sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

aquela estrela é a dele


Augusto Pontes, pensador, jornalista, professor, publicitário, poeta, frasista, provocador, boêmio... Guru de toda uma geração da cultura cearense que se fez nos anos 60, 70, 80, de sempre, faria hoje 87 anos.
É dele o verso “Vida, vento, vela, leva-me daqui”, uma beleza de aliteração inserida na letra de Mucuripe, de Belchior, musicada por Fagner, assim como “Eu sou apenas um rapaz latino-americano sem parentes importantes” foi inspirada em “Eu sou apenas um rapaz latino-americano sem parentes militares”, que Augusto disse em seu discurso de posse como professor de Comunicação da UnB, no começo da década de 70. Na plateia, o conterrâneo Belchior.
O que se denominou na música cearense como Pessoal do Ceará, deve-se muito a ele. Não somente como pensamento e incentivo, também como autor de muitas letras de canções, como Lupiscinica, musicada por Petrucio Maia, Carneiro, por Ednardo, com quem criou o Massafeira Livre, evento de quatro históricos dias, noites e madrugadas no Theatro José de Alencar, em Fortaleza, que revelou dezenas de cantores, compositores, poetas, fotógrafos, artistas plásticos, uma infinidade de talentos da cena artística cearense de 1979.
Em maio de 2010, um ano após a sua morte, a ótima revista Aldeota, criada pelo publicitário Fernando Costa, dedicou sua 13ª edição a ele. Artigos assinados pela ensaísta e historiadora Isabel Lustosa, os jornalistas Augusto Cesar Costa, Alexandre Barbalho, Paulo Linhares, o arquiteto, urbanista e letrista Fausto Nilo, pontuam referências e reverenciam a genialidade de Augusto Pontes.
Essa mesma turma e muitos outros escreveram para o livro organizado pelo arquiteto e compositor Ricardo Bezerra, Augusto Pontes, o amigo genial, lançado em maio deste ano. Em formato de edição independente, é uma espécie de biografia afetiva através de textos dos que conviveram com ele.
Na reprodução acima, a foto de capa é de Gentil Barreira, durante a gravação do disco Massafeira.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

ainda sou uma garotinha

Em 1999, o baterista João Barone, do Paralamas do Sucesso, idealizou e organizou o projeto Submarino Verde e Amarelo, para arrecadar fundos para a Associação dos Amigos do Instituto Nacional do Câncer – AMINCA.

O show, realizado em 14 de julho, no Teatro da Lagoa, Rio de Janeiro, reuniu várias cantoras e cantores brasileiros interpretando canções emblemáticas dos Beatles: Zélia Duncan, Flávio Venturini, Zizi Possi, Beto Guedes, Zé Ramalho, Fernanda Takai, Frejat, Samuel Rosa... a participação de Cássia Eller foi um dos destaques. A eterna garotinha cantou Golden slumbers, Carry that weight e The end, as três penúltimas faixas (a última é Her Majesty) do lado B do álbum Abbey Road, que em setembro daquele ano comemorou 30 anos de lançamento.
Acompanhando Cássia, o auxílio luxuoso de Barone, Vinícius Sá no baixo, Marçalzinho na percussão, Luizinho Avellar no piano, Cyro Telles nos teclados, Fernando Vidal na guitarra, Filipe Freire no violão e guitarra e Cecília Spyer, Suzana Bello e Matias Corrêa nos vocais. O evento foi lançado em CD e DVD em 2000.
21 anos hoje que Cássia não morreu.

 

quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

a voz das palavras


foto Edward Kaprov, 2015


Em 2007, o escritor, ativista e pacifista israelense Amós Oz escreveu a autobiografia Um conto de amor e trevas, onde 120 anos de memória de sua família, com suas dores, vitórias e paradoxos, alinham-se à turbulenta história de seu país.
Celebridades materializam-se em personagens autênticos, de David Ben-Gurion, um dos fundadores do estado de Israel, ao lendário líder das organizações clandestinas e primeiro-ministro Menahem Begin, passando pela grandeza da poesia hebraica moderna.
Amós Oz, homenageado na FLIP em 2007, foi um dos responsáveis pelo movimento Paz Agora, em que advogava pela solução de dois estados Israelense-Palestino. Faleceu em 28 de dezembro de 2018, aos 79 anos. Enfrentava outra luta, contra um câncer.
Mesmo acusado de “traidor” por Israel, Oz mantinha-se contra invadir territórios e bombardear civis em nome do que o país chama de “seu Deus”. Humanista, dizia que sua qualificação para discutir política era ter ouvido para palavras, e que “eu ergo minha voz e grito sempre para combater uma linguagem corrompida.”
Seus livros são apaixonantes, admiráveis, como A caixa preta, 1987, Pantera no porão, 1999, o último, de 2014, Judas, onde através do amor entre um jovem estudante e uma bela e misteriosa garota, questiona as guerras e a fundação de Israel.
A citada autobiografia possivelmente tenha a densidade mais definida e reflexiva de toda sua obra. A atriz Natalie Portman estreou na direção, em 2015, com o tocante De amor e trevas, baseado no livro. A diretora surpreende com a literalidade narrativa do compromisso de Amós Oz com as palavras, com a história.
Livro e filme traduzem bem o sobrenome que o escritor adotou (ao deixar o de batismo, Klausner): força e coragem, o significado de Oz em hebraico.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

Armadura



Meu corpo é a única coisa que tenho
que é nada
e como suicida
luto contra moinhos, tempestades e solidão
que é tudo.
Escondo-me nesta armadura de ossos, carne
e vestimentas
e espio a vastidão do mundo pelos buracos dos olhos
como quem espia lugares estranhos
infinitos
perigosos.
Meu corpo é a única coisa que tenho
para carregar o pretexto da alma.
É magro, feio e escandaloso
o corpo
mas é única coisa que tenho
para caminhar pelo tempo e pelos sertões.
Garantia não tenho
se o meu corpo é forte e frágil ao mesmo instante
se me sujeito ao abismo
ao chão
à poeira
se estou marcado para me tornar saudade
lembrança
e fotografias
e minha história não terá mais
um cavalo para montar
e serei uma estátua invisível no espaço.
Garantia não tenho de nada
nada
não levarei escondido no bolso
nenhuma semente
nenhum suspiro
nenhum gesto
pois tudo é podre
condenável
consumível.
Só é garantido o mais difícil:
a miragem na imensidão
o que se supõe ao longe
o completo mistério
para se chegar até lá
não se sabe com que corpo
não se sabe com que asas
não se sabe.
..............................................................................................................
Poema publicado no livro Poesia provisória, Editora Radiadora, 2019
Prêmio Internacional Pena de Ouro, 2022
Casa Brasileira de Livros, RS
3º lugar
Pena de Ouro é um concurso para contos e poemas, interagindo com autores de toda a lusofonia.
Os textos finalistas são avaliados por jurados do Brasil, Portugal, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe.

sábado, 24 de dezembro de 2022

o espírito natalino de Fellini


 Foto Paul Ronald

“Acredito em Jesus: que ele não é apenas o maior personagem da humanidade, mas que continua a sobreviver no ser que se sacrifica por seu próximo. Sou ignorante a respeito dos dogmas católicos. Talvez seja herético. Meu cristianismo é bruto. Não pratico os sacramentos, mas penso que a prece poderia ser considerada como uma ginástica que nos levaria cada vez mais perto do sobrenatural.”
- Federico Fellini em sua biografia Fellini por Fellini (L&PM Editores, 1983).
Abaixo, Marcello Mastroianni em uma cena de Oito e meio (8½), 1963. O ator interpreta um diretor de cinema em crise, Guido Alsemi, sem inspiração para o próximo filme, pressionado pelo produtor, esposa, amigos e quem olhar para ele.
Misturando ficção com realidade, passado com presente, o que foi com o que poderia ter sido, Fellini usa o exercício de metalinguagem para contar o que ele mesmo estava passando naquele momento, depois de ter dirigido apenas um episódio no longa Boccaccio 70, após a pulsação criativa de La dolce vita, de 1960. Alsemi é alter ego de Fellini.
Na cena o cineasta-personagem, como Noel vindo de uma atmosfera onírica típica de seus filmes, chega a sua casa trazendo presentes e pingos de neve sobre a roupa. Em seu “cristianismo bruto”, o simbolismo é uma prece que o leva cada vez mais perto do Jesus que acredita.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

mirante


 IV

no começo da terra vermelha e cidade
meu pai passou por aqui
enquanto juscelino passava em seu jeep
adubou concreto
elevou colunas
estendeu asas:
o sonho avesso de pau a pique
de vastidão por imensidão
de cerrado por sertão
entorpecido de poeira e saudade
um dia subiu no pau de arara que voltava
sob o olhar franzido de juscelino
preferiu
o abraço de minha mãe
o leite ralo das cabras
e a esperança de sol a pino
- Poema do meu livro em preparação A paisagem e a distância - escritos sobre Brasília.
Foto ilustrativa para esta postagem: Candangos, 1957, de Mário Fonteneles.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

escritores à beira de mais um sonho


 
sobre viver

I
só escaparemos se conversarmos
se sentarmos
à mesma mesa
e trocarmos olhares
como amigos
ou como sobreviventes.
viver
(não se sabe)
é mais um sonho
mais um ofício...
modelar o dia
atravessar a noite
(não se sabe)
carece de sonho
tem jeito de ofício...
sonhar
(não se sabe)
é coisa de ofício
ou o ofício nada vale
- é apenas um sonho?
Poema do meu livro em preparação A paisagem e a distância – escritos sobre Brasília.
Na foto, à mesa e sobrevividos, os escritores Lima Trindade, Noélia Ribeiro, eu, Nicolas Behr, Alcina Behr, Alex Cojorian, Marcelo Frazão e Wilton Rossi.
Bar Beirute, 107 Norte, Brasília, depois de um dia modelado, atravessando a noite nesta “cidade que foi feita para impressionar os arqueólogos do futuro”, como digo em outro verso.

terça-feira, 20 de dezembro de 2022

eu viajei de trem


O menino nos leva pelo braço a visitar a sua Crateús, a casa da dona Valderez e do ‘seu’ Francisco e a revisitar - com olhos mais atentos - a nossa Fortaleza. Diz o poeta Valdi Ferreira Lima, no prefácio, que "todas as vezes que Nirton fecha os olhos a memória germina". Eu embarquei nesse Trem da Memória, de onde não consigo mais sair, atravessamos juntos os trilhos noturnos sobre o rio Poty "rumo ao mar da capital onde este poema se acende".
"Agora só resta crescer.
Se não trago o menino de volta,
alcanço o homem e sua revolta"
"Puxo os vagões da memória até quando?
O poema não acaba nunca".
Dia desses eu li um texto, um recorte do Trem da Memória, quando ele ainda estava em construção. Lembro de ter ligado pro Nirton com a voz embargada. Ele estava em Brasília, conversamos por um bom tempo sobre o texto, sobre lembranças, memórias, sobre a vida! Esta semana recebi o livro pelo correio (como é bonito!). Grata pelo presente, pela presença e por toda poesia que me atravessa quando leio os seus versos. Você é imenso, Nirton Venancio!

Marta Pinheiro, produtora cultural, poeta (Ceará)
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Trem da memória
Editora Radiadora, 2022
Coordenação Editorial: Alan Mendonça
Prefácio: Valdi Ferreira Lima
Posfácio: Mailson Furtado
Concepção de capa: Léo de Oliveira e Alan Mendonça, sobre pintura de Joseph M. W. Turner
Revisão: Galileu Viana
Impressão e acabamento: Expressão Gráfica, Fortaleza 

 

segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

elogio ao poeta


foto Stevan Kolumban Hess, 2010

A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.
― Manoel de Barros, poema Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo, publicado no livro homônimo, 2001.
Hoje 106 anos significantes de seu nascimento.

sábado, 17 de dezembro de 2022

os sonhos de Nélida


“Somos mentirosos de nascença, Breta. E fadados a verdade que nós mesmos não compreendemos. Como se nossas verdades saíssem da sucata, do ferro velho. Somos assim, habitantes de um cemitério de navios, revestidos de melancolia e ferrugem. Os únicos que se salvam desta oxidação são os artistas. Talvez por iluminem parcialmente os nossos túneis, sem temor de enfrentar detritos, monstros, e formas estranhas sem nome, que Eulália chama de alma.”

