segunda-feira, 30 de novembro de 2020

mundo, vasto mundo


No começo de 1978 o compositor Cartola e sua querida dona Zica mudaram-se do morro da Mangueira para uma casa em Jacarepaguá, Rio de Janeiro. Precisava de um pouco mais de sossego para compor. Ali em frente fez um pequeno jardim que ele chamava de As Rosas Não Falam. Mas Cartola estava adoentado e naquele mesmo ano foi operado de um câncer na tireoide. Tentou esconder a doença. Com as forças que aos poucos sumiam, conseguiu realizar o show Acontece no Ópera Cabaré, em São Paulo. O apresentação foi lançada em disco em 1982, pela gravadora Eldorado. É o seu quinto álbum e o único ao vivo.

No dia 30 de novembro de 1980 Cartola falece em um leito de hospital, segurando a mão de dona Zica, sob o perfume das rosas que choravam. Fixado ao lado da cama, um recorte de jornal com a crônica que Carlos Drummond de Andrade escreveu para ele, Cartola, no moinho do mundo, publicada três dias antes no Jornal do Brasil.
Um salto bailarino no tempo:
Em 1997, os compositores irmãos piauienses radicados em Brasília
Clodo
,
Climério
e Clésio, gravam para a TV Nacional um programa com suas músicas e clássicos de nosso cancioneiro, e para isso o projeto previa um outro cantor para dividir as músicas escolhidas. Foi convidado Belchior.
Curiosamente, o cearense lançara um ano antes Vício elegante, seu último disco de estúdio, e com exceção da faixa-título, parceria sua com o pianista
Ricardo Bacelar
, as demais canções são de outros compositores, Chico Buarque, Caetano Veloso, Tunai, Sergio Natureza e Liliane, Zé Ramalho, Antônio Cícero e Marina Lima, Djavan, Kledir Ramil, Adriana Calcanhoto, Roberto e Erasmo Carlos
, Victor Herbert e Rida Johnson Young, Ed Wilson e Cury Heluy.
Para a gravação à noite no palco do Teatro Dulcina, em Brasília, o compositor Clodo conta que foram encontrar Belchior pela manhã no hotel para combinarem o que cantariam. Sem um set list, o piauiense sugeriu O mundo é um moinho, “de um dos meus mestres, ao lado de Chico Buarque”, disse-me em conversa recente. Belchior alegrou-se e topou de imediato. E gravaram sem ensaio. Outra curiosidade é que a gravação foi somente para as câmeras, e de certa forma, “fingiam” que cantavam para uma plateia. A concepção do show antecipou as lives do pandêmico 2020. E uma curiosidade maior: Clodo, Climério e Clésio têm fortes ligações com o que se denominou Pessoal do Ceará, dividindo parcerias com
Ednardo
, Fagner,
Rodger Rogério
,
Fausto Nilo
, Petrúcio Maia, Augusto Pontes,
Vicente Lopes
,
Calé Alencar
, menos com Belchior.
Outro salto de pássaro no tempo:
Dez anos depois desse encontro com os irmãos piauienses, Belchior parte para o seu exílio voluntário. Não tentou esconder-se com o que a cabeça pensa: escondeu-se com todos os motivos que a alma deseja. Deixou de lado a certeza e arriscou tudo de novo com paixão, andando caminho errado pela simples alegria de ser nos pampas gaúchos. Nós aqui, saudosos, ficamos pedindo ao bom Deus que nos ajudasse a esperá-lo.
E novamente dez anos depois, na madrugada de 30 de abril de 2017, seu coração frágil como vidro parou e completou o seu destino. Um ano antes, em 26 de outubro, tinha comemorado secretamente 70 anos. Naquele mesmo mês, no dia 11, celebrou-se 108 anos de nascimento de Cartola. Um libriano carioca do Catete, com infância em Laranjeiras, e vida no morro da Mangueira. Um escorpiano cearense vindo do interior de Sobral, menino às margens do rio Acaraú, e a vida de sonho e de sangue na América do Sul.
Hoje, neste mesmo dia 30, lembramos que a data anunciou a hora da partida dos dois compositores, cada um na grandeza de seu tempo. 40 anos sem Cartola, três sem Belchior. O mundo, o vasto mundo drummondiano, é um moinho que tritura corações selvagens. Há perigo em cada esquina onde cai um pouco a nossa vida.
Uma salto de esperança no tempo:
Em um trecho de sua crônica, Drummond diz que a música de Cartola “é como se desse a senha pela renovação geral da vida, a germinação de outras flores no eterno jardim. O sol nascerá, com a garantia de Cartola. E com o sol, a incessante primavera.”. Sim, já é outra viagem, e o novo sempre vem, como preconizava o rapaz latino-americano.

Ainda é cedo.

domingo, 29 de novembro de 2020

the sun

 

"Here comes the sun, here comes the sun / and I say it's all right..."

Uma das canções mais lindas dos Beatles, e uma das poucas compostas por George Harrison, cantada por ele no álbum Abbey Road, de 1969, tocando guitarra, violão, sintetizador moog e batendo palmas.
A letra é simples, quase ingênua, mas a essência de paz, beleza e esperança transborda na musicalidade e interpretação. Harrison compôs na casa de seu grande amigo, Eric Clapton.
Desde o final de 1999 que Harrison passava por problemas de saúde, quando um suposto fã invadiu sua residência, Friar Parka, uma mansão neogótica vitoriana no Reino Unido, e o atacou com uma faca de cozinha, perfurando-lhe um pulmão e deixando cortes na cabeça. A esposa Olivia Harrison defendeu-se com um atiçador de lareira.
Em meados de 2001 o beatle foi diagnosticado com câncer no pulmão e retirou um tumor, mas precisou ir para os Estados Unidos fazer radioterapia. Células malignas se espalharam para seu cérebro . No começo de novembro Paul McCartney e Ringo Starr foram visitá-lo. O sol do então terceto de Liverpool brilhou naquele dia entre conversas e lembranças. No dia 27 Harrison estava na casa de um amigo em Los Angeles quando o sol em seus olhos se foi. Tinha 58 anos. As águas do rios Ganges e Yamuna, na Índia, guardam suas cinzas.
19 anos depois o sol de suas canções continua chegando quando ouvimos sua voz..
“It seems like years since it's been here”

sábado, 28 de novembro de 2020

os distópicos


A imagem da queima de livros significa a supressão de ideias, e de como a televisão, à época ainda uma curiosa novidade, destruía o interesse pela leitura.

- Ray Bradbury
Fahrenheit 451, do norte-americano Ray Bradbury, foi publicado em 1953. O romance mostra uma América hedonista e anti-intelectual que perdeu totalmente o controle, e todos os livros são queimados e o pensamento crítico suprimido.
Bradbury escreveu o romance no porão de uma biblioteca, em uma máquina alugada. Era o começo da Guerra Fria, e isso lhe inspirou para criticar uma sociedade disfuncional e assustadora em seus conceitos.
O livro foi lançado quatro anos depois de 1984, do inglês nascido na Índia George Orwell, igualmente sobre uma sociedade oprimida por um regime autoritário. Mais do que um futurista, Orwell foi um vaticinador. O mundo em que vivemos é exatamente o que está no romance, ou pior, por ser dissimulado. A antítese da utopia, onde a tecnologia é utilizada como ferramenta de controle, usada pelo Estado, instituições e corporações.


O poder não é um meio, é um fim em si mesmo.
- George Orwell

As duas obras são sempre lembradas pelo tema angustiante, premonitório. Bradbury e Orwell escreveram ainda sob os escombros e traumas da Segunda Guerra, com o cenário político-econômico arrasado, desesperançado.
Abaixo, Oskar Werner no papel do bombeiro reverso que toca fogo, no filme homônimo baseado no livro de Bradbury, dirigido por François Truffaut em 1966, e 1984, de Michael Radford, lançado no ano do título, com John Hurt interpretando um humilde funcionário que comete o atrevimento de se apaixonar por uma moça, numa sociedade onde as emoções são consideradas ilegais.

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

o primo do escritor


Hoje 175 anos de nascimento de Eça de Queiroz. O primo Basílio, seu quarto livro, publicado em 1878, é um clássico romance sobre o adultério e a condição feminina, um exemplar do realismo da literatura portuguesa. O escritor que já abalara três anos antes a moralidade da Igreja Católica no polêmico O crime do padre Amaro, dessa vez dirige seus dardos certeiros para as mazelas da família burguesa urbana, com uma análise ferrenha, focando com elegância literária, mas sem comedimentos na representação, os ridículos de uma classe média alta e proporcionalmente dissimulada. O personagem-título é uma espécie de dândi cínico e pedante, que mantém o estilo de vida aristocrático, mas decadente.

