Jean-Claude Carrière. Foto DivulgaçãoRevirar os cânones do trabalho cinematográfico, através de mostras cujo recorte se faz a partir da reunião de filmes nos quais a contribuição artística dos chamados profissionais "anônimos" do cinema é decisiva, tais como fotógrafos, montadores ou cenógrafos, sempre foi uma das orientações essenciais do trabalho de programação da Cinemateca Brasileira. Geralmente, o objetivo destes ciclos é direcionar o olhar do público para aspectos supostamente secundários ou dificilmente perceptíveis do filme, incitá-lo a apreender o que normalmente, sentados numa poltrona, deixamos em segundo plano.
É desta forma que podemos perceber o quanto o roteiro, o cenário, a montagem e os outros elementos que compõem a mise-en-scène cinematográfica participam decisivamente do resultado estético de uma obra. Por outro lado, esta é ainda uma oportunidade para que possamos encarar o cinema como trabalho coletivo, fruto da atividade de um grupo reunido em torno de um objeto final e aglutinador.
Assim, é revisitando este mote que a Cinemateca Brasileira, em São Paulo, oferece, desde o dia 21 deste mês até o próximo dia 02, um ciclo dedicado ao roteirista francês Jean-Claude Carrière.
Autor de inúmeros roteiros, textos teatrais, romances e livros sobre cinema, parceiro de trabalho de cineastas como Luis Buñuel, Andrzej Wajda, Peter Brook, Milos Forman, Jean-Luc Godard e Volker Schlöndorff, Carrière se firmou como um dos principais roteiristas contemporâneos. Sua experiência, marcada pela diversidade dos realizadores com quem trabalhou e pelo compromisso com a reflexão sobre a escrita cinematográfica, permitiu que forjasse uma concepção original não só da natureza do roteiro como também do próprio ofício do roteirista.
Para Carrière, antes de ser uma peça literária, o roteiro é uma ferramenta de passagem, um texto portador de outro estado, em cujas linhas se encontram latentes imagens e sons. Distante da suposta nobreza e inviolabilidade da obra literária, o roteiro é submetido a leituras específicas, é dissecado, anotado e finalmente descartado pela equipe
Desta forma, ao invés de reivindicar um lugar no panteão dos tradicionais criadores, cabe ao roteirista, neste ponto do processo, abandonar inevitavelmente a devoção por seu trabalho e transferir seu entusiasmo para a realização efetiva do filme: idealizado no papel, o roteiro é exposto à concretude das filmagens e assim, diante da prática, uma metamorfose indispensável o aguarda.
Peça na engrenagem do cinema, o roteirista, segundo Carrière, deve ser o primeiro a achar que, pela própria natureza de seu ofício, a noção de obra pessoal, que no cinema toma proporções questionáveis, decaiu há muito tempo. Shakespeare, da mesma forma que Flaubert e outros escritores realistas, "escondeu-se" por trás de suas peças, "sacrificou" sua projeção pessoal em favor de uma obra que, hoje, é de domínio público.
Herdeiro desta linhagem, o roteirista é, na verdade, um elo entre o público e a experiência do real e seu objetivo seria transmiti-la por meio de instrumentos modernos, ou seja, pelo próprio cinema. Desta forma, ele atualizaria uma antiga tradição narrativa cuja formatação teórica podemos encontrar nas idéias de Walter Benjamin acerca do "narrador".
É a partir destas considerações que a Cinemateca Brasileira oferece este ciclo que, composto por 13 filmes, inclui títulos dirigidos pelos principais parceiros de Carrière, como Luis Buñuel, em "O estranho caminho de Santiago" (La voie lactée, 1969) e "A bela da tarde" (La belle de jour, 1967), Peter Brook em "O Mahabharata" (Mahabharata, 1989) e Milos Forman em "Valmont – uma história de seduções" (Valmont, 1989), recupera outros há muito não exibidos, tais como "Os indiscretos pingos de chuva" (Un amour de pluie, 1974), de Jean-Claude Brialy, e ainda exibe o inédito "O retorno de Martin Guerre" (Le retour de Martin Guerre, 1982), de Daniel Vigne.