- Fala de Madruga em A república dos sonhos, romance de Nélida Piñon, lançado em 1984, Troféu Associação Paulista de Críticos Teatrais e Prêmio PEN Clube do Brasil. A autora passou praticamente três anos trancada numa pensão em Congonhas, Minas Gerais, para escrevê-lo.
De sua bibliografia de 25 títulos, entre romances, crônicas, contos, memórias, infanto-juvenil e ensaios, esse foi o que mais me impressionou, pela fina elaboração técnica narrativa nas suas quase 800 páginas. Nélida, filha de emigrantes da Galícia, parte de suas lembranças de infância para reconstituir a história fictícia de uma família de imigrantes que aportam no Rio de Janeiro na virada do século passado. O livro é uma metáfora do Brasil.
E arrisco dizer que é tão memorialista quanto os biográficos Coração andarilho, O livro das horas e Uma furtiva lágrima, pois encontramos Nélida nas vidas dos dezesseis personagens que se entremeiam, recriando assim sua realidade a partir do próprio discurso. Não à toa, Nélida é um anagrama do prenome de seu avô, Daniel Cuiñas. O parágrafo que destaquei acima é um dos pontos reflexivos entre autora, personagens e obra.
Nélida Piñon, primeira mulher a presidir a Academia Brasileira de Letras (1996 a 1997), faleceu hoje, aos 85 anos, em Portugal, onde morava desde 2018. Seu corpo será trazido para o sepultamento no São João Batista, Botafogo.
De volta à América do Sul, à república dos seus sonhos, onde começou a escrever a história do patriarca Madruga. Somente artistas como Nélida Piñon nos salvam dessa oxidação de melancolia e ferrugem, da verdade que nós mesmos não compreendemos.

 

sodade, sodade


 “Hoje vi, aqui no Porto, um filme muito bonito, um documentário sobre a cantora cabo-verdiana Cesária Évora. Lembrei-me de você que achou a voz dela bela e triste. Algo extraordinário.”

Há pouco mais de um mês recebi esta mensagem do cineasta e escritor Rosemberg Cariry. O filme que ele assistiu e lembrou de mim tem o título da cantora, de quem mais do que fã, sou devoto.
Estreia na direção da cineasta portuguesa Ana Sofia Fonseca, também escritora e jornalista, o documentário usa apenas imagens de arquivo inéditas para contar uma história de luta e sucesso da artista que saiu da pobreza para os palcos dos mais renomados teatros. Com sua voz grave e suave colocou definitivamente seu país no mapa musical do mundo.
Cesária Évora faleceu na manhã de 17 de dezembro de 2011, um sábado como hoje, distante no calendário, tão perto na saudade. Ela estava hospitalizada em Mindelo, sua cidade natal na ilha de São Vicente. Tinha passado por uma cirurgia cardíaca um ano antes, e aos 70 não resistiu à insuficiência cardiorrespiratória aguda. "Não tenho forças, não tenho energia. Gostaria que dissessem aos meus admiradores: sinto muito, mas agora preciso descansar”, disse em entrevista ao jornal francês Le Monde ao anunciar o fim de sua carreira, no dia 23 de outubro.
11 anos sem o canto perfumado da diva dos pés descalços, como era chamada pelo hábito de pisar os palcos do jeito que palmilhava os chãos a caminho de São Tomé, como diz a letra de uma de suas canções mais conhecidas, a belamente dolente Sodade” (vídeo acima, apresentação no Teatro Le Grand Rex, Paris, abril de 2004).
E sobre a lembrança do amigo Rosemberg, tornamo-nos eternos no coração de quem nos quer bem. Assim como Cesária Évora.

os sonhos de Nélida


“Somos mentirosos de nascença, Breta. E fadados a verdade que nós mesmos não compreendemos. Como se nossas verdades saíssem da sucata, do ferro velho. Somos assim, habitantes de um cemitério de navios, revestidos de melancolia e ferrugem. Os únicos que se salvam desta oxidação são os artistas. Talvez porque iluminem parcialmente os nossos túneis, sem temor de enfrentar detritos, monstros, e formas estranhas sem nome, que Eulália chama de alma.”
- Fala de Madruga em A república dos sonhos, romance de Nélida Piñon, lançado em 1984, Troféu Associação Paulista de Críticos Teatrais e Prêmio PEN Clube do Brasil. A autora passou praticamente três anos trancada numa pensão em Congonhas, Minas Gerais, para escrevê-lo.
De sua bibliografia de 25 títulos, entre romances, crônicas, contos, memórias, infanto-juvenil e ensaios, esse foi o que mais me impressionou, pela fina elaboração técnica narrativa nas suas quase 800 páginas. Nélida, filha de emigrantes da Galícia, parte de suas lembranças de infância para reconstituir a história fictícia de uma família de imigrantes que aportam no Rio de Janeiro na virada do século passado. O livro é uma metáfora do Brasil.
E arrisco dizer que é tão memorialista quanto os biográficos Coração andarilho, O livro das horas e Uma furtiva lágrima, pois encontramos Nélida nas vidas dos dezesseis personagens que se entremeiam, recriando assim sua realidade a partir do próprio discurso. Não à toa, Nélida é um anagrama do prenome de seu avô, Daniel Cuiñas. O parágrafo que destaquei acima é um dos pontos reflexivos entre autora, personagens e obra.
Nélida Piñon, primeira mulher a presidir a Academia Brasileira de Letras (1996 a 1997), faleceu hoje, aos 85 anos, em Portugal, onde morava desde 2018. Seu corpo será trazido para o sepultamento no São João Batista, Botafogo.
De volta à América do Sul, à república dos seus sonhos, onde começou a escrever a história do patriarca Madruga. Somente artistas como Nélida Piñon nos salvam dessa oxidação de melancolia e ferrugem, da verdade que nós mesmos não compreendemos.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

belo e triste


O verso é da poeta Marla de Queiroz, título do livro lançado em 2017 pela Editora Patuá.
Belo triste dolorido verso de um belíssimo livro.
Assim, poeta ausculta coração de poeta. E a poesia faz cafuné no peito.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

oh my love

foto Annie Leibovitz

- Por que você não pode ficar sozinho, sem a Yoko?
- Eu posso, mas não quero.
John Lennon em uma entrevista para a revista Rolling Stones, 1970.

terça-feira, 13 de dezembro de 2022

luz dos olhos teus

 

Santa Luzia iluminava
a minha infância que dormia.
Nas manhãs quentes do interior:
o facho de luz vindo da telha quebrada
(o menino na rede,
a parede azulada
a cenografia do quarto
:
o enquadramento que me guardava
no passado
que vi do futuro).
A jovem siciliana que minha tia-avó trouxe da feira
protegia meus olhos que acordavam
focava sua luz neorrealista
no quintal em mim
para o dia que começava
no sertão sem fim.
Cada manhã abençoada
com a oferenda do par de olhos na bandeja.
Casa desfeita
parentes idos
santa nas retinas.
Na parede azulada,
esse recorte é o quadro que brilha mais
no meu cinema paradiso.
.................................................................
Trecho do meu livro Trem da memória, Editora Radiadora, 2022,
lançado em julho no Espaço Cultural da Kraft, Fortaleza, em setembro no Beira Cultural do Bar Beirute, Brasília, e em novembro na XIV Bienal Internacional do Livro do Ceará.
Coordenação editorial: Alan Mendonça
Prefácio: Valdi Ferreira Lima
Posfácio: Mailson Furtado
À venda pelo site www.radiadora.com.br e com o autor.
......................................................................................................
13 de dezembro, dia de Santa Luzia.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

à altura dos corações



Yasujiro Ozu, o cineasta do cotidiano, dos laços e desenlaces familiares.

Criador dos planos com tripé baixo, sua câmera-tatame está sempre à altura dos corações dos que partem e dos que voltam.
Minimalista, com serenidade e sutileza, seu cinema disseca sentimentos, como deve ser para o entendimento e reflexão de todos nós, seres imperfeitos metidos a sabidos.
Em seus 53 filmes, principalmente os produzidos a partir da década de 40, Ozu estabelece, digamos, uma estrutura neorrealista, confrontando o velho e o novo Japão, muito bem definido no envelhecimento e na modernidade, nos filhos e nos pais, nas cidades e nos costumes, no efêmero que somos, no eterno que pretendemos.
Como em conceito taoísta, o cineasta veio e se foi no mesmo dia, 12 de dezembro. Os 60 anos que se ligam entre o seu Yin em 1903 e o seu Yang em 1963, reúnem as forças da transformação contínua, da vida que surge à vida que se destina.
Acima, Ozu dirigindo Pai e filha (Bashun), 1949.
Foto: Acervo Nippon Communications Foundation

domingo, 11 de dezembro de 2022

sou do sereno poeta muito soturno

foto Arquivo Almirante / Museu da Imagem e do Som

Noel Rosa viveu apenas 26 anos e cinco meses, de boemia e poesia, dos 112 que hoje completam do seu nascimento.

