“Somos mentirosos de nascença, Breta. E fadados a verdade que nós mesmos não compreendemos. Como se nossas verdades saíssem da sucata, do ferro velho. Somos assim, habitantes de um cemitério de navios, revestidos de melancolia e ferrugem. Os únicos que se salvam desta oxidação são os artistas. Talvez porque iluminem parcialmente os nossos túneis, sem temor de enfrentar detritos, monstros, e formas estranhas sem nome, que Eulália chama de alma.”
De sua bibliografia de 25 títulos, entre romances, crônicas, contos, memórias, infanto-juvenil e ensaios, esse foi o que mais me impressionou, pela fina elaboração técnica narrativa nas suas quase 800 páginas. Nélida, filha de emigrantes da Galícia, parte de suas lembranças de infância para reconstituir a história fictícia de uma família de imigrantes que aportam no Rio de Janeiro na virada do século passado. O livro é uma metáfora do Brasil.
E arrisco dizer que é tão memorialista quanto os biográficos Coração andarilho, O livro das horas e Uma furtiva lágrima, pois encontramos Nélida nas vidas dos dezesseis personagens que se entremeiam, recriando assim sua realidade a partir do próprio discurso. Não à toa, Nélida é um anagrama do prenome de seu avô, Daniel Cuiñas. O parágrafo que destaquei acima é um dos pontos reflexivos entre autora, personagens e obra.
Nélida Piñon, primeira mulher a presidir a Academia Brasileira de Letras (1996 a 1997), faleceu hoje, aos 85 anos, em Portugal, onde morava desde 2018. Seu corpo será trazido para o sepultamento no São João Batista, Botafogo.
De volta à América do Sul, à república dos seus sonhos, onde começou a escrever a história do patriarca Madruga. Somente artistas como Nélida Piñon nos salvam dessa oxidação de melancolia e ferrugem, da verdade que nós mesmos não compreendemos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário