de quem quiser, quem vier”. E lembra que quando criança, para compensar se consolava repetindo o ditado “os últimos serão os primeiros”. Consolo que logo se desfazia quando um primo chato dizia: “Sim, os primeiros a chegar por último!”.
Essa é a Rita Lee de quem sempre lembraremos, com seu humor gostosamente debochado, em tudo na vida. Desde quando ela apareceu na música tornou-se a mais completa tradução do Brasil além de Sampa. A deselegância discreta, ou indiscreta elegância, de nossas meninas. Muita coisa boa passou a acontecer em nosso coração nos cruzamentos de todas as avenidas do Brasil. E assim como Drummond dizia que "sem discurso nem requerimento, Leila Diniz soltou as mulheres de vinte anos presas ao tronco de uma especial escravidão", atribuo à cantora as palavras do poeta, e com saudade parafraseio que "toda mulher é meio Rita Lee”.
Uma sacanagem você partir em qualquer dia do ano, Rita para sempre Lee. Mas lá dos céus do seu terraço, nos discos voadores você pisca as três luzinhas coloridas com seu Peter Pan.

domingo, 7 de maio de 2023

a cantora do amor demais

"Rua Nascimento Silva, cento e sete / você ensinando pra Elizete / as canções de canção do amor demais..."
- Começa Vinicius de Moraes na linda Carta ao Tom, composta em 1974, em parceria com Toquinho, "endereçada" ao seu amigo Jobim.
Relembrando uma Ipanema que "era só felicidade", que "era como se o amor doesse em paz", com "esse Rio de amor que se perdeu", como continua a letra, a musa citada é a grande diva Elizete Cardoso, a voz enluarada do nosso samba-canção, que nos deixou em 1990, ao final da manhã de 7 de maio, aos 69 anos. Elizete passou três anos se tratando de um câncer no estômago, diagnosticado em uma turnê no Japão, quando se sentiu mal no hotel.
Mesmo doente, ela comparecia aos seus shows, muitas vezes não conseguindo ir até o final, de tão debilitada. O público se emocionava e aplaudia a beleza daquela mulher e seu canto de amor demais. 

sábado, 6 de maio de 2023

o século do cinema


"Esta honra só posso aceitar em nome de todos os inconformistas. Podem ser livres, mas não se consideram únicos nem se veem como os melhores".
- Orson Welles ao agradecer a tardia homenagem do Instituto do Cinema Americano, em 1975.
Quatro anos antes a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas concedeu a ele o Oscar Honorário. O diretor não esteve presente na noite de cerimônia. Mandou uma gravação com o agradecimento diretamente para o colega John Huston, que lhe faria a entrega no palco. "É mais divertido olhar adiante do que para o passado. 30 anos de carreira dão para muito, mas não posso esquecer que passei esse tempo sozinho", disse.
A grandiosidade de Orson Welles nunca foi devidamente reconhecida pela indústria cinematográfica dos Estados Unidos. Em toda sua filmografia só ganhou um Oscar, pelo roteiro de Cidadão Kane (Citizen Kane), em 1941. Merecia mais. O cineasta perdeu a estatueta de melhor filme para Como era verde o meu vale (How green was my valley), de John Ford, e ator para Gary Cooper em Sargento York (Sergeant York), de Howard Hawks.
Em 2001 o historiador e professor de cinema da UFC Firmino Holanda lançou o livro Orson Welles no Ceará, Edições Demócrito Rocha, intensa, detalhada e surpreendente pesquisa sobre a passagem do cineasta em terras alencarinas para rodar o mitológico, e inacabado, It's All True, em 1942. Holanda, com seu olhar apurado, dedicação admirável e escrita fluente, é um dos maiores estudiosos de Welles e Glauber Rocha.
Com um viés mais para reflexão sociológica, Nem toda história é uma ilha, ensaio do publicitário Fernando Costa como trabalho de conclusão de curso de Ciências Sociais, na UFC, é outra publicação relevante sobre o tema. Lançado em 2017 pela Aldeota Edições, o autor desenvolve seu texto a partir do encontro de Welles com o jangadeiro Manuel Jacaré e o que mudou na vida de ambos para sempre, pontuando com a denominação "indivíduos sócios-históricos" conceituada pelo antropólogo estadunidense Marshall Sahlins.
Em 2019 Firmino Holanda retoma o assunto expandindo sua pesquisa transversalmente com o cinema. Em parceria com o cineasta Petrus Cariry escrevem o roteiro e dirigem A jangada de Welles, apresentado na 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. O documentário dá um enfoque elucidativo no caso dos pescadores cearenses que remaram até a sede do governo Vargas, no Rio de Janeiro, para apresentar reivindicações por direitos trabalhistas e por moradia no seu espaço tradicional, alvo de especulação imobiliária.
Welles é inesgotável. Livros e documentários serão sempre instigantes sobre esse gênio que completa hoje um século e oito anos de nascimento.
O cineasta fotografado por Victor Skrebneski em seu estúdio, Los Angeles, 1970.