A precisão cirúrgica com que o escritor disseca os costumes, absurdos e contradições dos personagens da sociedade lisboeta, revela que o universo mesquinho e protótipo de futilidade reverbera-se muito além da geografia e do tempo. Nunca um romance teve seus aplicativos tão atualizados ao olharmos em volta o mundo em que vivemos, ladeira abaixo de hipocrisias.
Contemporâneos, Eça de Queiroz e Machado de Assis admiravam-se. Foi do escritor brasileiro a primeira crítica a O primo Basílio, apreciação que já fizera quando lançara O crime do Padre Amaro. A repercussão da ampla análise de Machado praticamente tornou o romancista português bastante conhecido no Brasil. Eça de Queiroz escreveu-lhe agradecendo, mesmo discordando de alguns pontos em que ataca a escola realista.
Também jornalista e diplomata, em 1872 Eça de Queiroz exerceu seu primeiro posto consular em Cuba, na época colônia espanhola, onde deparou-se com uma situação de escravatura. Nos relatórios que enviou ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, o escritor relata as condições infra-humanas que os chineses, vindos de Macau, tinham nas plantações de açúcar.
Ali da ilha viaja para New York, onde passou seis meses. Suas atividades diplomáticas na verdade tinham também outras motivações: namorou simultaneamente duas norte-americanas que conhecera no consulado em Havana, uma delas, Anna Conover, casada. Subiu até o Canadá para não complicar “turbulentos episódios sentimentais”, como escreve A. Gomes de Matos em Eça de Queiroz – uma fotobiografia: vida e obra, 2007. Nesse período na fria Toronto, o galante Eça de Queiroz visita o estúdio do famoso fotógrafo William Notman e faz uma de suas pouco conhecidas fotos, que ilustra abaixo esta postagem, de 1873.
No ano seguinte, considerando concluídos seus trabalhos no continente, o escritor parte para Newcastle, a 450 quilômetros ao norte de Londres, onde assume o posto diplomático e reencontra uma de suas namoradas dos Estados Unidos, a solteira Mollie Bidwell, que pegou um vapor em New York e aportou nas margens do rio Tyne para vê-lo. Ficaram noivos, mas romperam a união antes ser transferido para o consulado em Bristol.
Foi em Newcastle, entre pareceres e relatórios, que Eça de Queiroz escreveu O primo Basílio. Sabe-se lá se também inspirado pelo caso a três que “turbulentos episódios sentimentais” viveu seu coração em terras norte-americanas.
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Texto para o meu livro em preparação Crônicas do Olhar, com adaptações para esta postagem.

lloro por ti, Dieguito


 

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

saudoso Adoniran

foto Otavio Valle

Se o senhor não tá lembrado, dá licença de contar: hoje, 36 anos que o grande Adoniran Barbosa pegou o trem das onze e se foi para outros Jaçanãs cantando o samba do Arnesto...


domingo, 22 de novembro de 2020

santa música


Pela crença cristã, Santa Cecília, uma abnegada mocinha de família nobre romana, cantava para Deus quando estava morrendo. Em sua homenagem é considerada a Padroeira dos Músicos. Ou da Música Sacra, como preferem os estudiosos no assunto.

No calendário litúrgico da Igreja Católica, por uma possível data relacionada ao dia de sua morte, foi escolhido 22 de novembro para a festa em sua louvação.
No Brasil comemora-se o Dia do Músico.
Parabéns
a todos que são músicos todo santo dia! Só eles sabem quanta abnegação para afinar e sobreviver com as cordas que o demo amassou neste país.
St Cecilia, óleo sobre tela do barroco Guido Reni, 1606. O quadro encontra-se no Norton Simon Museum, Califórnia.

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

resistência dos Palmares


“Vou enfeitar o meu corpo no seu / eu quero este homem de cor / um deus negro do Congo ou daqui...”

- Trecho de Black is beautiful, de Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle, gravada por Elis Regina no disco Ela, 1971.
Hoje é celebrado o Dia da Consciência Negra, em lembrança à morte de Zumbi, do Quilombo dos Palmares, o maior da era colonial brasileira, localizado no estado de Alagoas.
Zumbi, pernambucano de origem bantu, morto pelas tropas do bandeirante Domingos Jorge Velho em 1695, foi o último dos líderes da luta e resistência contra a escravidão.
A data foi sancionada pela presidenta Dilma Roussef, em 2011.
O grande líder quilombola é referenciado no filme de Cacá Diegues em 1985, Quilombo, no nome da banda de Chico Science, Nação Zumbi, em 1994, com a denominação por lei, em 1999, do Aeroporto Internacional de Maceió - Zumbi dos Palmares, no disco de Gilberto Gil de 2010, Z: 300 Anos de Zumbi, e muitas outras menções nas artes reverenciam aquele que tornou-se símbolo de liberdade.
A luta se renova nestes tempos urbanos ameaçadores.
Na foto acima de Gonzalo Rivero, Estátua de Zumbi, na Praça da Sé, Salvador, de autoria da artista plástica Márcia Magno, inaugurada em 2008.

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

São Gerais


Raízes do chão de Minas.
Chão roseano.
Rosa mexendo-se silenciosamente.
Minas ainda há, Drummond.
Minas é o avesso do meu sertão nordestino.
Lá disseca minha vida seca Graciliano.
No chão de Minas veredas de um grande sertão Guimarães.
Fabiano emigra e vai de encontro a Riobaldo.
Sinhá-Vitória conversa com Diadorim.
O sertão vai virá São Francisco que vai bater no meio do mar.
Minas são gerais.
- dos meus cadernos ©Pequenas Anotações de Viagens
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53 anos hoje que Guimarães Rosa partiu para outros grandes sertões.
foto: Araxás, MG, 2012

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

diante da escuridão

foto ©Fundação José Saramago

“O sentido de responsabilidade é a consequência natural de uma boa visão, mas quando a aflição aperta, quando o corpo se nos desmanda de dor e angústia, então é que se vê o animalzinho que somos.”

- José Saramago, em um trecho de Ensaio sobre a cegueira, possivelmente o livro do escritor português que melhor simboliza a imagem de um mundo imundo e bárbaro.
Saramago, que hoje faria 98 anos, dizia que foi uma das experiências mais dolorosas de sua vida o tempo que levou para concluir as 300 páginas, e espera “que o leitor sofra tanto como eu sofri ao escrevê-lo.”
Esse desejo do autor é uma consequência inevitável que a narrativa provoca, pelo incômodo e reflexão, a abstinência moral humana, a urgência de resgatar o afeto diante do caos e escuridão.
Lançado em 1995, adaptado para o cinema em 2008, por Fernando Meirelles, "nsaio sobre a cegueira é a atualíssima imagem aterradora destes tempos sombrios em que vivemos.
foto ©Fundação José Saramago

sábado, 14 de novembro de 2020

o movimento dos barcos


Impressão, nascer do sol
, é o mais célebre quadro do impressionista Claude Monet, de 1872.

O óleo sobre tela mostra o amanhecer no porto Havre, região da Alta Normandia, França.
Exposta no Museu Marmottan, em Paris, a pintura magnetiza, imanta, ou mais apropriadamente, impressiona, pela beleza da névoa cerrada sobre o estaleiro, o movimento dos barcos e a fumaça que sobe das chaminés ao fundo.
Conta-se que o crítico Louis Leroy ao ver a obra teria se espantado, dito e se arrependido da pressa:
“Ao contemplar, pensei que meus óculos estivessem sujos: o que aquela tela representava? O quadro não tinha direito nem avesso... Impressão, nascer do sol! Claro que impressiona: qualquer papel pintado em estado embrionário está mais concluído do que essa marinha.”
Do comentário deu-se o nome do quadro, criou-se o termo “impressionismo”, que passou a ser o nome do movimento, que se tornou sinônimo de Monet, que hoje completa 180 anos de nascimento. Tempos depois, o próprio Leroy se vangloriava de ter contribuído de forma enviesada para a história.
Praticamente toda a obra de Monet se caracteriza por pinturas que retratam paisagens. Era sua paixão o mundo lá fora do jeito que o impressionava por dentro. E de tanto trabalhar horas e horas exposto ao sol dos verões, e em busca de claridade ao ar livre noutras estações do ano, o pintor contraiu catarata aos 67 anos. Mas não parou de pintar, passou a usar cores fortes para senti-las no “tato das retinas” *, como o vermelho-carne. E continuou por mais de dez anos em frente ao cavalete, as cores das paisagens dilatando enquanto a escuridão chegava. Aos 83 anos estava quase totalmente cego, sem ver por fora o que continuava mais aceso e vermelho em seu coração.
A pintura tinha um trato com Monet: manteve-se viva, direcionando as mãos com os pinceis, esculpindo em cores o tempo que chegava ao fim. Um pouco mais abaixo dos olhos, um câncer de pulmão o levou aos 86 anos. O olhar cerrado noutra dimensão continuava impressionando.
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* Título do livro do poeta maranhense-brasiliense Domingos Pereira Netto, Editora Vestcon, 2000.
O título da postagem é uma citação à canção de Jards Macalé e Capinam, composta em 1971, gravada em seu primeiro disco, Jards Macalé, 1972.

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

o tempo de Manoel


Em 2008 a revista Caros Amigos, edição 117, publicou uma entrevista com Manoel de Barros. Foi uma das raríssimas vezes em que o poeta recebeu jornalistas em sua casa... Com sua timidez de passarinho e simplicidade pantaneira, Manoel preferia atender às perguntas por escrito.

Quando um dos jornalistas perguntou o que achava sobre a duração da vida, ele respondeu em versos criados naquele momento:
“O tempo só anda de ida. A gente nasce, cresce, envelhece e morre. Pra não morrer, é só amarrar o tempo no poste. Eis a ciência da poesia: amarrar o tempo no poste! ”
Há seis anos o tempo de Manoel soltou-se do poste.
desenho-poema do poeta

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

nós, os maricas

Milton Cunha, d
outor em Letras pela UFRJ, com pós-doutoramento pela Escola de Belas Artes em Narrativas Culturais, carnavalesco e grande cidadão brasileiro.

o criador e as criaturas


Quando tinha 15 anos de idade o jovem judeu norte-americano Stanley Martin Lieber escrevia obituários em jornais de Nova Iorque para sobreviver. O pai, alfaiate, a mãe, dona-de-casa. O garoto queria ser escritor. Durante a Segunda Guerra foi consertar postes telegráficos. A comunicação não podia se perder. Quando regressou das trincheiras foi escrever histórias de cowboy, ficção científica, suspense... e desenhando esses super-heróis que imaginava.
Assim começou a carreira de um dos maiores quadrinistas da história do entretenimento, Stan Lee, criador da Marvel Comics onde habitam personagens de seus traços que estão na memória afetiva de gerações, Homem-Aranha, Hulk, Thor, X-Men, Pantera Negra, Quarteto Fantástico, Homem de Ferro, Demolidor, Os Vingadores, entre tantos outros.
Lee tinha 95 anos quando se foi no dia 13 de novembro do ano passado. A legião de suas criaturas escreveu o obituário do personagem número um da Marvel.
desenho: Equipe da Marvel Comics, 2019

terça-feira, 10 de novembro de 2020

a cajuína cristalina em Teresina


Em 10 de dezembro de 1978 Caetano Veloso e sua A Outra Banda da Terra estrearam o show
Muito, com repertório do disco recém lançado, aquele que tem Sampa e na capa o cantor no colo de Dona Canô, “dentro de estrela azulada”, como diz o subtítulo. No começo do ano seguinte partem em turnê pelo país.