Ele foi um dândi enviesado, um irreverente com suprema inteligência no começo de um século reverencioso aos bons costumes do lugar. Rosa que atravessava a noite e curtia a vida.
Noel Rosa: Uma Biografia, de João Máximo e Carlos Didier, lançada em 1990 pela Editora UnB e logo recolhida pelas sobrinhas herdeiras do compositor, é o mais completo relato da vida do artista. O livro foi proibido através de ações judiciais, alegando desrespeito à vida privada da família, possivelmente por mencionar os suicídios da avó e do pai de Noel.
O texto é primoroso, com a elegância que o biografado merece.
O título desta postagem é um verso da canção Três apitos, que Noel começou a compor em 1931, burilou a letra ao longo do ano seguinte, e em 1933 a considerou finalizada. Ficou guardada por vinte anos. Em 1951, a cantora Aracy de Almeida gravou em seu disco Feitio de oração, com arranjos de Radamés Gnatalli.
Aracy cantou as mais emblemáticas composições do "anjo torto" de Vila Isabel, Com que roupa, Último desejo, O X do problema, Não tem tradução, Palpite infeliz, O orvalho vem caindo, com Kid Pepe, Conversa de botequim, Feitiço da Vila, Pra que mentir, Feitio de oração, estas em parceria com Vadico.
Em 1936, em uma de suas raras entrevistas, à revista A Pátria, o poeta muito soturno declarou que "Aracy de Almeida é a pessoa que interpreta com exatidão o que eu produzo".

sábado, 10 de dezembro de 2022

a vida de Clarice


"Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento."
- Clarice Lispector através da personagem Lóri em Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, 1969, adaptado para o cinema em 2019, direção de Marcela Lordy, com Simone Spoladore.
Hoje 102 anos do nascimento de quem mergulhou na vida até os 57.
Acima, Clarice fotografada por Bluma Wainer, em Paris,1946.
A imagem do acervo do filho da escritora, Paulo Gurgel Valente, foi usada na capa de Clarice, uma biografia, do norte-americano radicado na Holanda, Benjamin Moser, 2009. Uma pena que o título na edição brasileira, pela Cosac Naify, omita um dado importante do original, Why this world: a biography of Clarice Lispector. O "por que este mundo" é ao mesmo tempo uma pergunta-afirmação bem típica das inquietações e mistérios de Clarice.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

a esfinge


foto Acervo Paulo Gurgel Valente

"O que sinto não é traduzível. Eu me expresso melhor pelo silêncio."
- Clarice Lispector em seu último livro, Um sopro de vida, página 31, publicado postumamente em 1978 pela Editora Nova Fronteira.
A escritora faleceu um dia antes de seu aniversário, 10 de dezembro, quando faria 57. Além da coincidência da data, pelo ritual judaico, não pôde ser enterrada no dia seguinte, um sábado. Seguiu para o Cemitério Comunal Israelita, bairro do Caju, Rio de Janeiro, dia 11.
45 anos que partiu para outros silêncios.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

murmúrios dolentes


Filha de caso extraconjugal, registrada ilegítima de pai incógnito, casamentos desfeitos, traumas de um aborto involuntário, sérios sinais de neurose, a morte de um irmão querido em acidente aéreo, duas tentativas de suicídio... na terceira, "os dias são outonos, choram... choram... / há crisântemos que descoram... / há murmúrios dolentes de segredos..."
Florbela Espanca tinha apenas 36 anos quando a vida se desfez em "fumo leve que foge entre meus dedos!...", em 1930, no mesmo dia e mês em que nasceu, 8 de dezembro.
Seus dias inquietos, sua solidão, seus sofrimentos íntimos intransferíveis se refletem em uma poesia tão flor, tão bela, "no mist'rioso livro do teu ser..."

domingo, 4 de dezembro de 2022

um trem além-mar

"Gosto muito de Portugal, mas onde vou é acompanhado de boas leituras. Estou viajando no 'Trem da Memória'. O Porto é um encanto. Terminei meus estudos. Volto em janeiro."

- Rosemberg Cariry, cineasta e escritor, companheiro de geração nas letras, nos sets, pelos sertões de resistência que viraram o mar de cada dia.
Para ele dedico um trecho do meu livro em suas mãos. Versos que legendam a foto e auscultam o coração da viagem:
"verbo indicativo presente:
enfrento a estrada
frágil
apenas
com o escudo do corpo
e uma história na pele.
Resisto:
nos poros
o calor do sol
de tantos nordestes
para me garantir
nos próximos frios de algum país futuro."

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

inteiramente


"Todo esse mês de viagem nada tenho feito, nem lido, nem nada - sou inteiramente Clarice Gurgel Valente".

- Clarice Lispector em carta a sua irmã Elisa, 19/8/1944, no livro Clarice Fotobiografia, de Nádia Battella, 2007.
Durante sua viagem à Europa na Segunda Guerra, em companhia do marido, a escritora não usava o sobrenome Lispector, sua ascendência judia ucraniana, por medo dos nazistas.