terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

o homem que amava os livros

Foto: Acervo Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, USP 

O bibliófilo José Mindlin, criador da mais importante biblioteca privada do Brasil, quatro anos antes de falecer, aos 95, em 28 de fevereiro de 2010, doou sua coleção para a Universidade de São Paulo, com mais de 60 mil volumes.
“A gente passa e os livros ficam. Então, é preciso que esse conjunto seja mantido e aumentado com o tempo. Sentirei saudades dos livros…”, disse durante a assinatura do termo de doação no auditório do Conselho Universitário.

sábado, 25 de fevereiro de 2023

as cartas de Fernando


Foto: Fernando Gomes / Agência O Globo, 1995

"E tem o seguinte, meus senhores: não vamos enlouquecer, nem nos matar, nem desistir. Pelo contrário: vamos ficar ótimos e incomodar bastante ainda."
- Trecho de uma carta de Caio Fernando Abreu a sua amiga Jacqueline Cantore, em 1° de novembro de 1981.
O escritor gaúcho foi um missivista compulsivo. De sua Olivetti Lettera 44, datilografou uma infinidade de cartas, com forte essência poética, dos mais variados e cotidianos assuntos, de fatos comezinhos a reflexões existenciais e filosóficas. Escritores, atores, cantores, amigos, eram os destinatários.
O poeta, curador literário e professor da UFRJ Ítalo Morriconi, numa pesquisa minuciosa, reuniu dezenas dessas cartas e juntamente com escritos de cartões postais, bilhetes, publicou em livro, Caio Fernando Abreu: Cartas (Editora Aeroplano, 2002), com mais de 500 páginas, o que nos dá com a narrativa fragmentada uma espécie de um romance de vida, de fôlego combativo e resistente.
27 anos hoje que ele faleceu, aos 47. Caio Fernando Abreu viveu em período brabo de ditadura militar, foi um dos primeiros a escrever abertamente sobre sexo numa visão dramática, e assumiu sem rodeios sua homossexualidade. 

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

sumiço

foto: Ailine Liefeld

Mas o menino sumiu:
foi embora como quem cresce
e silenciosamente
atravessou os trilhos noturnos
da ponte de ferro
sobre o rio poty
onde as águas são barrentas
e as lavadeiras tristes.
- Trecho do meu livro-poema Trem da memória (Editora Radiadora, 2022).
Prefácio: Valdi Ferreira Lima
Posfácio: Mailson Furtado
À venda pelo site www.radiadora.com.br e com o autor.


quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

cinzas e nada mais


À parte um ou outro conceito religioso, todas as crenças convergem a uma só direção. As cinzas simbolizam a reflexão, a conversão, a mudança, a passageira, transitória, efêmera fragilidade da vida humana, sujeita à morte.
Quarta-feira de cinzas, belíssimo quadro do pintor alemão Carl Spitzweg, século 19.


 

terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

concentração de tempos

 Coleção José Medeiros/Acervo Instituto Moreira Salles, 1952
 
Do alto
as retinas miram a beleza
filtram o murmúrio da cidade
as ruas em convulsão
os homens e seus muitos irmãos
seus tantos desafetos
entre trânsito e transe
entre mares e margens
entre rios e janeiros.
Orquídeas, bromélias
antúrio, velózia
esquilos, gambás
gavião, pica-pau:
a natureza que o tempo sabe e ouve.
A montanha aponta o mar
sem medo dos homens.
 
 
Do meu livro em preparação ©Raios.

domingo, 19 de fevereiro de 2023

um gladiador no cerrado


foto Henry Ballot / Arquivo Público do DF

O cidadão na foto acima (de terno e chapéu de couro!), entre serpentinas e confetes, é Issur Danielovitch Demsky, mais conhecido como Kirk Douglas. O cenário: salão do então majestoso Hotel Nacional de Brasília. A data: 23 de fevereiro de 1963, um sábado de carnaval. No ano anterior a cidade recebeu no mesmo mês a atriz Rita Hayworth, que participou de um baile no Teatro Nacional, e sem muito se entrosar com aquele tipo de festa, ficou sentadinha e muito elegante ao lado do então primeiro-ministro Tancredo Neves.
Kirk Douglas, naquele ano pré-golpe, acompanhado da sua segunda mulher, Anne Boydens, estava na cidade do Rio de Janeiro, convidado para o carnaval carioca. Mas pegou um voo no Convair da Cruzeiro do Sul para conhecer a nova capital país. Brasília era um enorme canteiro de obras, muitos esqueletos de edifícios, uma vastidão sem fim de esperança.
Os candangos se animavam como podiam naqueles quatro dias de samba, suor e poeira vermelha. O pessoal que pegava no pesado e os moradores das asas Sul e Norte iam para plataforma superior da Estação Rodoviária, onde aconteciam os desfiles das duas únicas escolas de samba, a Alvorada em Ritmos e a da cidade-satélite Candangolândia.
O ator de Spartacus não assistiu a nenhum desses desfiles. No vigor dos seus 53 anos e pique de gladiador, no dia seguinte ao baile no hotel, deu um passeio pela cidade, andou de lancha, pescou no artificial Lago Paranoá e se mandou de volta para o resto de domingo de carnaval no Rio. 