Quando desembarcou em Teresina, Caetano logo lembrou de Torquato Neto, que junto com Capinam, eram seus “companheiros naturais” da Tropicália, como relata na semi autobiografia Verdade Tropical, de 1997. Desde a morte do poeta, em 1972, que o cantor não voltava à cidade, e nem conseguira chorar. Estava ao lado de Chico Buarque quando recebeu a notícia naquela manhã de 10 de novembro, e estranhou uma "dureza de ânimo, me senti um tanto amargo e triste mas pouco sentimental".
O pai de Torquato, sr. Heli Nunes, foi visitá-lo no hotel. Já se conheciam do tempo em que ia a Salvador ver o filho, que estudava na mesma escola de Caetano. Estava sozinho, sua esposa, dona Maria Salomé, hospitalizada, e ele queria ver um pouco de Torquato no muito do amigo cantor. “Quando eu o vi, chorei muito, a dureza amarga se desfez”, revela Caetano. Aquele reencontro foi como se o sr. Heli viera lhe dar a notícia sete anos depois, ou como se somente ao ver o pai sem o filho, Caetano se conscientizara que estava também “órfão”, sem o amigo. “Ele ficou me consolando e me levou à casa dele”, lembra, refazendo o percurso.
Na parede da sala tinha muitas fotografias de Torquato. Caetano girava a cabeça e os olhos lentamente, o coração e o tempo profundamente. Sr. Heli olhava o filho no olhar que se iluminava de Caetano. Um silêncio em comunhão umedeceu a ambiente: Caetano chorava, turvava a lágrima nordestina. Sr. Heli passou a mão paterna em sua cabeça, “não chore tanto”, disse, sereno e amável. Quase com um caminhar suspenso - ali tudo parecia ser nuvem - foi até a cozinha, abriu a geladeira, pegou uma garrafa de cajuína. A bebida que mandava para Torquato em Salvador. Voltou para a sala na mesma afluência de remanso entre os cômodos. Caetano viu que ele trazia dois copos. Colocou-os sobre a mesa. O líquido cristalino da garrafa dourou o silêncio. Sr. Heli serviu. Beberam demoradamente, sem nada falarem, eram naquele momento olhares em intacta retina. Sugaram uma saudade a dois.
Quando terminaram, Sr. Heli colocou os copos outra vez sobre a mesa, levantou-se e foi até ao jardim. Caetano atravessa o olhar pela luz da porta e espera, ainda mais só. Sr. Heli volta trazendo uma cor em sua mão e estende a Caetano. “Cada coisa que ele fazia eu chorava mais”, disse sobre aquele homem lindo que lhe dava uma rosa pequenina.
De volta ao hotel, o cantor teve a certeza que apenas a matéria vida era tão fina no gesto de sr. Heli. Mesmo quando choramos ausências, ainda existimos, sem sabermos a que será que se destina.
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Texto para o meu livro em preparação Crônicas do Olhar.
Na foto, acervo da família, Torquato Neto entre os pais, década de 60.

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

a que será que se destina


O meu nome é Torquato
O do meu pai é HELI
O da minha mãe SALOMÉ
E o resto ainda vem por aí

Primeiro poema de Torquato Neto, escrito aos 9 anos de idade, em Teresina, 1953, mencionado no documentário Torquato Neto - Todas as horas do fim, de Eduardo Ades e Marcus Fernando, 2017.
Hoje, 9 de novembro, se acaso a sina do menino infeliz não se nos ilumina, ele faria 76 anos pessoais e intransferíveis.
Acima, Torquato Pereira de Araújo Neto posando em frente ao Teatro 4 de Setembro, Praça Pedro II, na capital piauiense.

meu coração não contenta

 

"Você me chama, eu quero ir pro cinema"

- Verso do poema Go back, de Torquato Neto, escrito em agosto de 1971, no Rio de Janeiro, publicado na coletânea Os Últimos Dias de Paupéria, organizado por Wally Salomão e Ana Maria S. de Araújo Duarte, Ed. Max Limonad, 1982. Foi musicado pelo tecladista do Titãs, Sérgio Brito, gravado no disco homônimo ao vivo da banda, 1988.
Na foto, o poeta contracenando com Scarlet Moon em Nosferatu do Brasil" de Ivan Cardoso, 1971.
Torquato faria hoje 76 anos... "mas de repente, a madrugada mudou" e ele se foi um dia depois de seu aniversário, aos 28.

domingo, 8 de novembro de 2020

noutras asas

Minha voz chifrim e talvez ainda uma timidez interiorana, impedem-me de ficar à vontade para dizer meus poemas. Por sorte, tenho amigos que fazem leituras, cada um a sua maneira, cada um como sente, cada um como loteasse um pedaço do meu coração onde o poema nasceu. Isso é bom. Do lado de cá, vejo o meu poema sendo do outro. Vejo como não via. Descubro o que dele não sabia. E é sempre um complemento, uma continuação. Por isso, minha poesia é, como diz o título do livro, provisória.

O poema Asas foi lido por tantas pessoas queridas, tantas vozes, tantos jeitos. Acolho todos. Foi também musicado e interpretado pelo cantor
Rubi
, e será gravado em disco.
Neste domingo ainda pandêmico recebo o dizer de
Meire Viana
, poeta, de Fortaleza. Um voo no isolamento. Gratidão, cara amiga. Uma fartura de abraços!
Do livro Poesia provisória, 2019
Editora Radiadora

a dama do paraíso


Há uma mulher que acredita que tudo o que brilha é ouro. E ela vai comprar uma escadaria para o paraíso, e quando chegar lá, ela sabe que se as lojas estiverem fechadas, com uma só palavra ela conseguirá o que foi buscar.

