segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

anedota búlgara

 

ilustração John Lund

Era uma vez um czar naturalista
que caçava homens.
Quando lhe disseram que também se caçam borboletas e andorinhas
ficou muito espantado
e achou uma barbaridade.

Quando Carlos Drummond de Andrade publicou esse poema em Alguma poesia, seu primeiro livro, 1930, o período de czares da Rússia já não existia, dizimado pela Revolução de 1917, com a queda do monarca Nicolau II dando origem a União Soviética que durou até 1991.

Mas poeta itabirano referia-se, como aponta o título, aos monarcas dos impérios da Bulgária que se estenderam aos longos dos séculos até 1946. Czar, que segundo a etimologia deriva do latino Cesar - o líder militar e político romano -, foi um título usado desde a Idade Média para nomear os soberanos búlgaros e húngaros, e somente no século 16 passou a ser usado na Rússia, com a ascensão de Pedro, o Grande.
Drummond, sem nenhuma simpatia por dinastias, principados e sucessão de tronos, escreveu o poema sem dispensar ironia. Ao contrário de ser um poema-piada (termo criado pelos modernistas em 22, e que o poeta não gostava), tem na construção um retrato crítico sobre os tiranos que criam suas escalas valores. E creio que Drummond não poupou nas entrelinhas de seus versos nem o czar Bóris III, lembrado pelos historiadores com o mais popular da Bulgária. O monarca foi uma figura importante para seu país durante a Segunda Guerra Mundial. Visto como um pacifista e querido pelos seus súditos, recusou-se a deportar judeus búlgaros para a Alemanha e apareceu morto misteriosamente semanas depois de um encontro com Hitler, em 1943.
Sobre todos os “czares naturalistas”, a criativa malícia do poema tem, sutil e implacavelmente, “noventa por cento de ferro nas calçadas” de Itabira, como diz confidente em outro clássico o poeta que não caçava borboletas, nem homens, nem andorinhas.

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