sábado, 18 de fevereiro de 2023

o último sábado de carnaval


No dia 17 de fevereiro de 1973 Pixinguinha veste o seu melhor e mais engomado terno de linho branco, e de sua casa, em Ramos, zona norte do Rio de Janeiro, segue para o batizado do filho de um grande amigo, na Igreja Nossa Senhora da Paz, em Ipanema. Poucas horas antes de sair, recebeu a visita do compositor e produtor musical Hermínio Belo de Carvalho e do fotógrafo Walter Firmo.

Era pleno sábado de carnaval. Estivera adoentado naqueles últimos dias, mas o mestre atravessa a cidade entre alguns foliões, sereno e contente com o seu compromisso.
Já se aproximando o final da cerimônia, logo após a criança receber a água benta, Pixinguinha afrouxa a gravata, passa o lenço na testa... começa a sentir-se mal. Em segundos cai, fulminado por um infarto, aos 75 anos.
A notícia se espalha rápido pelas ruas do bairro. Naquele momento, cai um temporal na capital carioca. Ao saberem do ocorrido, os componentes da Banda Ipanema, que estavam próximos da igreja, sob o comando do lendário Albino Pinheiro, continuam o desfile e tocam Carinhoso entre lágrimas e chuva. Era a estreia da Banda. E dessa forma foi abençoada pelo santo Pixinga num improvisado enredo de reverência. O coração de todos batendo triste, numa alegoria pelas ruas com as cores dos confetes molhados se desmanchando.
Na manhã seguinte o corpo do músico segue para o Cemitério de Inhaúma, onde estava sua esposa, falecida há um ano. Um cortejo carinhoso de choros naquela transversal manhã de um domingo sem carnaval.
Walter Firmo conta na biografia Pixinguinha: Vida e Obra, de Sergio Cabral (Editora Lidador, 1978), que sabia que o amigo não estava muito bem de saúde, com visíveis traços de decadência física. Autor da clássica foto de Pixinguinha, de 1967, sentado numa cadeira de balanço, debaixo de uma mangueira em sua casa, com o saxofone no colo, preferiu preservar a imagem do músico e não levou sua máquina naquela que seria sua última visita. Mas se arrepende ao lembrar o olhar de despedida de Pixinguinha na moldura da janela. A foto que não fez ficou gravada no “tato das retinas”, como diz o poeta Domingos Pereira Netto.
Ilustração: Elifas Andreato, capa do disco Pixinguinha - Dez anos sem ele (Gravadora Odeon, 1983).

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

o homem que amou o Brasil


foto Acervo Fundação Darcy Ribeiro

"Doutora, estou com uma vontade de dar uma aula, a senhora me traz uma criança pra eu dar a aula?“.
O antropólogo Darcy Ribeiro fez esse pedido no hospital, um dia antes de morrer, na madrugada de 17 de fevereiro de 1997.
Ali no leito, deu aula a uma criança de 9 anos. Falou sobre o Brasil, sobre a importância de respeitar todas as culturas. Falou sobre escolas e sambódromos. Era o testamento que ele queria deixar. 

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

boletim de um tempo


“Nasci em crateús, sertão dos inhamus, ceará, numa manhã de fevereiro, dia 15, uma terça-feira, uma semana antes do último dia de carnaval. A lua estava minguante. Enquanto eu crescia rumo à lua nova, me esquivava da folia que chegava no peito de minha mãe que me guardava.”

Trecho inicial de dados biográficos no meu livro-poema Trem da memória (Editora Radiadora, 2022), dedicado à casa onde nasci, em que narro minha infância no interior (onde rabisco os nomes próprios com letras minúsculas, porque sou menino) aos primeiros anos na capital (onde escrevo com maiúsculas porque acho que sou adulto).
Aos tantos amigos queridos que escreveram mensagens na redes sociais pelo meu aniversário, a minha gratidão com “a ternura mais funda / e mais cotidiana” que aprendi com a poesia de Bandeira.
Meu coração abraça o coração de vocês. 