Essa é a apresentação da misteriosa figura feminina que percorre toda a narrativa da letra de Stairway to heaven, escrita por Robert Plant em sua casa de campo, perto das montanhas galesas, Inglaterra, no começo da década de 70.
Naqueles psicodélicos anos em que muitas composições se estruturavam em conceitos filosóficos de alquimia, de mundos abstratos e seres imagináveis, Plant tinha um livro de predileção, Artes Mágicas na Inglaterra Céltica, de Lewis Spence, um escocês nascido no final do século 19, jornalista e estudioso de ocultismo. Sua obra, de mais de trinta títulos, explora temas ligados a mitologia, lendas, mistérios da Grã-Bretanha antiga, evidências da Atlântida e outros mundos perdidos.
Escrito em 1905, o livro foi inspiração para o vocalista do Led Zeppelin, que teve a letra musicada por Jimmy Page, em uma perfeita química – ou alquimia – entre enredo e melodia, formatada em uma introdução acústica, um andamento renascentista com violão e flauta, e a sequência com instrumentos elétricos, em riffs operísticos de guitarra e baixo de rock progressista que completam os 8 minutos e 2 segundos de duração.
Page era igualmente fascinado por magias, ocultismo, tinha até uma livraria dedicada ao tema, The Equinox Booksellers and Publishers, em Londres.
Apesar da demonstração preambular da fascinante imagem feminina, a letra não segue uma descrição linear, nem sequer identifica quem seja a personagem, se uma fada, ou deusa, ou bruxa, apenas deixa claro, nos versos que se fragmentam em expressões e símbolos, sua capacidade de vencer qualquer obstáculo (“if there's a bustle in your hedgerow”), seu interesse de união, paz (“don't be alarmed now”), a pretensão de extrair o mal entre os seres (“it's just a spring clean”), e para realizar seu intento compraria uma escada para chegar ao paraíso (“she's buying a stairway to heaven"). A certa altura da letra, Robert Plant cita May Queen, e sem aprofundar, remete como pontuação e referência a personificação da rainha ligada ao culto das árvores, celebrada na primavera, uma tradição da Inglaterra da Idade Média.
É a última canção do lado A do álbum Led Zeppelin IV, um clássico do rock e um dos mais vendidos da banda. A batida pesada de Black dog, é a abertura perfeita do estilo marcante do grupo que se esmerou em melodias fundindo o que alguns chamam de jazz-rock com a eletricidade do gênero, expondo nas faixas seguintes as variações sobre um mesmo tema que o rock proporciona.
Stairway to heaven teve dezenas de versões, da balada rhythm and blues de Pat Boone ao rock clássico-concreto de Frank Zappa, passando pelo elétrico jazz fusion de Stanley Jordan.
No começo de 2014, com a música já consagrada na história do rock, Mark Andes, baixista da extinta banda psicodélica norte-americana Spirit, acusou Led Zeppelin de plágio, apontando que a melodia inicial de Stairway to heaven foi copiada da canção Taurus, composta pelo guitarrista Randy California, gravada na faixa de abertura do primeiro disco, de 1968. O caso se arrastou pelos tribunais até 2016, quando o juiz determinou que as similaridades da sequência de acordes não configuravam apropriação.
A composição de Plant e Page é a única que tem a extensa letra no encarte do disco, que hoje completa 49 anos do lançamento. "And if you listen very hard / the tune will come to you, at last”, como sugere o eremita no desenho de Barrington Colby, lado inferior esquerdo, sobre as intenções da misteriosa dama.
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Texto para o meu livro em preparação Crônicas do olhar, com adaptações para esta postagem.

sábado, 7 de novembro de 2020

os instantes de Cecília


foto década de 50, Acervo Solombra Books

Viagem, décimo livro de Cecília Meireles, reúne sua produção de 1929 a 1937. Publicado em 1938 pela Lisboa Editorial Império, recebeu o Prêmio Olavo Bilac concedido pela Academia Brasileira de Letras.