 

terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

corações afinados


"Naquele dia, não sei por que, fui dormir e não esperei ele chegar. Soube que ele chegou, tirou o paletó, sentou ao piano e tocou ‘Noturno’. Quando terminou, virou o pescoço para trás, como se fosse descansar, e não acordou mais".

Assim relata o pianista e professor Renato Mendonça sobre a morte do seu pai, o compositor Newton Mendonça, aos 33 anos, em 1960. O filho não dormia enquanto ele não chegasse trazendo uma barra de chocolate. Mas naquela noite o sono do menino não deixou ver o sono definitivo do pai, abatido por uma nota só de um enfarto no silêncio noturno de sua casa.
Ele foi um dos principais criadores da Bossa Nova quando João Gilberto gravou Desafinado, parceria com Tom Jobim, no seu primeiro disco, Chega de saudade, 1959.
Assim como a faixa-título, a composição tornou-se icônica naquele jeito novo de cantar, quase sussurrando no ouvido o que dizia o peito de um desafinado.
Mendonça deixou poucas canções, mas todas com sucesso e reconhecimento por quem gravou. Revelou-se na história da música brasileira a nossa enorme gratidão.
Hoje 96 anos de seu nascimento.
Acima, na granulação de uma foto de álbum de família, os corações afinados dos Mendonças: o grão do pai, o pão do filho.


 

domingo, 12 de fevereiro de 2023

São Dominguinhos



"Tô com saudade de tu", Dominguinhos... do olhar carinhoso em suas canções.
Meu pensamento viaja: hoje 82 anos de seu nascimento.
Um cantador com sua sanfona na constelação do sertão de Aquário.
Há dez anos você se foi: mas sei que está nos braços da paz.

Foto: cena do documentário longa-metragem Dominguinhos, de Joaquim Castro, Eduardo Nazarian e Mariana Aydar, 2014.


 

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

o último tratamento

 

©Javier Blasco / EFE / Newscom - Maxppp

"Os filmes não existem só ali, na tela, no instante de sua projeção. Eles se mesclam às nossas vidas, influem na nossa maneira de ver o mundo, consolidam afetos, estreitam laços, tecem cumplicidades."
- Jean-Claude Carrière, o mestre roteirista da escrita contemporânea, em seu ótimo livro A linguagem secreta do cinema, Editora Nova Fronteira, 1994.
Os roteiros de Carrière fizeram-me ver o mundo através do cinema, consolidaram afetos em minhas aulas como professor, estreitaram laços com tantos alunos, teceram cumplicidades com muitos amigos roteiristas. Tudo mesclado às nossas vidas.
Jean-Claude deu o último tratamento no seu roteiro de vida na madrugada de 9 de fevereiro, há dois anos. Dormia quando partiu.
Na foto, Carrière no Festival Internacional de Cinema de Huesca, Espanha, em 2016, quando recebeu o Prêmio Luis Buñuel.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

belo e eternamente jovem



Em 1949 Nicholas Ray dirigiu o ótimo drama noir O crime não compensa (Knock on any door), estrelado por Humphrey Bogart. Mas é o personagem de John Derek, um jovem desajustado, o mais marcante no filme, e a certa altura de uma cena diz “Live fast, die young, leave a good-looking corpse” / “Viva rápido, morra jovem e deixe um cadáver bonito”.
Seis anos depois Ray volta ao tema no clássico Juventude transviada (Rebel without a cause), com James Dean no papel do problemático Jim Stark. Provavelmente o diretor lembrou-se da frase e disse para o ator, que a tomou para si, sempre repetindo em entrevistas, a ponto de ser creditada de sua autoria.
James Dean incorporou literalmente o sentido fora das telas, pois vivia intensamente na velocidade dos dias. Tinha paixão por automobilismo, que ele chamava de "perspectivas libertadoras". Com a grana que recebeu por seu trabalho em Vidas amargas (East of Eden), de Elia Kazan, comprou alguns carros e passou a correr em eventos profissionais.
Seu coração selvagem tinha pressa de viver. Morreu jovem numa curva do caminho quando seu Porsche 440 a 135 quilômetros por hora completou o seu destino. Eram 17h45 quando o sol amarelava no poente das colinas, na Rota 466, no caminho de Los Angeles a Salinas.
Hoje 92 anos de nascimento do aquariano que se tornou um “good-looking corpse” aos 24.
Acima, o ator fotografado em sua casa por Sanford Roth, 1955.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

a alma e o tempo do cinema


Quando um filme não é documentário, ele é sonho. Por isso, Tarkovski é o maior de todos, pois se move, sem dúvida, no espaço do sonho; não explica, o que explicaria, afinal de contas? Ele é um sonhador que conseguiu pôr em cena suas visões, no mais pesado mas também mais dúctil de todos os meios.

O dissecador da alma Ingmar Bergman sobre o escultor do tempo Andrei Tarkovski, na autobiografia Lanterna mágica, lançada em 1987, Editora Guanabara.
Acima, Alexander Kaidanovsky em uma cena na zona do futuro indefinido de Stalker (Stalker), 1975.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

um cineasta apaixonado

foto Joe Gaffney, 1977 

Em 25 anos ininterruptos de trabalho, François Truffaut dirigiu 26 filmes, conseguindo de maneira inteligente conciliar um grande sucesso de público e de crítica.
Em toda sua rica cinematografia, Truffaut amava a infância, o cinema, as mulheres - não necessariamente nessa ordem, mas tentando aqui sintetizar em três grandes filmes:
- transformou sua traumática infância em um dos mais belos filmes de sempre, Os incompreendidos (Les 400 coups), longa de estreia, em 1959;
- traduziu a sua paixão como cineasta no único e definitivo filme sobre os bastidores de uma produção, o metalinguagem A noite americana (La nuit américaine), em 1973;
- expressou sua paixão pela alma feminina em O homem que amava as mulheres (L'homme qui aimait les femmes), de 1977.
Hoje 91 anos de nascimento desse aquariano que partiu na juventude da maturidade, aos 52 anos. Não teve tempo de escrever sua biografia, mas sua vida está claramente exposta e compartilhada em seus filmes.

foto Joe Gaffney, 1977

 

sábado, 4 de fevereiro de 2023

Âmago


foto: Arquivo PhotoSet

em memória do cineasta André Luis da Cunha

Ninguém sabe
o que há por trás
das canções.
Ninguém nunca
foi ao pré-sal
dos corações.
Sem rima,
choram pássaros
que não voam.
- Do meu livro em preparação Raios.



 

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Odoyá


Foto: Arquivo Correio24horas

Ela mora no mar
ela brinca na areia
no balanço das ondas
a paz ela semeia...

- Versos de Lenda das sereias, de Vicente Mattos, Dinoel e Arlindo Velloso, samba-enredo composto em 1976 para a Império Serrano, gravado em compacto simples pela Tapecar Gravações S.A., interpretação de Vicente Mattos.
2 de fevereiro, Dia de Iemanjá, a Rainha do Mar nas religiões afro-brasileiras.
Na religião católica Dia de Nossa Senhora dos Navegantes, das Candeias, da Candelária, da Luz, da Purificação...
Uma senhora em todas. Todas senhoras em uma. A paz ela semeia.


 

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

perfume de mulher


Foto: Acervo Centro Cultural Cartola

Numa tarde de 1975, o ainda hoje desconhecido compositor Nuno Veloso pegou o casal amigo Cartola e Dona Zica para um passeio na Barra da Tijuca e depois fazer uma visita ao violonista Baden Powell. Não o encontraram. Na volta, Nuno passou numa floricultura para comprar umas mudinhas de roseira que prometera para Dona Zica.
Dias depois, numa manhã ensolarada, ao abrir a porta e ir ao jardim como sempre fazia, Dona Zica espantou-se com tantos belos botões desabrochados.
- Cartola, venha aqui! Venha ver o jardim! Por que é que nasceu tanta rosa? – gritou ao marido.
O compositor caminhou naquele passo cadenciado, ajeitou os óculos ray-ban escuros, olhou serenamente deslumbrado e respondeu:
- Ah, não sei, Zica. As rosas não falam!
A poética explicação foi a inspiração para o compositor criar uma das mais belas obras do cancioneiro brasileiro. A simplicidade da narrativa do samba-canção tem um impacto emotivo justamente pela singeleza, pelo afago no coração de quem ouve.
Próximo de completar 67 anos de idade, Cartola concluiu a música e, dizem os pesquisadores, se presenteou. Gravou em 1976, no LP Cartola II, produzido pelo escritor e jornalista cearense Juarez Barroso, como bem informa a escritora Natercia Rocha em seu primoroso livro Juarez Barroso – O Poeta da Crônica-Canção, lançado em 2018 pela Editora SubstÂnsia.
Sobre a composição, na verdade, aquele buquê de pérolas quem ganhou mesmo foi sua amada Dona Zica, pois é dela que vem o perfume que as rosas exalam.