Dedicado “aos meus amigos portugueses”, é um dos seus mais belos livros. Um passeio na plenitude do eu-lírico existencial em 199 páginas, construção perfeita nas intercessões do Simbolismo ao Modernismo. Nesse período, além de suas obras, Cecília fazia traduções, viajava por vários países, e lecionava Literatura Luso-Brasileira e Técnica e Crítica Literária na Universidade do Distrito Federal, à época no Rio de Janeiro.
Alguns fatos marcaram Cecília Meireles nos seis anos em que ela preparava o livro, e, inevitavelmente, como matéria-prima que é a vida, refletem-se em muitos poemas.
O mais grave foi o suicídio de seu primeiro marido, o pintor português açoriano Fernando Correia Dias, em 1935. Cecília casou-se aos 20 anos e com ele teve três filhas, as Marias Elvira, Matilde e Fernanda, esta conhecida atriz de televisão, destaque nas novelas na década de 70, Gabriela, Pai Herói, O Grito, e no cinema, entre outros papéis, foi a Rainha Dona Maria I no filme de Carla Camurati, Carlota Joaquina, 1995. Foi ela que, muito criança, encontrou o pai enforcado.
Também difícil foi sua relação com o presidente Getúlio Vargas, a quem chamava publicamente de ditador. Cecília escrevia em sua coluna Página da Educação, no jornal Diário de Notícias, fortes artigos defendendo o ensino laico, as liberdades individuais, uma república democrática, posicionando-se contra o ufanismo do governo. Perseguida, teve o Centro de Cultura Infantil, criado por ela e o marido, fechado em 1934, por ordens vindas do Palácio do Catete, sob a acusação que na biblioteca teria “conteúdo educacional duvidoso” para as crianças, como o clássico As Aventuras de Tom Sawyer, de Mark Twain, sobre o garoto que vive na sociedade sulista do século 19, às margens do rio Mississippi, nos Estados Unidos, quando predominava o sistema da escravidão.
Menos traumático, mas tão frustrante quanto pitoresco, foi o desencontro com Fernando Pessoa. Cecília Meireles viajou à Portugal naquele mesmo ano para uma série de palestras nas universidades em Lisboa e Coimbra. O poeta dos heterônimos marcou o contato num café da capital, Cecília esperou, esperou, e depois de algumas horas e várias xícaras de chá, decidiu voltar ao hotel. Encontra na portaria um exemplar autografado do livro Mensagem e um bilhete de Pessoa se desculpando: fora aconselhado por seu horóscopo daquela manhã a não ir a encontros. Não iria, não fingiria a certeza que deveras sentia. O poeta falece no ano seguinte, levando Ricardo, Álvaro, Caeiro...
Cecília Meireles foi estampa na cédula 100 Cruzados Novos em 1989 – assim como Drummond na de 50 - no último ano do governo Sarney, aquele da dinastia do babaçu maranhense, escritor nos intervalos de mandatos, autor da "polinização" em nossa literatura com Maribondos de fogo. Mas veio o governo do marajá collorido das Alagoas no ano seguinte, as notas não circularam por muito tempo e o Plano Real de Itamar desvalorizou a Unidade Real de Valor dos poetas na mão do povo.
O livro Viagem traz entre tantos poemas consagrados, como os ótimos 13 Epigramas, o pouco conhecido pelo título, Marca, mas lembrado pela polêmica ao ter sua penúltima estrofe musicada por Raimundo Fagner, com o título Canteiros, gravada e não creditada no seu primeiro disco, Manera fru-fru, manera, 1973.
Ainda com a contenda judicial movida pela família de Cecília, o não menos conhecido o poema Motivo, também do livro Viagem, é musicado, e dessa vez creditado, gravado pelo cantor cearense cinco anos depois, no álbum Eu canto – quem viver chorará.
Motivo é o poema mais substancial em metalinguagem, em significado e definição para Cecília Meireles: “Eu canto porque o instante existe / e a minha vida está completa. / Não sou alegre nem sou triste: / sou poeta.” A análise semântica que se faz de cada verso, “atravesso noites e dias / no vento”, “se desmorono ou se edifico, / se permaneço ou me desfaço”, traça um perfil elucidativo de quem tem o dom e o fado de lapidar a vida com a mais íntima manifestação da literatura: a poesia. O canto.
Cecília faleceu dois dias depois de completar 63 anos, em 9 de novembro de 1964, de câncer no estômago.
119 anos hoje de seu nascimento. Mais de um século de asa ritmada. Se fica ou passa, ela sabia que cantava. E a canção é tudo.
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Texto para o meu livro em preparação Crônicas do olhar, com adaptações para esta postagem.